quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

XAILES NEGROS, NEGROS LENÇOS ...

negro de sofrimento, negro de solidão ...
Cruzam-se comigo nas acanhadas ruas, o empedrado que lhes dificulta o andar, a bengala com que apoiam o seu desgastado passo de tanto ter palmilhado os dias. Pelos ombros, o xaile negro que lhes agasalha as costas dos rigores invernais. E também o lenço na cabeça, de onde sai um olhar vazio e umas farripas de cabelo cor de prata, que o percurso trilhado na vida já vai longo. E o luto. Do marido, do filho, da filha, irmão ou irmã, que já partiram. Preto, é a cor que lhes aconchega a alma. De negro se vestiram. De negro se vestirão. O resto da vida.
Para trás, ficou uma caminhada de trabalhos. No amanho das terras, dos filhos que nasceram pela Graça De Deus, do cuidar dos animais no estábulo, das noites estreladas e frias, dobrada sobre a lareira mexendo o caldo, das mãos geladas nas manhãs sombrias, a lavar roupa no tanque público. E do corpo, que há muito não pára de protestar de tanta canseira, os ossos moídos de tanto padecimento.
Um dia virá, em que as pernas dobrarão e os braços repousarão ao longo do corpo, quase inertes e incapazes da labuta diária. Um dia virá, em que os filhos, longe da fronteira ou na grande metrópole lisboeta, discutirão o que fazer da idosa. Um dia virá, em que irão decidir o futuro da mãe, que já se prevê breve. Um dia virá, que aquela mulher de xaile e lenço negros, repousará num banco de um qualquer lar, onde se antecipa a morte. Um dia virá, em que, saudosa dos filhos, os não verá chegar. É a Via Sacra, de quem se apresta a largar as amarras da vida. Na bagagem, vai um mundo de sabedoria antiquíssima, carimbada com a autenticidade da chancela do Tempo. E, serenamente, com o semblante sulcado pelas rugas que lhe certificam os dramas da existência, adormece serenamente e para sempre, no marasmo dos dias tristes. Os filhos, chamados à pressa, irão acompanhá-la à última morada. De preto se trajam, afinal, a cor com que a mãe se vestiu décadas a fio. E de negro, desce à terra. Com o rosto cansado, onde há muito se lhe tinha esmorecido o terno sorriso. E tal como o xaile e o lenço negros que a acompanharam uma vida, também o coração se despede de negro. Negro de sofrimento. Negro de solidão.
Quito Pereira (Janeiro de 2010)

15 comentários:

  1. A pungente imagem de uma velhice penosa, no ocaso de uma negra vida que se confundiu com o traje, é aqui descrita com o doloroso realismo da talentosa pena do Quito.

    O cenário é claramente rural, mas poderia ser urbano e por isso ainda mais cruel, porque se aqui ainda há o argumento da distância dos familiares, nas cidades nem essa desculpa colhe .

    Extraio esta frase do texto “Xailes Negros, Negros Lenços…”, servindo-me dela como mote, como premonição dos trilhos que esta sociedade está estupidamente a escolher:

    “Um dia virá que aquela mulher de xaile e lenço negros repousará num banco de um qualquer lar, onde se antecipa a morte.”

    Um dia virá em que os filhos que ela pariu, nem sequer discutirão o que fazer com ela.
    Um dia virá em que lhe criticarão mesmo os gastos inúteis em remédios.
    Um dia virá em que tão pouco virão acompanhá-la no seu derradeiro caminho para o cemitério.
    Um dia virá em que os que mandam no país que a viu nascer, desejarão, no recato hipócrita do seu pensamento, que ela termine depressa a viagem efémera da vida, para redução de custos com a sua sobrevivência.
    Um dia virá em que o xaile negro já não consiga sequer ocultar as profundas marcas do seu sofrimento.
    Um dia virá em que nem num lar ela tenha acolhimento, porque a magra reforma para tal lhe será insuficiente.
    Um dia virá em que, contrariando o natural instinto de sobrevivência humana, ela prefira abreviar o fim do seu caminho e do seu sofrimento.
    Para fazer na morte aquilo que afinal andou fazendo em vida: deixar felizes aqueles que a ignoraram.

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  2. ... e um dia virá, em que, como abutres, farão as partilhas dos magros haveres da falecido (a);
    ... e um dia virá, em que, embriagados de avidez pelos escassos bens, cortarão relações uns com os outros ;
    ... Mas um dia virá, em que assistirão ao seu próprio entardecer. É a suprema ironia do Destino. O equilíbrio impiedoso das Leis da Natureza;
    É o regresso à pureza inicial ...
    Abraço, Felício

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  3. Parafraseando-te, valha-nos a ironia do reequilibrio impiedoso das leis da Natureza.
    Porque a Natureza se ri das humanas fraquezas, recolocando no lugar, com suprema ironia, mais tarde ou mais cedo, quem estupidamente infrinja as suas leis.

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  4. É com prazer que sempre leio o que o Quito escreve, da forma e do conteúdo centrado nas vidas sofridas de pessoas simples que se não libertaram das vivências que lhe foram transmitidas pelos seus antecessores. O Rui Felício, com o seu comentário, transportou-nos para a crise de identidade desta sociedade em que estamos inseridos, em que, de costas voltadas, muitos caminham ignorando que, irmanados nos mesmos interesses, só juntos e caminhando no mesmo sentido poderão vencer a corrente que os atropela e arrasta.
    O texto do Quito e o comentário do Rui Felício, da forma brilhante a que já nos habituaram, deixam-nos um amargo na boca que nos leva a refletir sobre a razão de ser da nossa própria existência.
    A vida nem sempre é feita de amarguras e sacrifícios e a natureza é pródiga em nos dar testemunhos da sua beleza: Um dia de sol, o sorriso duma criança, a paz dum pôr de sol, o perfume duma flor, a comovente atitude altruísta e solidária do ser humano, o amplexo do amor, etc.
    Poderíamos desenterrar a velha questão da liberdade e do determinismo… nem todos estarão condenados a uma vida esforçada de sacrifício. O homem como princípio e fim, senhor da razão inflectora do destino é o elemento fundamental e transformador da sociedade. O resto, são acidentes de percurso, que a história levará sempre em conta, nesta interminável maratona da humanidade na procura do conhecimento, da justiça e da felicidade.

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    1. O Abilio, crente no Homem como motor do seu próprio destino,qual discipulo de Leibniz, faz-me lembrar que, de facto, está nas nossas mãos invertermos aquilo que está mal na nossa sociedade.
      Mas há muito de Schopenauer nas nossas mentalidades, mal de que sofro e de que me penitencio.
      Façamos um esforço para olhar o mundo pela visão voluntarista do Abílio!

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  5. Este texto, como indiquei, já tinha sido públicada no C.S. em Janeiro de 2010.
    Por ser um tema sempre atual, de novo o trouxe à liça, certo que, por motivos conhecidos, alguns amigos se omitiram de o fazer.
    Em boa hora o fiz. Pela extensa e avisada refleção do Felício. Pela limpidez do comentário do Abílio.
    Na verdade, temos que tirar partido das coisas belas da vida. Por vezes, é nos pequenos pormenores, naquilo que reivindicamos para nós como dados adquiridos sem o serem, que se encontra a felicidade. Mas há a outra encosta da montanha. Que nos magoa e marteriza. Mas que não pudemos ignorar. Pelo menos para aqueles que, como nós, ainda vamos olhando com atenção para as chagas sociais de uma sociedade virada cada vez mais para o seu umbigo.
    Um abraço a ambos
    Quito

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    1. Fiel ao meu hábito de só ler os comentários depois de fazer o meu, tenho que te dizer que, por todas as razões, fizeste muito bem em reeditar o texto.
      Gostei de o ler e também saboreei os comentários que referes.

      Para ambos os três, o meu abraço.

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  6. É, infelizmente, um tema sempre actual!... É impossível ler este texto do Quito e ficar indiferente!
    Um bom texto que nos deixa um sabor amargo!

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  7. Estamos todos metidos nesta alhada, e não há volta a dar.
    Salve-se quem puder.
    Um Abraço.
    Tonito.

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  8. Mais uma figura que sai do anonimato pela mão de Quito.
    Uma mulher, aldeã, de negro vestida, transmite a vida sofrida de muitas mulheres deste país. E de outros países...
    A ingratidão, a indiferença familiar, completa o quadro. Infelizmente, um quadro que é muito mais frequente do que o que se possa pensar.
    " Negro de sofrimento. Negro de solidão", é assim que o Quito nos transmite a sua revolta contida mas sentida, sabendo que bem pior do que a dureza da vida desta mulher, igual a tantas outras, é a indiferença familiar quando a noite eterna se aproxima dela.

    Parabéns, Quito.

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  9. Um dia virá em que poderemos ser também "O negro de sofrimento.O negro da solidão"...
    Uma constatação tão cruel que nos trazes mas também apelativa no sentido da sua inversão...quem dera!

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  10. Grande texto, Quito!
    Que posso acrescentar aos comentários já feitos?
    É uma leitura que nos prende até final!
    E é uma verdade nua e crua!

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  11. A tua "costela" neo-realista... Bem escrito!

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  12. Até vale a pena ter o previlégio de ler artigos e comentários como estes. Um pessoa deleita-se.

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  13. O Quito continua a trazer-nos textos que gostamos de reler, pelo tema, pelo conteúdo, pela clareza da descrição, etc, etc...
    Creio que hoje, mesmo nas aldeias, as mulheres já se vão libertando do vestuário negra que elas próprias se impunham.
    Todavia, mesmo trajando vermelho, o ciclo da vida mantem-se, e aguardemos o melhor!

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