domingo, 10 de outubro de 2010

ASSOBIO DIRECCIONAL


Certo dia, o Zé Luis Português e eu, fomos estudar antes dos exames do 5º ano do liceu.

Sentámo-nos numa antiga cratera aberta pelo arranque da raiz de uma oliveira, nos terrenos que ficavam ao lado do Bairro, sobranceiros à Arregaça, de onde às vezes se viam sem pagar, com a condescendência da polícia, os jogos do União de Coimbra que se disputavam, lá em baixo, no seu campo pelado.
Mirávamos, perto da vala da Arregaça, o Manel das Cabras, o seu rebanho e os cães que o ajudavam no pastoreio.
O Zé Luís, naquele dia, procurava explicar-me o que era e como funcionava a transmissão de ondas sonoras através do espaço.

Ensinou-me que o ouvido humano só captava o som emitido em frequências superiores a 20 Hz, mas que alguns animais conseguiam ouvir sons e ruídos de que nós, os homens, nem sequer nos apercebíamos.
Explicava-me ele, que os sons emitidos em baixa frequência, inferior aos tais 20 Hz, são de captação impossível pelos nossos ouvidos, mas que um cão, por exemplo, consegue ouvi-los.

Vendo o meu ar meio incrédulo, resolveu fazer uma experiência para comprovar o que dizia.
Iria emitir aquilo a que pomposamente chamou, “um assobio direccional”. Ajeitou os lábios e comprimiu-os como quem assobia, enquanto me olhava atentamente com ar interrogativo...

- Ouviste o assobio? – perguntou-me ele
- Eu cá não ouvi nada, pá! – respondi
- Ora aí está! Não ouviste porque o meu assobio foi modulado em baixa frequência! Nem os teus nem os meus ouvidos o poderiam captar... – concluiu o Zé Luis com aquele ar compenetrado e sabedor que se lhe conhece.

E prosseguiu:

- Mas agora presta muita atenção, lá em baixo, àquele cão cinzento do Manel das Cabras. Vou-lhe assobiar em baixa frequência e vais ver como ele reage, mesmo a esta distância.
Pouco depois, perguntou-me se eu tinha visto o cão espetar as orelhas e virar a cabeça.

Respondi-lhe que sim, mas que isso não queria dizer que fosse por causa do assobio, ora!
- Aliás, disse-lhe eu, nem sequer sei se assobiaste ou não...
- Tens muito que aprender, pá! Garanto-te que o cão se virou porque escutou o meu assobio direccional, coisa que nenhum de nós conseguiu ouvir! – sentenciou o Zé Luis.

Asseguro-vos que ainda hoje não sei se ele estava mesmo convencido do que me dizia ou se estava a gozar comigo. Inclino-me mais para a segunda hipótese...

Rui Felício

14 comentários:

  1. Assobio direccional, coisa de alta tecnologia.
    Continuo aprender todos os dias.
    Tonito.

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  2. Esta de ficar com dúvidas e não esclarecer de imediato a questão, nem parece do Rui Felício.
    E tinha bem à mão a solução. Bastava perguntar ao cão se tinha ouvido o tal assobio direccionado...

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  3. Iso fiz eu, mas o Manel das Cabras ameaçou-me com o cajado se eu continuasse a importunar o canídeo...

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  4. Este texto do Rui, ressalvando a situação jocosa, transportou-me a outras épocas do nosso bairro. Que o mesmo é dizer que de novo convivi com a saudade. Recordo aquele espaço onde ele e o Zé Luís Português estiveram. Os jogos no pelado do União, vistos com a condescendência da polícia. Curioso recordar que a rapaziada que gostava de ver os jogos daquele "3º anel", tinha sempre a preocupação de saber quem era o polícia que estava de serviço.Isto porque uns, com excesso de zelo espantavam e assistência borlista, e outros, mais compreeensivos faziam vista grossa.Da estória do assobio vou pela segunda hipótese. E para que esta narração fosse uma fábula, só faltou que o cão, em vez de dar às orelhas, tivesse posto um funil no ouvido como Vasco Santana na "Canção de Lisboa", e tivesse dito: ""Óh Português e Felício... ouvi perfeitamente V.Exªs " ...

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  5. Tantas recordações. O buraquinho aonde passei tão bons momentos. Vi-o recentemente, relativamente, numa fotografia com quatro meninos e uma menina saída num artigo. O polícia que não tinha nada que lá estar pois ninguém é responsável de ter nascido com olhos. Ainda apareceu um ou outro simpático pois os outros ou tinham excesso de zêlo como referiu o Quito, ou medo de serem punidos. Quanto ao assobio direcional, penso que os exércitos e as polícias andam a gastar dinheiro com os apitos para os tratadores de cães sem necessidade nenhuma, para mais estando sujeitos a perderem tão precioso instrumento quando mais precisarem. Se uma pessoa nesta idade se deve mexer, porque é que não fazer ginástica com a língua, dentes e pulmões? Há por aqui tanto cão a dar a voltinha da manhã que até vou experimentar. É verdade... talvez tenha que primeiramente ir medir as minhas "frequências".

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  6. Mas olhem que os sons abaixo dos 20 Hz são mesmo inaudíveis aos ouvidos humanos. Portanto o Zé Luis tinha razão quanto à teoria.

    Duvido é que fosse capaz de assobiar em tão baixa frequência.
    Daí as minhas dúvidas...

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  7. Estou divertida com o texto e com o diálogo
    destes bons malandros do meu bairro...

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  8. Tenho pena é que o Zé Luis não apareça por aqui para comentar.
    Ele iria confirmar esta história.
    Só o conheci bem, muitos anos depois, quando arrendámos em Lisboa um apartamento a meias. Apartamento esse que tinha sido do Virgolino que era outro "bon vivant", mas nesse tempo já casado...
    De facto, o Zé Luis por trás daquela máscara séria e compenetrada, onde despontam uns olhos azuis que eram a coqueluche das meninas de Lisboa, tinha ( e ainda tem ) um sentido de humor que muitas vezes as pessoas não conseguiam atingir...

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  9. Quando me referi aos apitos para tratadores de cães militares, foi por isso mesmo. Se estiverem numa frente, o inimigo não houve o apito. Da polícia, já ouvi dizer isso num média falado ou televisivo. Assobiu humano direcional, é que eu não conhecia mas aceito. É possível que tudo vá do treino e persistencia.

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  10. Que história engraçada! Lembro-me do Rui Felício, embora mais velho, penso que foi na casa dele que esteve hiospedada uma colega minha, do Liceu, que era de Tomar (não me lembro do nome),será?
    Quanto aos canídeos. como tenho marido caçador, conheço os ditos assobios inaudíveis para os humanos e audíveis para os cães, sem dúvida. Agora essa do assobio direccional... esse amigo era e espero que continue a ser, um grande brincalhão...inteligente! Ele vai ao encontro? Vou levar um assobio para fazermos a experiência científicamente...

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  11. Só agora passei por aqui e me dou conta desta maravilhosa história destes dois bons malandros.

    Conhecendo-os como conheço posso afirmar que com eles tudo é possível.

    Nunca ouvi o Português falar sobre este assunto, mas não me admirava que ele tivesse andado a treinar o assobio direccional com o seu Tarzan, terror da Rua C.

    Por outro lado, o Rui Felício detentor de imaginação prodigiosa que todos conhecemos, poderá ter criado esta história para ver se espicaçava o Português a vir por aqui a comentar o que foi escrito.

    Poucas foram as vezes que fui espreitar os jogos do União do "terceiro anel", mas lembro-me do tempo em que aproveitávamos as covas das oliveiras arrancadas junto ao Liceu Infanta D. Maria, para à noite, no meio da escuridão,irmos no Verão apreciar os astros que nos cercam e nos maravilham. Íamos competindo para ver quem descobria primeiro esta ou aquela constelação e, aí mesmo, com ou sem apito direccional também lá estava o Português.

    O José Luís Português Borges da Silva, em jovem sempre foi no bairro chamado por o "Português" e por isso assim a ele me referi.

    Um abraço a estes bons malandros e amigos.
    Abílio

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  12. Ele sabia que estes cães de 10 em 1o segundos fazem aquele movimento com as orelas!
    E vai daí...ele sabia que resultava fosse qual fosse " o papalvo"....
    Nota: esta última palavra usava-se muito naquele tempo...embora agora ainda existam muitos!

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  13. Agora lembrei-me de uma destes lados, pelo menos. Também há sons que os adolescentes ouvem e sofrem com eles mas os adultos, não. Tinham o hábito de ficarem a falar e mais..., em frente de certas lojas. Os proprietários põem um aparelho por cima da porta que emite esses sons e os ados não param lá. Os adultos já podem ver as montras, que é o que interessa ao comerciante. Aqui num colégio aonde estava proibido o uso do telemóvel na sala de aulas, os meninos iam para a sala com esses sons nos telefones. Quando tocava o telemóvel, como o professor não ouvia, o propietário pedia para sair. Um dia foram tantos a sair, que descobriram o problema. Resultado: proibido a entrada de telemóveis na sala de aula ou no colégio, já não estou bem certo. Não é só com os cães.
    Já agora mais uma daqui: neste momento está a correr um telejornal e a apresentadora está a entrevistar uma psicóloga, que nos explica quais as possíveis reações dos mineiros no Chile; antes, durante, imediatamente após a saída e nos tempos a seguir. Não querem que nos aconteça nada ao vermo-los sair no estado em que se apresentarem, pois poderíamos ficar também psicológicamente afetados. Isto é uma sociedade muito mental... Medecina preventiva mas francamente: se tal pode suceder para que é que transmitem o acontecimento? - Isto é areia demais para a minha tola.

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  14. O Felício, que tanto investiga, já devia saber se existe ou não o referido assobio!
    Estou com a Mariazinha.Façamos a experiência e a demonstração científica.

    A situação dos mineiros é uma "aventura" inédita.Oxalá que tenha um final feliz!

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