Alto, careca luzidia e nariz afilado, assim era o Sargento Gonçalves. Nasceu lá para as bandas da Praia da Vitória, esse precioso rincão açoriano. Um dia, rumou ao continente, onde assentou praça como magala. Resolveu, então, enveredar pela carreira das armas. Passo a passo, lá se foi guindando na hierarquia do exército, até ao dia que viu repousarem-lhe sobre os ombros as insígnias de sargento. Para quem tinha como horizonte o isolamento da ilha Terceira, e um lugar cativo na agricultura, a distinção militar sabia a mel. Uma tarde, cruzei-me com ele nos caminhos da vida. De mala de cartão e mochila às costas, entrei em Canjadude. O meu segundo lar, depois de Madina Mandinga. E foi naquele cenário de guerra, que me vi albergado num abrigo escuro. Na penumbra, vi um tipo deitado no seu catre, a ler um jornal. Era o Calado, um cubano do Baixo Alentejo. Mirou-me com desdém e disparou: “ …oh pá, tu é que és o novo gajo que vem para cá? …”. “ … Sou…”, respondi, com voz titubeante. Continuando a olhar distraidamente o jornal, o meu camarada de armas foi acrescentando: “ … olha pá, essa cama aí ao lado é a tua, mas não te deites já, que o “Chico” Gonçalves vai aparecer por aí, para te convidar para uma partida de “damas …”. E realmente o alentejano parecia que era bruxo. Todo sorrisos, o Gonçalves lá entrou na caverna, disposto a depenar-me ao jogo. Rumámos então ao bar do aquartelamento. Tabuleiro à frente, olhos nos olhos, começaram as hostilidades. Joguei à defesa. Não mexi no meu triângulo recuado, disposto a retardar a derrota, ou a filá-lo de qualquer maneira. Tarefa inútil. De uma assentada, o Gonçalves “comeu-me” quatro preciosas pedras e fez “dama”. E foi assim durante cinco jogos. Á medida que me ia zurzindo, comecei a odiá-lo. Dava ares de superioridade, enquanto ia bebendo o seu generoso Whisky. Depois de cada golada, arfava de prazer, como uma fera saciada, depois de engolir a presa. No fim do jogo, cumprimentou-me, protocolarmente. Continuava a ser o campeão. Ainda ninguém que tivesse posto o pé naquela unidade, o tinha vencido. Até que chegou o Costa. O Costa era soldado, e em termos de aparência visual, entrou pela porta pequena. Baixote e atarracado, trazia a barba por fazer, a fralda da camisa de fora e o cabelo num reboliço. Completava o quadro, umas bochechas rosadas e uns olhos azuis suplicantes. Depois de deixar a mochila no abrigo, o Costa lá seguiu para o bar. Recomeçava o holocausto. Frente a frente, o Costa olhava para o Gonçalves de semblante tranquilo. O mesmo não acontecia com o Sargento, que depois da terceira derrota consecutiva, viu as bagas de suor a escorrerem-lhe pela testa. Os telefones dos abrigos começaram então a tocar. O Gonçalves estava a “enfardar” cinco a zero. Num ápice, o bar encheu-se. À sétima partida, que o mesmo é dizer, à sétima derrota, o Gonçalves rosnou um palavrão de caserna e saiu do bar. O Costa continuava sentado, de semblante sereno. Depois, com uma voz ainda mais suplicante que os mortiços olhos azuis, disparou para a assistência a seguinte conclusão: “ … acho que o “Sórja" ficou lixado …”. Foi a gargalhada geral, com o Costa que tinha entrado no quartel pela porta pequena, a sair do bar pela porta grande, muito cumprimentado. Quanto ao Gonçalves, recolheu-se no abrigo. E não consta que tivesse desafiado um qualquer outro novato para o jogo. Antes que lhe aparecesse pela frente outro Costa de olhos azuis, bochechas rosadas e cabelo em reboliço …
Quito Pereira
Quito Pereira
Quito,
ResponderEliminarPassei o tempo de leitura a sorrir-me. Acabas de me recordar o que era no meu tempo um "chico" na tropa, sargento de profissão e lateiro de mentalidade. Como adepto do Costa, que entrou pela porta pequena,olhos azuis, bochechas rosadas e cabelo em reboliço …. Cá vou sorrindo
Ém teatro de guerra penso que estas questões de subalternização são mais atenuadas que em tempo de paz e nos quartéis.
ResponderEliminarTambém andei na tropa, Ral2 em Coimbra e Vendas Novas.
E os mais graduados, salvo rarissimas excepções, eram muitas vezes propotentes nas palavras e nas acções.
Até nem frequentavam as mesmas zonas:havia a cantina dos sargentos, a messe dos oficiais,a sala dos praças, etc.
O que quer dizer que não seria fácil um graduado do quadro( com os chamados milicianos era diferente)jogar damas com um soldado, mesmo que estivesse seguro que ganhava!
Lá em Canjadude ou Madina Mandinga, ou em qualquer outro cenário de guerra e num buraco ao abrigo das ciladas do inimigo a hieraquia seria mais diluída, penso eu!
O Gonçalves fez uma retirada estratégica...sem estilhaços!
Tens o dom da escrita que permite tornar uma "estória" simples passada em campo de guerra, num texto agradável de leitura!
Vai á taberna do João e bebe um copo, diz-lhe que aponte que quando aí fôr vou pagar!
Uma história muito bem contada.
ResponderEliminarTambém me fez lembrar um capitão nas Caldas da Rainha, todos os dias ganhava grades de cerveja que apostava com o pessoal, em como era capaz de repetir 50 palavras, aleatórias, pela mesma ordem e também da última para a primeira. Ganhava sempre até que eu apostei com ele em como não era capaz de repetir uma só que eu lhe diria!... Riu-se, apostou, e eu disse a palavra!
Ele perdeu, porque não a conseguiu repetir.
A palavra era:
DIODUOARZENOBENZALOMONOMETILENOSULFAXILATE
Esta palavra existe, não foi inventada.
A partida de Damas contada por um genuino contador de estórias do quotidiano...
ResponderEliminarClaro,gostei e vibrei com a derrota do Gonçalves!!!
Que boa pantufada a do Costa...toma lá,Gonçalves
que é para aprenderes!
Bem feita!
ResponderEliminarUm Gonçalves convencido...merecia uma derrota.
Boa estória,como é hábito.
ResponderEliminarLembrei-me do Galvão,nos corredores do Liceu,a jogar o abafa com os alunos,quando apareceram os cromos das "Raças Humanas"...
Um abraço.
Esse "Sorja" fazia parte daquela família que na tropa proliferava. Altivez, presunção e superioridade eram as características dominantes.
ResponderEliminarTambém conheci alguns mas acabaram, tal como este, com o orgulho ferido e de rabo entre as pernas lá se remetiam à sua mediocridade.
O Quito pelo que vejo não tinha feito parte da Academia do Silva, de outro modo tinha encostado o Sargento à parede.
ResponderEliminarSe não fosse no jogo propriamente dito, sê-lo-ia pela terminologia para derrotar psicológicamte o adversário.
- Olhe que assim eu vou-lhe comer a sua dama!
ou
- Vou colocar aqui um prego que você nem se pode mexer...
Ou
- Se você avança, faço-lhe uma judia...
Ou
- Como-lhe os três que você deixa logo de ser virgem...
Ou
- Agora vou para o rego e ficamos empatados...
Ou
- Faço-lhe um pé de galo que é canja!