terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O CANHÃO ...







Antes que o preclaro António Dias, venha para aqui dizer que já pôs um penedo de Monsanto em cima da guerra, eu começo por avisar que este canhão não é um canhão. Era um homem, que tinha uma alcunha bélica – Canhão. Um militar africano, de etnia fula. Lembro-me dele, como se estivesse aqui à minha frente. Alto, quase dois metros de estatura, olhos grandes e inquietos, uma barba branca e rala e uns pés onde moravam umas botas número 48. Usava calções de Janeiro a Dezembro e nunca o vi que não fosse a rir. Um riso largo, que lhe ocupava a cara toda e uma forma muito peculiar de ver a vida. Tratava-a com desdém e dizia que era na morte que começava tudo. Talvez uma crença religiosa, que o levava a afirmar que nunca virava o peito às balas. Se lhe acertassem, era o Destino.

Como todos os homens, o Canhão tinha qualidades e defeitos. Gostava de gastronomia, por exemplo. Uma qualidade. Mas era louco por carne de macaco. Um defeito. Um clamoroso defeito. Defeito, porque não se coibia de, nas colunas militares, atirar rajadas de metralhadora para as árvores, na expectativa de ver derramados pelo chão, meia dúzia de infelizes. Era como andar a varejar azeitona num chão de oliveiras, no Alentejo. Um dia, subi ao rodado de um camião, para ficar de olhos nos olhos com ele e gritei-lhe furioso: “…óh Canhão, queres matar-nos a todos ??? … não vês que estás a denunciar a nossa posição  ao inimigo … ??? ”. O Canhão, descansou então os braços sobre o cano da arma, compôs o boné militar, deu um suspiro fundo e disse-me com os olhos no horizonte: “ … mas óh furriel, aquele macaco era tão tenrinho …”. Nada a fazer…

Uma noite, ligámos a máquina do Melgueira e projetámos um filme contra a parede branca da caserna. O filme era o delírio para quem já andava meio louco. O documentário, já um tanto queimado e deteriorado de tantas vezes ser visto, mais não era que uma loira escultural, como Nosso Senhor a pôs no Mundo, a lavar um carro com uma mangueira. Lavava bem, admito. E estávamos nós a ver a esguichadela de mangueira pela centésima vez, quando entrou no abrigo o Canhão. Ao ver a preciosidade, que o mesmo é dizer, a bela “ragazza”, encostou-se a uma parede assombrado, de olhos arregalados e respiração ofegante. E riu. Riu muito e bateu palmas. A plateia acompanhava-o, metendo os dedos na boca e soltando assobios estridentes. E quando o filme acabou, depois de repetido mais dez vezes, a pedido do culto Conclave, o Canhão partiu, entusiasmado.

No dia seguinte, ao passar por ele na parada, perguntei-lhe quais tinham sido as suas impressões, sobre aquela fantástica noite de “cinema”. Então, olhou para mim, voltou a rir até se engasgar e disse-me em apoteose:  óh furriel, estive toda a noite sem dormir, com a cabeça cheia de pensamentos abandalhados ”. Uma qualidade...
Quito Pereira

16 comentários:

  1. No Carnaval, nada parece mal. As minhas desculpas, às almas mais sensíveis ...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Estás perdoado!
      Mas o abandalhamento é comigo e mais um pedaço da tua passagem pela Guiné cujos momentos estão arrumadinhos na memória...contá-los é bom para ti e para nós.
      Continua a escrever se não nunca te perdoaremos...

      Eliminar
  2. Acredito que todos os que viram o filme tiveram uma noite abandalhada, mas só o Canhão foi sincero!...

    ResponderEliminar
  3. Exijo a presença de um batalhão de ginecologistas!

    ResponderEliminar
  4. Pelo carnaval o Quito saiu do alinhamento e esticou-se, abandalhou o Canhão, todo o batalhâo e até a Sãozinha!
    Imagino-o a escrever e a rir-se até às lágrimas, com a estória e a recordar o abandalhamento...
    Um registo de comédia que nos dá para distrair e apreciar.

    ResponderEliminar
  5. Pois, mas quem se esticou todo naquela noite foi o Canhão, porventura e não só!
    Só agora li e estava curioso se calhar até mais do que curioso...ao ler a advertência do Quito e ainda mais o comentário da púdica e recatada Sãozinha Rosas.Afinal para quê a minha entrada como ginecologista! Ainda por cima um batalhão!
    "óh furriel, estive toda a noite sem dormir, com a cabeça cheia de pensamentos abandalhados"Então o que tem a ver um ginecologista que o Canhão não dormisse com a cabeça com pensamentos abandalhados?!!!Ainda se fosse com pensamentos, palavras e OBRAS?E onde é que ele tinha o "material para as Obras?" Ferramenta tinha-a ali à mão! E não conseguiu dormir a dar voltas à cabeça a pensar como e aonde a devia utilizar!
    Pobre Canhão...

    ResponderEliminar
  6. Tu não tens é coragem de censurar um escriba (escriva que escrebe numa escribaninha) famoso!

    ResponderEliminar
  7. Depois de três semanas sem reabastecimentos por causa das chuvas intensas terem tornado a picada intransitável, esgotados que tinham sido já os cabritos e as galinhas da tabanca onde eu estava destacado com o meu pelotão, passámos a comer o pouco que havia.
    Arroz com óleo de palma, abóbora com leite, chispe de barrica e batatas desidratadas.
    Um dia o furriel Rebelo ( que haveria de morrer em combate uns meses depois...), chegou-se ao pé de mim e disse-me:
    - Meu alferes, hoje temos cabrito assado no forno ao almoço.
    - Como assim? perguntei-lhe eu admirado. Pois se já há muito esgotámos os cabritos que havia na tabanca...
    - Depois conto-lhe, respondeu-me sorridente

    Fosse da fome ou não, foi ao melhor cabrito assado que já tinha comido até então.
    Só fiquei a saber que o que tinhamos acabado de comer era um macaco apanhado na bolanha quando o Rebelo mandou o cabo Maiorca trazer uma travessa com as mãos do infeliz animal.

    Ainda hoje me arrepio quando me lembro.
    Quem faria certamente as honras ao pitéu era o Canhão...

    Obrigado Quito por trazeres recordações que, queiramos ou não, jamais se apagarão das nossas memórias.

    ----------------------

    Quanto a filmes só me lembro de ter visto A Canção de Lisboa e o Tarzan contra o Mundo.
    Mas estes não davam para abandalhar os pensamentos.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Soube-te bem, na altura,o macaco/cabrito...e isso é o que interessa!
      Conta-nos também pedaços vividos na Guiné com esse teu jeito de escrever ou vividos noutro lugar qualquer ou ficcionados.Ó Rui,tu e o Quito são tão interessantes a escrever que nos põem entusiasmados a fazer mexer os neurónios e ficarmos velhos com genica pois é o que queremos ser.
      Os Contos da Daisy são outra maravilha!A sua capacidade,imaginação e sensibilidade são extraordinárias.
      E mais pessoas haverá....Escrevam!

      Eliminar
  8. Como jà tiveram a oportunidade de constatar, ainda nao me arrisquei a contar as mil e uma aventuras que passei nos 4 anos de tropa, 2 passados na bela cidade do LUSO, capital do entao MOXICO!Primeiro, porque tive uma santa vida, plena de especialidades bizarras!Nas Caldas da Rainha, na primeira saida noturna, constataram que a minha miopia era forte e mandaram-me de seguida para Coimbra.Nos exames de saude na Lusa Atenas, declararam-me inapto de manha e ao fim da tarde, apto para os serviços Auxiliares!Fui transferido entao para Vendas Novas!!Que bela vida, esta de Auxiliar!!Levantar là pelas 10h e fazer praticamente o que nos apetecia!!Depois, jà promovido a Furriel, enviaram-me para o Regimento de Saude de Coimbra, em frente ao Jardim Botânico!Nove meses de pura felicidade!!!Instalado no serviço de mecânica militar, o Capitao (amigo do meu Pai)aconselho-me a ficar em casa e a aparecer por là esporàdicamente, para nao perturbar a disciplina rigorosa que ele impunha no serviço, completamente incompativel com a minha maneira de ser!!!!Na Guiné, entenda-se, na minha rua, a minha querida Mae tanto me dizia "Qualquer dia vais preso pois nunca vais ao quartel"!!!!Surgiu entao a famosa mobilizaçao para o Ultramar!!Calhou-me ANGOLA na rifa e a bela cidade do LUSO! Deram-me o titulo de Vago-Mestre, 10 cozinheiros e um enorme gabinete!!Beneficiei logo de entrada dum chauffeur, que todos os dias me ia buscar ao apartamento que alugara no centro da cidade (e onde dormia o Jorge Gonzaga)e me conduzia à Manutençao Militar!!Contràriamente ao que todos pensam da especialidade "VagoMestre" nao pude enriquecer, pois os alimentos eram-nos distribuidos crus diariamente na Manutençao Militar!!Bem, comia muitissimo bem...na Messe dos Sargentos!!!Aguentei um ano!Depois, surgiu uma circular para um casting musical!!!!O General Comandante Chefe das Forças Armadas no Leste de Angola, procurava montar uma banda musical para animar os bailes de sàbado no HOTEL LUSO, onde estavam instalados todos os Oficias das vàrias componentes militares presentes no Moxico!Concorri para o posto de viola-ritmo e fui aceite!!!Montàmos o grupo WOODSTOCK e passàmos o 2° ano de mobilizaçao a tocar para os oficiais, para os bailes privados das filhas dos oficiais e para os militares isolados no mato!!!Tinhamos um aviao à nossa disposiçao. Um NORD ATLAS, dentro do qual apanhei imensos sustos!!!
    G3? So a sabia desmontar!Pagava para que a limpassem e a montassem!
    Mas dentro de todos estes capitulos, hà muito que contar!!!Ai!Quito! Se tu tivesses a pachorra para me escutar...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Também me dera um curso de Vago-mestre depois de verem que em muniçoes não dava uma para a caixa e era perigoso!
      No que respeita a saídas para o "ultramar" tive sorte pois fiquei em primeiro suplente para a INDIA!Ninguém desistiu...

      Eliminar
    2. Engraçada e curiosa a tua passagem pela vida militar, bem diferente da maioria dos que por lá foram forçados a cumprir.
      Sempre entendi a necessidade das "cigarras" para nos darem energia ao espírito!
      Boa, Bobbyzé.

      Eliminar
  9. Ai,o Bobbyzé, o sr Vago-Mestre, conta-nos um momento passado em Angola mas na área musical...tinha que ser!Que rica vida mas terás muito boas estórias para nos contar como militar da cagança!
    Mais um contador de histórias que bom.
    Não jeito nenhum para revelar, através da escrita, aos meus amigos...
    Todos te escutamos!

    ResponderEliminar

  10. " Antes que o preclaro António Dias,"...
    Achei graça à introdução como achei graça a todo o texto. Para além da qualidade literária, à qual já nos habituaste, ressalta um humor inteligente que faz com que saibas aproveitar o facto de saberes que por baixo de um enorme pedregulho podem existir belas flores. É preciso é saber encontrar esse manjar dos deuses.
    E tu sabes e partilhas connosco essa sabedoria.

    "Obrigado Quito por trazeres recordações que, queiramos ou não, jamais se apagarão das nossas memórias." - diz o Rui Felício.
    E diz bem. Também ele tem sabido trazer até nós essas memórias, sempre respeitando a cultura das populações colonizadas, numa guerra sem sentido que não era a nossa, não era a daqueles que a foram obrigados a sofrer.

    Noutro momentos, e até por outras paragens, já tive oportunidade de deixar bem clara a minha opinião sobre o tema.
    Detesto todos aqueles que se aproveitaram duma guerra injusta ( será que existe alguma guerra justa ?) para dela fazerem o seu modo de vida, a sua profissão...
    Porque foram estes que a prolongaram até à exaustão, para seu proveito pessoal, indiferentes ao sofrimento, mutilações, mortes, daqueles que foram obrigados a cumprir a guerra. Ou isso ou a deserção, era a única escolha possível...
    Também não consigo suportar aqueles que querem para si o estatuto de "heróis", tipo "Rambos" à portuguesa, dos anos 60.

    Não é, nem de perto nem de longe, o teu caso. Não é, nem de perto nem de longe, o caso do Rui Felício.

    Continuem, meus queridos amigos, a aliviar a pressão do pedregulho que vos acompanhará até ao fim das vossas vidas. Façam-no sempre que vos apeteça. Será com muito prazer que acolherei os vossos escritos.

    Para ambos, aquele abraço.

    ResponderEliminar