sexta-feira, 15 de outubro de 2010

ALCOOLISMO E MISÉRIA

Ao fundo da ladeira de quem descia do Bairro para o sinaleiro do Calhabé, antes da passagem de nível do comboio da Lousã, existiu durante anos um velho casebre de madeira onde vivia a Porfíria.
Porfíria bêbada” era o que a criançada lhe chamava na sua inconsciente crueldade infantil.
Alcoólica em grau extremo, vivia da caridade das pessoas das redondezas a quem esmolava uns tostões que depois gastava na taberna, onde dava de beber ao seu vício.
O vinho e os bagaços tiravam-lhe a noção do tempo e levavam-na, por vezes, a bater à porta das casas do Bairro e da Estrada da Beira, de dia ou de noite, para pedir uma esmolinha.
As pessoas, para evitarem os berros em que a Porfíria desatava quando não lhe acorriam com a celeridade desejada, apressavam-se a desembolsar-lhe os trocos que ela reclamava.
Certa vez, a dona da casa onde ela tinha ido bater à porta, resolveu não a atender. Era Noite de Natal, a família estava reunida para o jantar da consoada e ela achava que o abuso passava as marcas.
Mas a gritaria era tanta que, para se livrar da alcoólatra, acabou por pegar no porta-moedas, tirou duas e abriu a porta.
Espantoso! Desta vez, a Porfíria não vinha pedir esmola! Trazia um urso de pano que queria oferecer como prenda de Natal à filha mais nova do casal.
A dona da casa não queria aceitar aquele brinquedo velho e ensebado, e recusou repetidamente a oferta. Mas, perante a veemente insistência da Porfíria e a conselho do marido, acabou por aceitar o urso, só para se ver livre dela.
O brinquedo foi lavado e a criança passou a dormir com ele na cama. Ganhou uma enorme afeição pelo velho urso...
Tempos passados, a Porfíria voltou a bater à porta daquela casa. Sem explicação, reclamava em altos berros a devolução do urso. Coitada, era o vinho a falar e não ela, mas a exigência era peremptória...
Para evitar o escândalo da gritaria daquela desgraçada, a dona da casa que olhava constrangida as persianas de algumas casas vizinhas a abrirem-se para assistirem àquela patética cena, foi buscar o urso e devolveu-o à Porfíria.

No dia seguinte, na mercearia do Sr. Nunes, em conversa com uma vizinha do Bairro, contava o sucedido. A outra disse-lhe:

- Muita sorte teve a vizinha! A mim, já me aconteceu coisa parecida e o escândalo foi muito maior. A Porfíria, uma noite, ofereceu-me um frango, que nós depenámos e comemos. Uns dias depois veio exigir-me, aos berros, que lho devolvesse!
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Rui Felício

16 comentários:

  1. Um artigo que faz sorrir e pensar. A situação que pessoas viveram derivado à noção de vergonha do tempo em que se vivia e o estado a que pode chegar o ser humano, por vezes por problemas mais ou menos profrundos mas que numa grande maioria teriam sido resolvidos se as pessoas sentissem à sua volta muita compreensão nos momentos iniciais das suas dificuldades, amor e carinho. Gostei de ler este artigo.

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  2. O nosso Bairro é um manancial de estórias. Muitas jocosas. Outras nem tanto. O Felício é o narrador-mor das estórias do nosso Bairro. Uma memória prodigiosa, admitamos. Este texto tem sentimentos contraditórios. O pesar por tão desgraçada vida da Porfiria. A prenda de Natal de quem nada tinha para dar. O pedido de devolução da prenda, que, para mim, é apenas o retrato de quem tinha o espírito toldado pelo vinho, afinal o refúgio perante uma sociedade egocêntrica e egoista que rejeita os deserdados da vida. Resta a estória da galinha. Um sorriso amarelo que bem poderia ser bem franco, se a estória tivesse outros contornos.
    Abraço Felício

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  3. Não me lembro deste personagem. Mas vem na tradição de quem deu o seu nome ao Calhabé. Calhabé, segundo consta, era um alcoólico que era protegido pelos habitantes da rua do Brasil.

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  4. Lembro-me muito bem dela. É curioso que quem me fez recordá-la foi o Rui Piçarra que me perguntou se eu me lembrava da Porfíria, da última vez que estive em Coimbra.

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  5. Quanto à origem do nome Calhabé também a conhecia.
    Quem repetia isso insistentemente era o Padre Pacheco na tentativa de habituar os meninos da catequese a chamarem àquela zona, não o nome Calhabé, mas sim S. José.
    Porque, dizia ele, o Calhabé tinha sido um bêbado.
    Como padre, devia era tentar ser compreensivo com a desgraça do tal Calhabé, mas, ao contrário, induzia-nos à sua marginalização.
    Esquecendo-se do que Cristo terá pregado de que dos mal-aventurados seria o reino dos Céus...

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  6. Estamos sempre a aprender. Desconhecia que o nome de Calhabé, estava ligado a um bêbado. O nome até me parecia ter raízes africanas.
    Lembro-me da Porfía. Perfeitamente. É como se visse a sua imagem aqui á minha frente. Um trapo humano. Uma desgraça ....

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  7. Da Porfíria lembro-me bem...
    Não conhecia o porquê do nome Calhabé.

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  8. Sempre me cruzava com ela quando ia para o liceu.
    Também não sabia a origem do nome Calhabé.

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  9. Os milagres do Senhor da Serra já atraíam os romeiros no século XVII.
    Conta-se que um grupo desses romeiros, caminhantes de fartas jornadas em direcção ao santuário, tomados pela sede num acalorado dia de Agosto, surpreendidos ao depararem-se com a bica da cheira (Fonte da Cheira), exclamaram: calha bem, calha bem!
    PM

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  10. Também conhecia a Porfíria não só Bairro mas porque descia e subia a rampa que ligava o Bairro, desde o fim da Praça de Ceuta até á linha do caminho de ferro.
    Também sempre ouvi dizer que o Calhabé era realmente um alcoólico....e o seu nome fica para sempre ligado a esta zona de Coimbra.
    E a ladeira do Baptista...não me digam que este deu o nome a esta parte da estrada da Beira por beber...água

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  11. Eu só só não conhecia esta da ladeira do Batista.(penso que é galga).
    O resto já conhecia.
    A minha Mãe chegou a levar comida à Porfíria.
    Tonito.

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  12. Não acredito Tonito que nunca tenhas ouvido chamar Ladeira do Baptista(com p)á ladeira que vai do fundo do Parque até ao colégio da Rainha Santa!!!!
    Quem me dá uma ajuda?

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  13. Médicos - Dentistas - Coimbra - Página 2Procurar "Médicos - Dentistas" em "Coimbra" nas Páginas Brancas .... R Particular-Ladeira Baptista 25-r/c, Coimbra 3030-253 COIMBRA. médico dentista

    ...por exemplo!

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  14. Chamava-se Belmira Santiago. Profiria era a alcunha. Tinha 1 filho ( que vive nos Olivais (?) e duas filhas ( Adelaide e a Maria que, hoje, deve ter à volta dos 60 anos ). Tinham como vizinho, o Sr. Sarafim, pastor.

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  15. Carlos: É isso, a Belmira era mulher do Porfírio Santiago. Eram uma das duas famílias que tinham residência no vasto espaço onde foi contruído o bairro. O filho reside na Quinta dos Malheiros, perto do Tovim.
    PM

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  16. Ora, assim sendo, a Belmira era Porfíria porque era mulher do Porfírio. Tem lógica...

    O Rui Felício tem o condão de tocar com a sua varinha a nossa memória.
    Eu também conheci a pobre mulher, a sua figura ressaltou após quase meio século.
    Claro que não fazia qualquer ideia de como se chamava e estou convencido que a história do pedido de devolução do frango é mesmo estória.
    É uma das características do Felício: embrulha o amargo num sorriso para que a pílula não seja tão azeda.
    Parabéns e obrigado por me trazeres à memória histórias da minha juventude que eu pensava estarem enterradas. Porque, mesmo que tristes, é sempre bom recordar tudo quanto nos envolveu aos 18 anos. E, penso eu, foram as Porfírias e os Porfírios, e mais os filhos de todos os Porfírios do mundo, que me ajudarem a cimentar uma intensa revolta contra a injustiça social.
    Revolta que mantenho e, confesso, é crescente e me entristece o final da caminhada.

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