terça-feira, 30 de novembro de 2010

A CRISE E OS AGIOTAS


Na Rua Augusta, como num labirinto, ia contornando aquela multidão de pedintes ou vendedores de inutilidades, que se me dirigia de mão estendida. Uma mulher, mais afoita, espetou-me na lapela uma medalha com uma fitinha verde e vermelha, pedindo-me esmola para a Nossa Senhora. Devolvi-lhe a medalha e recusei a esmola, deixando-a para trás, a resmungar entre dentes qualquer coisa ininteligível.
Outra, quis me vender pensos. A seguir, um velho exibia uma perna nua, deformada, cheia de chagas, com um cartaz de papelão pendurado ao pescoço, a pedir ajuda para matar a fome.
Mais à frente, defronte duma luxuosa montra, um homem de meia idade tocava num violino uma melodia suave, algo deprimente. A dignidade da sua imagem destoava dos mendigos que enxameavam a rua. Fixei o olhar naquele rosto que não me era estranho e aproximei-me para depositar uma moeda na caixa de cartão que jazia a seus pés.
Subitamente, o homem parou de tocar e virou a cara. O seu semblante denotava uma indisfarçável vergonha. Constrangido, num lampejo, lembrei-me dele. Era o Sr. João, solteiro e sem filhos, que tantas vezes vi actuar integrado na orquestra que executava as partituras dos espectáculos de ballet do São Luis, em que a minha filha entrou nos seus últimos anos do Conservatório.
Com a crise, perdera o emprego que tinha exercido a recibo verde, e na aflição de tentar pagar as dívidas dos seus créditos ao consumo, recorreu a um agiota de um 3º andar da Rua dos Fanqueiros que lhe cobrou juros altíssimos pelos capitais emprestados.
Esclareci-o que a usura é crime definido no Código Penal. Que os juros não podem ultrapassar o limite legal. Que fica sujeito a pena de prisão todo aquele que cobrar juros desproporcionados, provocando conscientemente a ruína da vítima. E que, por isso, devia apresentar queixa do agiota.
Disse-me que já o fizera, mas que o processo corria lenta e placidamente no meio de milhares de outros.
Entretanto, tinha que ir sobrevivendo.
É nos tempos de crise que os homens e os Países mostram a sua face mais cruel, devorando, como abutres, a carne putrefacta dos moribundos...


Rui Felício

20 comentários:

  1. É um texto, real, comovente e revoltante. É difícil, muito difícil, para mim, comentar esta pérola negra. Até tenho respeito pelos abutres. Pelos outros. Por aqueles que compõe a vasta fauna das aves. Que apenas se regem pelo instinto de sobrevivência. Os outros, o que se aproveitam da miséria humana, são outra fauna. Uma abjecta e infame fauna.
    Abraço felício

    ResponderEliminar
  2. É deprimente e confrangedora a situação que vivemos nas ruas deste nosso País em que somos confrontados, a cada passo, com a crise real que afecta os deserdados pela sorte e beneficiários da infelicidade.
    Rui Felício, talvez por ser uma situação triste e que a todos envergonha é que escreveste a negro esta triste realidade.
    São tempos difíceis os que vivemos e ser solidário passou a ser uma obrigação.
    Abílio

    ResponderEliminar
  3. Vês, Rui Felício? Estas situações é que são pornografia! E há tanta por aí...

    (pus o texto a branco porque estava a preto e não se conseguia ler)

    ResponderEliminar
  4. Fizeste bem São Rosas, obrigado.
    Tinha estranhado essa referência no comentário do Abílio que recebi via telemóvel e calculei que tinha havido algo com a cor do texto.

    ResponderEliminar
  5. Esta situação, em que só o nome do violinista é fictício, e que divulguei, há uns dias, junto de colegas da minha filha que também o conheceram, já deu origem a um movimento de solidariedade, no sentido de lhe ser arranjado trabalho em espectáculos da Companhia Nacional de Bailado. Sabe-se, porém, que a exiguidade das verbas da CNB provenientes do Ministério da Cultura e dos patrocínios da EDP, dificulta a ajuda...

    ResponderEliminar
  6. Amigo Felício fiquei sensibilizado com a situação descrita, e ocorreu-me que talvez fosse altura de nós, como um grande grupo que somos,nos organizarmos numa campanha solidária.
    Venham as sugestões.
    Eduardo

    ResponderEliminar
  7. Rui, este texto é incrível! Faz-nos pensar e fica-nos um nó na garganta, de tristeza e revolta!...
    Se houver campanhas de solidariedade, contem comigo. Só teremos que ter o devido cuidado para não ferir mais a dignidade do Senhor.
    Porque não, convidá-lo para actuar numa das nossas mais próximas festas?

    ResponderEliminar
  8. De facto, Rui, é triste este teu relato... oxalá ele fosse uma das tuas bonitas ficções... mas temo que o não seja. Os músicos de rua sempre me impressionaram e me sensibilizaram; oferecem a sua arte a troco de quase nada.

    ResponderEliminar
  9. Comovi-me com a situação e comovo-me agora com a vossa sensibilidade. Somos todos de uma geração especial, não é imodéstia afirmá-lo.

    Registo as ideias do Zé Eduardo e do Alfredo.
    Tenho uma audiência marcada para o dia 14 de Dezembro com o Jorge Salavisa que já foi Director do CNB e da ex-Companhia da Gulbenkian, que foi agendada pela Filipa, actual bailarina do CNB e que foi colega da minha filha, que juntamente com outros bailarinos seus colegas me acompanharão para lhe pedirmos ajuda.

    Sou de opinião que a forma de salvaguardar a dignidade do violinista ( desculpem continuar a ocultar o seu nome )é dar-lhe emprego. Mais do que esmola, é disso que ele precisa...

    Infelizmente não é ficção Rui Pato...

    ResponderEliminar
  10. É uma situação dramática que provém em primeiro lugar do desemprego que está a atingir milhares e milhares de portugueses e muitos mais irão surgir, dados os cortes orçamentais que estão a ser aplicados em resultado da crise provocada "por alguns poderosos/ganaciosos sem escrúpulos, e estratégicamente secundados pelos tais"agiotas", que fazem a sua riqueza à custa
    do desespero dos que são apanhados neste flagelo da falta de emprego!
    Neste caso concreto e cuja veracidade tem o aval do Rui Felício o blog Encontro de Gerações está aberto a qualquer iniciativa que possa de algum modo contribuir pararesolver alguns dos problemas mais prementes do "Violinista"
    No entanto terá que ser, em minha opinião, o Rui Felício a determinar a altura e a maneira mais prática, (ou para já ou para depois da reunião que vai ter no dia 14) de concretizar-mos a iniciativa.

    ResponderEliminar
  11. É um imperativo de consciência voltar aqui. Comoveu-me essa tua disponibilidade Rui, juntamente com as gentes das Artes, na tentativa de solucionarem um drama. Tu, meu caro Rui, és um Homem Bom. No dia em que nos voltámos a reencontrar depois de tantos anos, fiquei mais rico. Obrigado por também partilhares a Tua amizade comigo. Muito à moda Beirã ...Bem - hajas ...

    ResponderEliminar
  12. Tal como já foi dito,esta é uma situação pornográfica.
    O negócio da miséria alheia,desde que o homem é homem,sempre foi fortemente incentivado para produzir os tais lucros pornográficos.
    Oxalá a reunião tenha efeitos positivos.

    ResponderEliminar
  13. Nas primeiras linhas do teu texto, fizeste-me rever o "labirinto de pedintes" que, há pouco mais de um mês, tive de ultrapassar ao subir a Rua Passos Manuel, no Porto.
    Seriam dez horas da noite, depois de um bom jantar, dirigindo-me para a Praça dos Poveiros onde tinha o carro estacionado, deparei-me com um autêntico exército de deserdados da vida.
    O desespero dá-lhes alguma agressividade que é "incomodativa" para quem ainda vai tendo formas de sobreviver neste mundo cão.
    Essa "agressividade", penso eu, é reivindicativa...
    Será a única forma de manifestar a sua revolta pela exclusão a que esta sociedade os votou.
    Claro que a boa digestão do meu jantar ficou prejudicada...
    Cá por Coimbra, não é tão visível este deprimente quadro social.

    O "teu" Sr. João é, também, uma das grandes vitimas desta sociedade. Será das maiores vitimas e das que mais sofrem com a falta de valores da nossa sociedade.
    O Homem, hoje, mas desde há mais tempo do que o que se possa julgar, não é mais do que uma "coisa". A "coisa" é útil até um determinado momento, a partir daí, deita-se fora a "coisa".
    É a tal questão do descartável, não é verdade?

    Que sejas bem sucedido na tua tentativa de restituir emprego ao "teu" Sr. João, são os meus votos.
    Pelo que dizes, bem o merece. E é, afinal, só uma questão de reposição de justiça social.

    Para ti o meu abraço solidário, porque és um Homem solidário!

    ResponderEliminar
  14. Não resisto a retomar um tema recentemente, entre nós, “discutido”.
    O Rui Felício bem alertou o Sr.João para a existência de uma Lei que proíbe a usura.
    Que é crime previsto no Código Penal, que os agiotas estão sujeitos a prisão…
    E lá lhe contrapôs o Sr.João: - pois é, mas o processo é moroso, e eu tenho de ir sobrevivendo.
    Retomando a nossa “discussão”:
    A injustiça da Justiça não acontece tanto por falta de Leis justas.
    Acontece, isso sim, pela falta do seu cumprimento. Pelo abuso dos poderosos, mesmo que simples agiotas, pela falta de capacidade económica dos abusados para se defenderem.
    Falta uma Lei que dê voz de prisão a quem contorna, distorce e violenta os direitos dos mais frágeis.
    Porque, sendo frágeis, não se conseguem defender…
    Então, a única solução seria a existência da tal Lei. Mas essa Lei teria de ser criada pelos mais fortes…
    E temos aqui a quadratura do círculo!
    Outro abraço.

    ResponderEliminar
  15. Um caso real do quotidiano...dramático!
    Ainda bem que já despoletaste uma onda de solidariedade entre os seus próprios amigos...
    Que surtam bons resultados!
    Há histórias de vida comoventes e,emergem,todos
    os dias,mesmo paredes meias com as nossas casas...
    SER SOLIDÁRIO é o que devemos e podemos ser!

    ResponderEliminar
  16. Caros amigos, quando sugeri que nós como grupo deviamos ser solidários não me referia só a este caso concreto mas também a termos uma intervenção cívica,( exemplo ) o nosso amigo Rui Pato e Rafael têm participado em almoços que indiretamente contribuiem para a casa dos pobres.
    Estou certo que hão-de aparecer mais sugestões quanto mais não seja do nosso dinâmico Rafael.
    Eduardo

    ResponderEliminar
  17. Rui fiquei com um nó na garganta e um aperto no coração, com o caso que relataste, da dignidade ferida desse senhor! Infelizmente é o pão nosso de cada dia e perante a triste realidade deste País, não sabemos nunca o que nos espera!É deprimente ouvirmos todos os dias casos de famílias desfeitas, desempregadas sem possibilidades de alimentar os filhos, sujeitando-se a tudo para ganharem uns míseros tostões, os suicídios diários dos que com um espírito mais fraco não se conformam com uma vida diferente da que tiveram, enfim um caos, um autêntico atentado à dignidade e à condição humana,a que, minimamente todos têm direito a usufruir.
    Já li que se está a tentar formar uma onda de solidariedade para dar uma mão a esse Senhor, que sabe Deus com que vergonha, mas com que dignidade se sujeita, para receber umas moedas,a tocar num passeio público!
    Se eu puder ajudar nalguma coisa, quero que saibas, querido Amigo, que podes contar comigo, seja para o que for!
    Um forte abraço,para esse teu coração, que mais uma vez, mostra a amizade e a bondade de que é feito!

    ResponderEliminar
  18. O meu grande desejo Rui, é conseguires que o "Sr. João" tenha uma bela prenda de Natal!
    A tua intervenção no caso só poderá ser bem sucedida.
    Vamos ajudar as "cigarras" que nos animam o espírito, a sobreviver com dignidade.

    Aos agiotas, olha...Dum-Dum, que mata a bicharada nociva.

    ResponderEliminar
  19. Ainda bem que o "Sr. João" tem quem se intersse por ele. Infelizmente casos destes há por todos os lados e assim pessoas honestas e trabalhadoras, derivadas à situação económica que se vive nos dias de hoje, caiem nas mãos dessas gentes. Infelizmente, muito deles, por causa de morosidade dos serviços de justiça ou por esgotamento económico, caem na desgraça.

    ResponderEliminar
  20. Rui a tristeza e a revolta estão de mãos dadas. Simplesmente desejo que o final do " Sr. João ", seja positivo, embora saibamos que o caminho que nos espera seja vergonhoso, construído em cima de corrupção e mentira. Beijinhos Rui e obrigada !!!

    ResponderEliminar