Segredo é segredo ...
São setenta e seis anos de idade, um cabelo encaracolado e branco,
em pouco mais de um metro de altura. Um rosto pálido, redondo e enrugado, de
quem já percorreu muito caminho na vida. Estava ali, à beira da estrada, que
percorria no pino do calor. Quatro longos quilómetros a pé, até chegar ao
destino – o seu lar.
Reconheci-a e conheceu-me. Ofereci-lhe uma boleia e
predispus-me a leva-la a casa. Aceitou. A jornada era longa, por entre campos
desertos de gente. De companhia, apenas a solidão.
Partimos. Atravessámos a aldeia desmaiada pela canícula e o
carro lançou proa por uma estreita língua de alcatrão. Por minutos, o Seat
ronceiro percorreu os caminhos do silêncio. Já está habituado. Mas na hora de
calor, o vácuo espacial toma outra dimensão. Há uma paisagem que nos esmaga. De
um lado, a planície sem fim, onde um pequeno casebre de guardar gado e alfaias
agrícolas, é o único recorte que fere a linha do horizonte. Do outro lado, a
montanha. Longe, lá longe.
Em caminhada lenta, entramos no minúsculo largo do
Palvarinho. Nada nem ninguém. Até a mercearia do Paulo, está fechada. À porta, apenas
um caixote de batatas vazio. Uma portada de uma janela entreaberta, faz-me
pressentir que estamos a ser observados. Uns olhos escuros e umas farripas de
cabelo mal tratado, procuram um acontecimento que preencha várias horas de
cogitações, ao resguardo da vaga de calor.
Ela, a minha companheira de viagem, é muito extrovertida. Fala
- me do seu percurso de vida. Dos anos, mais de vinte e sete, que passou em Lisboa.
Recorda os tempos em que, ao balcão de uma pastelaria lá para os lados do
Restelo, vendia aos clientes que entravam a porta em catadupa, pastéis de
Belém. Quando lhe perguntei qual era o segredo dos famosos bolos, riu-se. Mas
não adiantou conversa. Segredo é segredo.
Quis ficar no largo da povoação. Recusei. Favor leva-se até ao fim, dizia o meu avô. Por uma estrada estreita e empedrada andámos. De novo e sempre, de mãos dadas com o silêncio. Casas novas, velhas ou em ruínas, forram as ruelas esconsas e sem alma. Apenas janelas fechadas. Algumas casas são airosas, com as suas portadas verdes cerradas. Aguardam a vinda dos proprietários, a trabalhar para lá da fronteira.
Naquele beco, parei. Um portão de ferro, já carcomido pelo tempo,
é o destino. Maciço e grande, percebe-se que já teve dias de glória. Agora,
para lá daquela fronteira de ferrugem, já só se vislumbra uma casa modesta.
Muito modesta. É ali a casa de Irene.
Abandonou o carro e bateu com a porta. Agradeceu a boleia a sorrir.
Depois, como se estivéssemos numa grande metrópole, indicou-me o caminho mais
fácil de saída da aldeia. Por minutos, balançando ao sabor das irregularidades
do terreno, o meu pensamento afundou-se em tempos remotos. Lembrei Irene e … a casa de Irene. Uma canção italiana muito
em voga nos anos sessenta, de Nico Fidengo.
E foi trauteando a melodia de que me recordava, que regressei ao meu presente, relembrando o meu passado.
E foi trauteando a melodia de que me recordava, que regressei ao meu presente, relembrando o meu passado.
Quito Pereira
Que dizer deste teu texto?
ResponderEliminarNa tua prosa pessoal encaixa sempre alguém que personifica o teu bom relacionamento com pessoas humildes, no caso a Irene que te fêz lembrar o Nico Fidengo...
CASAIRENE
Ou como referes " é o único recorte que fere a linha do horizonte...
ResponderEliminarLá Longe, lá longe...
Longe
O PM é que é o responsável por este meu tipo de comentários...ensina-me estas habilidades.
ResponderEliminarNão gosto de pobre e mal agradecido!!
As coisas que eu ensino ao meu ginecologista...
ResponderEliminarEspero é que sejam de interesse e que estejam a complementar a postagem!
EliminarEu gosto!
Mas afinal quem é que ensinou, foi o PM ou a São Rosas? Ai, ai, ai, ai!,,,
ResponderEliminarOs textos do Quito têm o grande mérito de nos transportar para o acontecimento.
Senti que também estava dentro do carro, até passei para o banco de trás para dar lugar à Dona Irene!
E o calor que fazia!!!... E o Seat sem ar condicionado!... Mas o pior, foi no regresso, ter que ouvir o Quito todo o caminho a cantar a "casa de Irene"... Um suplício, má estrada, calor de rachar e o Quito a cantar!....
Eu dou-me muito bem tanto com o PM como a São Rosas.
EliminarPara mim São o dois em um.
Tanto para um como para a outra por vezes tenho que abrir o consultório...O tratamento é eficaz!
Agora eu ri....rsss
EliminarE és fixe porque só nos cobras (e lagartos) uma consulta.
EliminarPõe-te a dar-lhe ideias e depois queixa-te!
EliminarMas posso continuar, ou não adianta nada?
EliminarA cobrar por uma consulta? Cobra à vontade!
EliminarOK, OK, os links que pões são úteis, são.
Ainda bem que também sou útil a fazer coisa úteis que me ensinas!
EliminarTu também me ensinas muitas coisas, meu fofinho.
EliminarA trautear melodias e a sonhar com pastéis de nata acompanhando a dona Irene!
ResponderEliminarÓ Quito, devias ter insistido naquele segredo dos pastéis...
Dizias-me e eu fazia-te uma dúzia!
'Favor leva-se até ao fim", também me dizia um colega de trabalho, casado- segundo ele - com um anjo, mas tinha a sogra como uma jararaca. Após a morte desta, ele fez questão de carregar o caixão até à cova,para ter a certeza de que a mulher seria enterrada.
ResponderEliminarMas o Quito, pelo qual já tenho muito apreço, há de entender que o pai dele, sábio, que tive a honra de aqui parabenizá-lo, quando aniversariou (foi isso, não foi?), tem toda razão na expressão, mas no bom sentido.
Quito, também vagueei pela imaginação, enquanto lia o texto.
Mais uma anónima que ganha nome pela pena do Quito. Na vida, o que mais importância lhe deu foi a honra de ter trabalhado em Lisboa, vendendo pastéis. Guardou o segredo da receita dos famosos pastéis de Belém, mas será que o conhecia? Será que lhe passaram pelas mãos, durante os vinte e sete anos que trabalhou na pastelaria, um miríade de pastéis, sem lhe conhecer a confecção? Eis o mistério que não ficou esclarecido; ao Quito mais lhe apeteceu remeter-se às suas próprias recordações da juventude. Logo que viu a casa da velha senhora, a casa de Irene, tratou de trautear a canção que tão boas recordações lhe deixou. Quais? Também aqui segredo é segredo...
ResponderEliminarAquele abraço.
Quito, Quito, Quito..., passeaste-te com a Irene e o que me vieste lembrar. Logo que vi o título, sem pensar comecei a trautear essa canção, se bem que já não me lembre de toda a sua letra. Já fui à net. Na tropa, em certas reuniões de "família", tinha um colega que cantava muito bem essa canção em português. Penso que estava a cantar a Casa de Irene mas estava a pensar numa outra moça que ele tinha perdido e ainda era muito nova. Ía-mos todos atrás... Recordar é viver.
ResponderEliminarMais um passeio do Quito que nos mantem preso na leitura até ao fim pois vamos conecendo por onde passou. Não tenhas dúvidas que a Irene até te abria as portas da casa para te dar um café quente mas um segredo, é um segredo.