Tomava o comprimido de Resoquina regularmente e só bebia água depois de passada pelo filtro de porcelana, mas mesmo assim, por lá apanhei paludismo por três vezes e o micróbio injectado pelos mosquitos, bem acomodado no sangue , fez-me sofrer a terrível doença outras tantas vezes, já depois de regressado a Portugal.
Estes cuidados primários eram perdidos quando saíamos dos quartéis, para fazer a guerra, chafurdando na lama cinzenta dos charcos, debatendo-nos enrolados no medonho turbilhão dos tornados, derretendo-nos na fornalha de um sol encoberto, dissolvendo-nos debaixo da impiedosa chuva vertical que nos encharcava os ossos.
Por vezes, o cheiro a pólvora entranhava-se nas narinas misturado com os aromas doces da selva, acelerando o coração apertado pelo medo...
Os vómitos constantes, a desidratação, as dores do corpo e as febres altas, deixavam-me numa prostração que me fazia preferir a morte por alguma bala perdida.
E, no entanto, amei e amo aquela terra que me secou, que me fez sofrer, e amei e amo aquelas gentes simples que me ensinaram tantas coisas, porque nunca o preço do amor é demasiado e nem a morte e o sofrimento o podem aniquilar.
Porque nada há que pague o deslumbramento de um pôr-do-sol por trás dos verdes palmeirais, nem o longínquo som dos batuques africanos nas noites serenas.
Nada há que pague as intermináveis conversas com os homens-grandes da tabanca sobre a História da Guiné, em cálidas noites sob um céu estrelado como nunca vi na minha Coimbra.
Não tem preço a singeleza dos olhos doces de uma elegante e ágil gazela a fitarem-nos, assomando-se-lhe duas lágrimas pela morte de um filhote caído numa armadilha.
Nem, muito menos, a intensa vida animal e vegetal que ao raiar do dia explode e desabrocha, reduzindo-nos a uma pequenez neste fantástico mundo que, com a nossa estúpida prosápia de senhores do Universo, queremos destruir.
Estes cuidados primários eram perdidos quando saíamos dos quartéis, para fazer a guerra, chafurdando na lama cinzenta dos charcos, debatendo-nos enrolados no medonho turbilhão dos tornados, derretendo-nos na fornalha de um sol encoberto, dissolvendo-nos debaixo da impiedosa chuva vertical que nos encharcava os ossos.
Por vezes, o cheiro a pólvora entranhava-se nas narinas misturado com os aromas doces da selva, acelerando o coração apertado pelo medo...
Os vómitos constantes, a desidratação, as dores do corpo e as febres altas, deixavam-me numa prostração que me fazia preferir a morte por alguma bala perdida.
E, no entanto, amei e amo aquela terra que me secou, que me fez sofrer, e amei e amo aquelas gentes simples que me ensinaram tantas coisas, porque nunca o preço do amor é demasiado e nem a morte e o sofrimento o podem aniquilar.
Porque nada há que pague o deslumbramento de um pôr-do-sol por trás dos verdes palmeirais, nem o longínquo som dos batuques africanos nas noites serenas.
Nada há que pague as intermináveis conversas com os homens-grandes da tabanca sobre a História da Guiné, em cálidas noites sob um céu estrelado como nunca vi na minha Coimbra.
Não tem preço a singeleza dos olhos doces de uma elegante e ágil gazela a fitarem-nos, assomando-se-lhe duas lágrimas pela morte de um filhote caído numa armadilha.
Nem, muito menos, a intensa vida animal e vegetal que ao raiar do dia explode e desabrocha, reduzindo-nos a uma pequenez neste fantástico mundo que, com a nossa estúpida prosápia de senhores do Universo, queremos destruir.
Rui Felício
Chiça, Rui... só posso fazer-te a continência...
ResponderEliminarMeu caro amigo Rui Felício
ResponderEliminarJá li, reli e voltei a ler. Magistral. É o que posso dizer deste texto. Corro o risco de me acusarem de uma peganhosa hipócrisia. Mas não.Quem, de boa-fé, ler este texto, percebe que é maravilhoso. Mesmo que, subjacente, esteja a penumbra da guerra. Talvez esta prosa me atinja, e me diga mais a mim do que a outros. Fui combatente na Guiné, como tu. Rebolei-me no pó, esgotei-me com o calor, caí numa cama com paludismo a delirar de febre. Vi-me cercado de minas, no Domingo de Páscoa de 1972. Mas como em tudo, há outra face da moeda. A sabedoria dos homens velhos da tabanca. O espírito de justiça que norteava as suas vidas. Os cantares das mulheres africanas, ao pôr-do-sol. O movimento ritmado do pilão. Depois a flora resplandecente, e uma fauna variada. Recordei a graciosidade das gazelas no seu aligeirado andar.E recordei as noites estreladas. Também noites de perigo. Quando o bicho-homem estragava aquela dádiva dos céus. Recordo também as manhãs radiantes. Aquela bola de fogo majestosa, que subia da bolanha ...
Obrigado, Rui ...
O texto do Rui e o respectivo comentário do Quito, não podem deixar ninguém indiferente!
ResponderEliminarTestemunhos, na primeira pessoa, vividos, sentidos, sofridos e, em simultaneo, recordados com saudade e apreciados pela outra face.
Arrepia...
Rui, desculpe a indiscrição mas "porque nunca o preço do amor é demasiado e nem a morte e o sofrimento o podem aniquilar" é o que sentem todos aqueles que por lá passaram na Guiné.Vou confessar lhe que já o tenho lido, e tenho na familia alguem que esteve nos mesmos locais por onde passou.Os relatos, os combates, o medo,as abelhas, as termitas,é o mesmos de que fala, mas a saudade continua a ser profunda,e de vez em qd lá vem Aldeia Formosa, flano sicrano,personagens que não conheço, mas cujas histórias adoro ouvir.E a si os meus parabéns por partilhar todas as suas vivências na Guiné ( dificeis) duma forma tão bonita.
ResponderEliminarP.S.Sou só Cristina Antão
Como sabem não estive em África, mas sempre que leio descrições da beleza daquelas paragens quase fico com pena de não ter passado por lá.
ResponderEliminarEu sei que este lado que descreves tem a outra face, de desejarem, algumas vezes, transformarem-se em formiga, colados ao chão porque nele não podem fazer-se desaparecer, quando os tiros roçavam as cabeças numa emboscada, ou quando viam tombar aquele camarada que momentos antes tinha compartilhado um cigarro.
Guerra é guerra, e a guerra nunca andou de braço dado com romantismos. Mas agora à distância duns anos é sempre bom ter o privilégio de ler descrições, e que belas descrições, das coisas boas que por lá aconteceram e que são o reflexo valorativo em confronto com tudo de mal que as vossas recordações rejeitam.
Ficamos, sem ver, também apaixonados por África, pela Guiné, e a ti e ao Quito o devemos. Obrigado.
Abílio
Texto extraordinário!
ResponderEliminarLembrei-me do belíssimo pôr-do-Sol de Timor, daquela gente e dos anos que lá passei. Felizmente, para mim, que não havia guerra e os dias eram todos belos, embora com muitas saudades de casa, da família, dos amigos e de Coimbra.
Também sofri com o paludismo, também tive que tomar quinino e por não ter os cuidados devidos com a água, fui parar ao hospital, onde estive mais de dois meses às portas da morte!
O paludismo só o curei um ano depois de ter regressado!
Obrigado Rui, por mais este belo texto.
Como eu vos compreendo, Rui e Quito!!!
ResponderEliminarTambém eu fui picado pelo terrível mosquito...e deixai-me recordar...
Norte de Moçamique.
"A humidade é tanta que custa a respirar. O ar tem uma espessura oleosa. Estamos encharcados como se tivesse chovido torrencialmente. Não tenho um centímetro quadrado do corpo seco. A paisagem dissolve-se vinte metros à nossa frente, onde a picada e a fila de soldados desaparecem no nada. Parece que caminhamos em direcção a um espelho embaciado que nos vai engolindo. O som parece propagar-se como debaixo de água, ouve-se o ruído mais distante como uma percussão nos próprios tímpanos.
Mas vozes, não se ouve nem um sussurro, apenas os passos dos soldados e o ininterrupto fervilhar da floresta. Parecemos uma fila de almas penadas. Estamos vivos, não há qualquer dúvida; o cheiro acre, inconfundível, da terra húmida de África e o hálito morno da floresta, tão estranhos, mas cada vez mais familiares, chamam à realidade."
MB
...
Os mosquitos começam a importunar-me. Não passam cinco minutos que a minha mão esquerda não pareça um limpa pára-brisas a enxotá-los de um lado e do outro da cara. Vão aqui exactamente vinte e três homens...
e já agora...
…O parasita do paludismo ataca primeiro o fígado e a pouco e pouco, destrói as células sanguíneas alimentando-se da hemoglobina dos glóbulos vermelhos, o que inibe a sua capacidade de transportarem oxigénio, provocando anemia e favorecendo a introdução de toxinas que provocam febres elevadas.
Depois de uma sucessão de várias horas de frio e de outras tantas de febres altas, segue-se uma fase de transpiração intensa que precede, nas ocorrências benignas, o fim da malária e que é acompanhada por uma sensação de alívio e bem-estar…
Quiz o destino, que agora acompanhe bem de perto, uma investigação sobre a malária!!!
E...quando nos deitavam numa enfermaria improvisada...
O pijama e os lençois eram mudados de hora a hora, pois pareciam a roupa das lavadeiras do Mondego ao ser torcida depois de banhada na(s) límpida(s) água(s)...
H2O...que não sabíamos o que era, pois o cantil, cheio para 5 dias de mato, levava algo que nos molhava os lábios...que nem filtrada, tinha sabor ao precioso líquido!!!
Grande abraço Rui! Abraço grande (?) Quito!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarQuanto ao por-do-sol!
ResponderEliminarFabuloso em África!!!
Onde me encontro actualmente, assisto diariamente a belos....mas com aquela enorme bola de fogo...só mesmo em África... minha!!!
O Alfredo e o Zé tinham que ser sensíveis a este tema que tanto os marcou.
ResponderEliminarPara além de uma descrição bem forte,o Leitão ainda me esclareceu cientificamente sobre as maleitas que vos vitimaram, próprias das terras africanas.
O Ricardito que se aplique...
Que posso dizer do texto?!
ResponderEliminarEstá lá tudo.
Os comentadores ainda o tornaram mais vivo e a cores.
O rai do mosquito também me picou em Angola,e pôs-me um mês de cama.Após o regresso,reviveu e aturou-me outra vez para a cama.
Não sei se a África que conhecemos(que amámos e odiámos) ainda existe.
Mas as recordações,essas não morreram.No meu caso,com mais frequência as más que as boas.
Um abraço.
Não vivi a guerra, mas conheci o encantamento de que o Rui, tão bem, nos dá o testemunho e que o Quito e o JL enriquecem.
ResponderEliminarA recordação que guardo de África, onde vivi, em pleno mato, é de mágicos e serenos anoiteceres, de frescas e brilhantes madrugadas.
No Sul de Angola e na zona interior do planalto, as suas gentes afáveis, com uma dignidade e uma serenidade que nos obrigavam a parar e a questionar todo o nosso sistema de valores.
O paludismo, como me explicaram, podia ser lento, queimar em tortura prolongada durante semanas a fio, cozinhando-nos as entranhas em febres baixas, engolindo-nos as energias e fazendo-nos sentir os seres mais miseráveis ou, manifestar-se em acessos violentos, com febres altas, tremores incontroláveis que nos agitavam durante horas a fio, entranhas viradas do avesso, dores que crucificavam todos os músculos. Até virar os olhos de um lado para o outro se revelava uma tortura.
Lembro-me que a primeira crise de paludismo me fez pensar que, afinal, tinha ido tão longe em busca do meu destino para lá deixar ingloriamente os ossos.
Mas que a magia daquelas terras nos aprisiona para sempre, disso não restam dúvidas.
Podemos viver toda uma vida, mas basta fechar os olhos para tornar presente todo o encantamento que nos fez explodir de emoção um dia.
Pouco posso acrescentar aos comentários que já foram feitos, pois que todos eles realçam de uma forma brilhante a qualidade do texto que o Rui nos apresenta!
ResponderEliminarDá para perceber bem os horrores porque passaram os nossos jovens nestas guerras coloniais!
É fantástico como a pesar desses horrores e tal como o Rui escreve ainda recordam com emoção o fascínio que essas terras, a sua gente, a sua paisagem ainda hoje lhe está entranhado no seu pensamento!
Admiro-vos muito!
Uma vez mais, Rui Felício traz-nos os sabores de África, deleita-nos com a sua observação humanista, enriquece-nos com os conhecimentos que adquiriu e com a experiência que foi obrigado a viver.
ResponderEliminarTal como o Abílio, fui poupado à terrível guerra colonial e assisti a ela como se de drama longínquo se tratasse, estando hoje sem saber se foi sorte, pelos perigos que não corri, ou azar pelas ricas experiências que não vivi.
Tenho muito respeito por todos aqueles que foram obrigados a provar a picadela do mosquito, sabendo que eram vitimas e nunca querendo ser heróis.
É fabulosa a referência, no último parágrafo do texto, à "nossa estúpida prosápia de senhores do Universo".
Uma abraço e parabéns por mais esta bela peça.
Rui,a tua partilha connosco de maus momentos
ResponderEliminare de momentos mais lindos que pudeste contemplar, contados com emoção e de uma foma poética, naquela horrenda guerra a que foste obrigado, são uma mais valia para nós...por vezes,indiferentes talvez por ingnorância ou comodismo!
Tal como a gazela as lágrimas espreitam.... por tudo o que tu passaste e os teus companheiros e o povo guineense.
Um beijo
Rui Felício,
ResponderEliminarQue tenha sido na Guiné, Angola ou Moçambique, todos os que andaram lá por fora sentiram os seus maus momentos a uma certa altura mais ou menos longa, mas pelo que pude presenciar por duas vezes e acompanhar através de um amigo que passou aí alguns anos, a Guiné era o "inferno".
Lembraste-me o paludismo que me atacou algumas vezes, pois tive mais do que tempo para isso mas jamais me esqueço de um colega a transpirar por todos os poros: a cama tremia com ele. Passou horas difíceis. Em Moçambique, para os lados de Tete além do paludismo, era a bilargiose a perto de oitenta por cento na água, que ninguém queria apanhar.
O pôr de sol, os animais, mesmo certos tipos de insectos, que maravilha. Quanto às plantas, andava sempre a ver se encontrava uma carnívora. As trovoadas baixas, as chuvadas com o cheiro africano da terra que nos deixavam encharcados mas que pouco tempo depois já estavamos sêcos, tão diferente do continente. Por contra, este tipo de trovoadas e chuvadas, também por aqui se encontra.
Tive a sorte, principalemente na vida civil de acompanhar a forma de vida daquelas gentes mas passar parte da noite ao luar a conversar com um velhinho de cabelos brancos, a dissertar com os olhos no horizonte, era uma lição. Por outro lado, no meu tempo, o animal selvagem que caíu numa armadilha e ainda bem, foi um leão. Estou certo que quase todos os que por lá andaram e leram este exelente artigo, veio-lhes à cabeça o que cada um chama "a minha África".
Obrigado meus amigos pelos vossos comentários que patenteiam a sensibilidade que os caracteriza e que por vezes parece ter desaparecido dos nossos espiritos corrompidos pela materialista sociedade em que vivemos...
ResponderEliminarPermitam-me uma referêcia particular aos comentários do Alfredo e da Isabel Parreiral, que, não tendo felizmente vivido os horrores da guerra, conheceram e apreenderam o sortilégio de um mundo diferente daquele em que vivemos e que deixou indeléveis marcas a quem por lá passou.