" ...Vidas de labuta.Vidas sofridas ..."
Regressaram os dias ternos. Uma dádiva, neste caminhar de Outono. Lá fora, num silêncio solarengo, perfila-se o porte majestoso das montanhas. É o apelo do Moradal, da Gardunha e da Serra das serras – a Estrela - que me enlaçam. Vou deambulando por este Lugar de solidão. Ali, junto a um muro, uma nora. Há muito que deixou de laborar. Finou-se por entre as ruínas do Tempo. Resta a Memória. A estrada, estreita e alcatroada, vai dançando ao sabor das linhas de água. Parece dirigir-se para o infinito, até ser tragada pelo perfil austero das montanhas. Quase um mistério. E neste mistério de um tempo sem Tempo, uma paragem de camioneta da carreira. No clamor dos dias que se sucedem, um traço de civilização. Porque ali, no ventre daquelas montanhas, vive um povo. Gente que nasceu longe dos grandes centros. Gente sofrida. Décadas e décadas lavrando a terra que lhes dá o sustento. E que lhes permitiu criar os filhos, que um dia partiram em demanda de melhor sorte. Foi então que ficaram sós. Velhos e sós. Na paragem da camioneta da carreira, uma mulher. Idosa, tapa a cabeça com um lenço negro. E de lá de dentro, de dentro do lenço negro, os destroços de uma cara sofrida. Uns óculos graduados que já conheceram melhores dias, pendem-lhe sobre o nariz afilado. Aguarda, paciente, a chegada do transporte para casa. Não sabe o horário da camioneta. Talvez espere duas ou três horas. Não é relevante. Tem oitenta e nove anos e habituou-se a caminhar pelo Tempo com resignação. Como vou para a Lameirinha, dou-lhe boleia. Aceita. Trata-me por “meu senhor” e desfaz-se em agradecimentos. O cruzamento da Martim Branco é o destino. É ali que vive, numa casa portuguesa de branco caiada. O marido, com noventa anos, arfando de asma, espera-a.” … Dorme mal, tem que ter uma máquina ligada durante a noite para dormir…” – diz-me.”… Esta noite foi um calvário. Andei toda a noite levantada …”, acrescenta. De dentro do meu velho carro, vai erguendo a cabeça no intuito de ver a estrada. As mãos ossudas e negras, fruto de uma vida de trabalho, repousam cruzadas sobre o magro regaço. Junto à sua habitação, o fim da viagem. Quer oferecer-me um frasco de mel. Recuso com um sorriso e retomo o meu caminho. Pelo retrovisor, vejo-a ficar plantada no meio da estrada, olhando o carro que se afasta. Ao volante, vou cogitando que deixei naquele Lugar, mais uma heroína anónima deste rincão profundo da Beira - Baixa, agachado entre montanhas. Chama-se Matilde.”… um nome invulgar, de quem ninguém gosta…” – disse-me. Mas eu gosto. Eu gosto da Maria Matilde. Talvez um dia eu pare o carro e lhe vá bater à porta, resgatar o frasco de mel …
Quito Pereira
Quito Pereira
Eu também gostei da Matilde... muito.
ResponderEliminarQue mais te posso dizer sobre estes teus textos!
ResponderEliminarTransportas-nos para uma realidade que nem todos querem perceber, antes pelo contrário fogem dela!
Se lhe aceitares o mel a Matilde fica agradecida!
Pode parecer pieguice, mas os olhos humedeceram-se-me com a tua crónica, Quito.
ResponderEliminarPela Tia Matilde, coitada...
Mas principalmente por ti que és um homem bom como já há poucos.
Acho que deves aceitar o frasco de mel, porque isso dará á Tia Matilde a alegria que ela merece.
Um texto que nos transporta, com facilidade, para os lugares descritos. Com toda a sinceridade, acho que devias ter aceitado o frasco de mel!...
ResponderEliminarNão se preocupem com o mel, amigos. Virá ter-me ás mãos, mais dia menos dia. Há um "protocolo" próprio, desta gente boa e simples. Um dia a Ti Matilde voltará. No merendeiro trará o frasco prometido e um muro de lamentações da sua vida agreste. Então restará ouvi-la com a atenção que ele quer e merece, e incutir-lhe um sopro de esperança ....
ResponderEliminarUma história dum momento com gente simples e sofrida no inóspito dum lugar sem tempo.
ResponderEliminarObrigado Quito, por nos trazeres ao nosso conhecimento a outra realidade das pessoas das Beiras, e a forma como descreves essas paisagens que só uma sensibilidade como a tua consegue interpretar.
Um abraço
Abílio
Quito
ResponderEliminarQuando andas por essas terras beirãs, para além de fazeres as funções em prol da farmácia, fazes de Assistente Social e Psicólogo dessas pessoas, e por certo que ficas reconfortado ao teres estes "clientes", mesmo que o "pagamento" seja um frasco de mel.
Gostei muito de todos os teus textos.
Beijos para ti e para a São.
Parabém meu caro amigo Quito!
ResponderEliminarMais um...
E para quando o Livro!? A Babel...ou mesmo a Minerva!!!
Abraço
José Leitão
Pois eu gosto muito do nome Matilde, da tua boa acção e do teu texto.
ResponderEliminarParabéns e beijinhos pra ti e São
Amiga Helena Morgado
ResponderEliminarNum meio rarefeito de gente, onde se conhece quase toda a população 50 quilómetros em redor, é normal dar-se boleia a quem está à beira da estrada ou na paragem de carreira. Não houve da minha parte uma "boa acção". Apenas a solidariedade de quem vive isolado, nestas terras do Interior.
Abraço para ti e para todos os que me dedicaram amáveis palavras ....
Uma boleia, quando se espera a carreira depois de um dia de trabalho, sabe tão bem!
ResponderEliminarUma boleia de "um senhor" como o Quito, não tem preço!
O mel da dona Maria Matilde, uma riqueza sua, tão valiosa e tão doce como o seu nome, lá te irá ter.
Duas boas almas que se cruzaram em diferentes, ou talvez não, caminhos da vida.
Que posso dizer?!
ResponderEliminarObrigado,Quito.
Um Abraço.
ResponderEliminarQuito.
Tu já és um deles...sentes,falas,ages,ris e choras como as Matildes dessa Beira que adoptaste
ResponderEliminarcom amor de proximidade.
Solidário e comunitário...até o teu carro velho
é a carreira dessa boa gente!
É por tudo isto que gosto muito de ti.
Maria Matilde soa-me muito bem e até ia bem acompanhada. Um abraço,
ResponderEliminarUm frasco de mel que compensaria a doçura com que o Quito sente o Povo mais desfavorecido.
ResponderEliminarMais um belo quadro de amor pelo próximo.
Abraço.