quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

ALCATRÃO COM ÁLCOOL


Tinha sido azul quando o comprou, ia para uns cinco anos, o fato macaco com que se vestia todos os dias. Dizia-se, aliás, que nem sequer o tirava para dormir. Muito menos para o lavar. Agora tinha uma cor indefinida entre o cinzento e o preto. Na cabeça um inseparável boné de feltro castanho aos quadrados, que disfarçava a poeira e a fumaça da caldeira que fervia o piche e o alcatrão com que a abastecia antes de começar o trabalho.
A caminho da estrada municipal de Santa Margarida onde andava a espalhar betuminoso para depois ser cilindrado, todas as manhãs ia parando a velha camioneta com a caldeira a fumegar, sucessivamente  na Casa de Pasto da D. Herminia no Entroncamento, na Adega Ribatejana à saída da Ponte da Chamusca, na Tasca do Preto no Tramagal e finalmente na Taberna da Lidia em Santa Margarida. Em todos os lados, o Alexandre Calceteiro ia compondo o estômago com uns tintos e uns bagaços. Para lhe darem ânimo, como costumava justificar-se.
Ao almoço deixava gorgolejar-lhe na garganta uma garrafa de sete e meio, para empurrar as batatas guisadas com borrego, que levava na lancheira. E de tarde ia bebendo umas minis para refrescar as ideias, como gostava de nos explicar.Era certo e sabido que ao fim do dia, a voz já se lhe entaramelava, mas o seu desempenho e eficiência no trabalho eram, paradoxalmente, irrepreensíveis, como toda a gente asseverava.
Certa tarde telefonou-me aflito. A Guarda tinha-o mandado parar na Golegã, fez-lhe o teste do balão e apreendeu-lhe a camioneta e os documentos.
Fui ter com ele, li o Auto da GNR e avisei-o de que no dia seguinte de manhã iria ser presente ao Juiz. Incentivei-o a aparecer barbeado, penteado e, se possível, com uma roupa limpa. E ele assim fez. Nem parecia o mesmo. Com uma camisa às riscas passada a ferro, umas calças cinzentas vincadas, sapatos engraxados e um ar temeroso, subiu a escadaria do Tribunal, cumprimentou-me e, naqueles minutos que antecederam a chamada, fui-lhe dizendo para estar calmo e, sobretudo, para não mentir ao Juiz. Pela minha parte, iria pedir clemência e a suspensão da eventual inibição de conduzir, uma vez que a carta de condução lhe era indispensável para ganhar o sustento, que obtinha exclusivamente através do seu trabalho, e para o qual era imprescindível poder conduzir a camioneta.
O Juiz perguntou-lhe se tinha bebido muito, como indiciava o teste. Realmente o papel acusava uma elevada percentagem de álcool no sangue. O Alexandre franziu o sobrolho, mostrou-se estupefacto, abanou a cabeça e negou ter bebido fosse o que fosse para além de água. De resto, há anos que o médico o tinha proibido de beber. E que não compreendia como é que o balão tinha dado tal resultado. Só podia ser avaria do aparelho, dizia ele! O Juiz pareceu querer acreditar no que ouvia, tal era a humildade, a compostura e o ar convincente com que o Alexandre depunha.
- Oh homem! Você nunca ouviu dizer que, quando assim é, o condutor tem o direito de pedir de imediato uma contra-análise? Porque pode haver enganos. Ainda por cima, com o Hospital da Golegã aqui tão perto, a dois passos do local onde a Guarda o abordou! É uma pena, homem, é uma pena, mas assim não se pode fazer nada!
- Diga lá, você não sabia que podia pedir a contra-análise?
- Por acaso sabia, sim, Sr. Dr. Juiz…
- E então, porque não a pediu?

O Alexandre, interpretando como complacente a atitude do Juiz, descontraiu-se, pensou que a coisa estava em vias de se resolver a seu favor e, num tom de voz mais baixo e já algo intimista, disse:
- Perdoe-me Sr. Dr. Juiz, e com sua licença, com a bebedeira com que eu estava, lembrei-me lá disso!
 Rui Felicio

13 comentários:

  1. Era um bom homem o Alexandre. Foi comigo uma vez a Madrid para avaliar uma máquina usada que estava à venda. Nunca tinha lá ido. Andava doido com La Movida madrileña...

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  2. Um exemplo de homem verdadeiro!
    E será que ficou absolvido? Torço para que sim, embora reconheça que muitos acidentes têm como causa o excesso de álcool...

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    1. A absolvição era dificil, convenhamos.
      Mas atendendo às circunstâncias e ausência de cadastro, ficou com a carta apreendida por seis meses, com pena suspensa, mediante o pagamento de uma caução ( na altura 200 contos, o que não era pouco )que recuperou no final do periodo da suspensão, por não ter cometido durante esse tempo nenhuma infracção grave.

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  3. Mais uma bela escrita.
    Um Abraço.
    Dias.

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  4. Continuas em grande forma,Rui.
    Já agora dou-te uma dica:
    quando estiveres com o Tonito pede-lhe que te conte a história do "Baliza".
    Vais ver que é assunto.
    Dará uma belíssima prosa.
    Um abraço.

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    1. Obrigado Rui. Quanto à história que referes, gostava de a conhecer. Mas o Tonito anda ocupadissimo, segundo me confidenciou. Passa noites em claro à espera da luz da lua ideal para fazer uma fotografia cujo tema se escusou a revelar-me. Segredo profissional.
      Mas anotei a tua dica e não vou deixar de insistir com ele.

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  5. Se o pobre do Alexandre Calceteiro tiver sido condenado, ao seu advogado o fica a dever pois foi este que muito o aconselhou a não mentir ao Juiz...

    Mais uma prosa à Felício.

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  6. Quem diz a verdade não merece castigo!... Embora o tribunal, seja um lugar onde a verdade, normalmente, não é dita!!!...
    A minha homenagem ao Alexandre!

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  7. Ontem, estive de dieta ao blogue. Mas tive angústia para o jantar. Mas tudo está bem, quando acaba bem. Foram mais de quatro décadas de jejum...

    Nada como mais um texto jocoso e real, para compensar o desgaste psicológico de ontem.

    A arte do Felício,bem espelhada em todos os pormenores narrados.A caraterização perfeita do Alexandre.

    Quem diz a verdade, não merece castigo, diz a sabedoria popular. Mas não terá sido o caso de tão grande franqueza.

    Do Alexandre, já o Rui me tinha confidenciado algumas outras "avarias", tendo como palco as ruas de Madrid.

    Mas são "pecados" para uma tertúlia de amigos e de fazer rir com vontade.

    Parabéns, Felício ...

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    1. Infelizmente, as "avarias" a que o Quito alude, e que já tive ocasião de lhe descrever, são incontáveis neste espaço de decência. Só de facto numa tertúlia de amigos a coberto de ouvidos mais sensíveis...

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  8. Os ouvidos do Rafael nem são dos mais sensiveis. Por isso mesmo usa o sonotone.

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  9. Esta história do Rui, lembrou-me uma reportagem que há uns três anos passou na tv, de uma patrulha que estava a fazer operação stop, com os respectivos testes de balão.
    Mandaram um homem soprar e a admiração do guarda pelo teor de sangue no álcool foi de tal ordem, que ele comentou "Oh!!Não pode ser..." Resposta do homem: "Não pode ser???Então eu estou c'uma bebedeira do caraças e o xô guarda diz que não pode ser???"
    Não sei é se ele chegaria ao juiz tão sincero como o Alexandre calceteiro...

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