quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

MEMÓRIAS DE TAVIRA ...

...de quem eu gostava mesmo, era da Almerinda das bifanas ...


Desta vez, vou até ao sotavento algarvio, a voar nas asas das minhas memórias, de um Tempo difícil e sombrio da minha vida. Mas não venho aqui para carpir as minhas mágoas de antanho, podem estar descansados. Acreditem que a conversa não vai puxar ao sentimento, apesar de começar mal, ou seja, no quartel de Tavira, comigo sentado na minha cama de ferro, a gritar um impropério: “porra, roubaram – me a almofada !!!”. Tinham roubado mesmo! Aquela era uma casa de muitas mães, e ao mais pequeno descuido, lá se ia mais um cobertor, ou o “ tapa-chamas” da espingarda. Inocente, fui a correr para o sargento - ajudante, com queixinhas. O homem ouviu-me, enquanto olhava com um olho fechado e outro aberto, para o fundo do cano de uma metralhadora, para me dar um conselho avassalador: “ se te roubaram a almofada, rouba outra!!!”. Bati os calcanhares e bati em retirada. Entrei na caserna e vi uma almofada em cima de uma cama, sozinha, mesmo prontinha a ser surrapiada !!!. Foi o que fiz! Qual gatuno principiante, fugi com a fronha debaixo do braço, a arfar de cansaço e o coração a saltar - me pela boca. Depois, tive pena do Coelho, que passou por mim a correr e rosnou-me: “ houve um cabrão, que me roubou a almofada!”, enquanto eu fazia que lia uma revista. Minutos depois, vi-o de novo a correr em sentido contrário. Trazia uma fronha debaixo do braço. Fiquei tranquilo e de bem com a minha consciência. Afinal, Monsieur Lapin, também tinha feito pela vida. Mais tarde, arranjei um quarto fora do quartel. Mesmo em frente à casa da menina Amélia, que passava os dias com as mãos penduradas fora da janela, a secar o verniz das unhas compridas, cor de morango. Acho que gostava de mim. Mas a miúda não devia muito à beleza e eu, de cabelo quase rapado, mais parecia um melão de Almeirim. Um belo par!. De quem eu gostava mesmo era da Ti’ Almerinda, que vendia umas bifanas no pão a vinte cinco tostões. Sem mostarda. Andava atrás das nossas correrias pela Atalaia, com um triciclo motorizado carregado de sandes e pirolitos. E nós, esgalgados de fome do esforço, era um ver se te avias …
Por falar em mostarda, um dia apeteceu-me espirrar. Foi na missa. Com o Peixoto e o Sottomayor, passámos junto de uma igreja. Sim, porque em Tavira, cidade pequena, existem dezoito igrejas. Só não há é quem reze, assim dizia a menina Ofélia, aprendiz de modista, que antes de andar embrulhada nos lençóis do Sub - Comandante dos Bombeiros, não havia nada que se lhe apontasse. Pois, foi na missa. Entrámos e ficámos cá atrás. A humidade do claustro fez-me espirrar, e o padre ficou de olho em nós os três. E depois pediu um ajudante, uma espécie de sacristão. Fiquei todo transpirado e escondi-me atrás do Peixoto, que era grande como um guarda - fatos, enquanto dizia ao Sottomayor em surdina: “oh pá, vai lá tu, que tens o nome mais pomposo”. O tipo, que era vaidoso, foi. Por acaso, nem se saiu mal. Até o elogiámos no regresso ao quartel. Era justo.
Foi com alívio, que saí de Tavira. Não me deixou saudades, a não ser da Almerinda das bifanas, que viveu o resto da vida com a esperança que um ricalhaço de Aveiro, que tinha barcos do bacalhau, lhe levasse a filha ao altar. Mal terminada a estadia militar, o biltre desapareceu, já corriam cinco anos. Lá teve ela que criar o neto. E a filha infeliz, que um dia tinha sonhado casar com ele no meio da parada, de véu, grinalda e flor de laranjeira…
Q.P.

13 comentários:

  1. Foi em Mafra e não em Tavira que iniciei a minha vida guerreira.
    Mas se substituísse no texto do Quito alguns nomes, as diferenças em relação ao seu relato seriam imperceptíveis. Salvaguardas as diferenças de estilo da narração, como é evidente.
    E substituiria o nome da Ti’Almerinda pelo da Dona Lúcia, também esta especialista em abastecer os cadetes de gordurosas e saborosas bifanas que cozinhava numa enorme sertã que, dizia-se, estava ao lume o dia todo sem nunca ser retirada para lavar. Eram bifanas gordurosos e deliciosas ( burro com fome cardos come, diz o povo…). O segredo, pelo que constava, era manter o molho que ia engrossando com a fritura e que uma lavagem mais pressurosa, poderia fazer desparecer.
    Aliás, diziam algumas más línguas, que a Dona Lúcia costumava, às escondidas, cuspir um cuspo grosso na frigideira para aumentar a consistência e o paladar do molho.
    Seria esse o segredo do êxito que as suas bifanas tinham junto dos recrutas e até dos sargentos e oficiais instrutores.
    E, além dessa personagem, substituiria também o nome de Ofélia, pelo de Carminho, moçoila corada, recheada de carnes e avultadas ancas que não dava troco aos cadetes porque, novamente as más línguas o diziam, tinha as suas necessidades básicas satisfeitas pelo Cabo RD Teófilo Braga ( orgulhava-se do seu nome, afiançando que, porém, nada tinha a ver com aquele jacobino do tempo da República ), responsável pela pecuária do quartel que, às tardes, costumava levar a Carminho para o curral dos porcinos da Tapada Real, onde a saciava dos seus ardores de mulher jovem.
    Como se vê, com personagens diferentes mas análogas, Tavira ou Mafra, não diferiam assim tanto.

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  2. O Rui, começa por dizer: " Mas se substituísse no texto do Quito alguns nomes, as diferenças em relação ao seu relato seriam IMPERCEPTÍVEIS."

    E é aqui que começa o drama:

    " ... a Dona Lúcia costumava às escondidas, cuspir um cuspo grosso na frigideira para aumentar a consistência e o paladar do molho."

    Aflijo-me: Será que a Almerinda, também cuspia na frigideira?

    Mais afirma, o Rui: " Eram bifanas gordurosas e deliciosas"

    Com um nó na garganta, percebo que a Almerinda e a Lúcia deviam ter lido pelo mesmo compêndio gastronómico. Cuspos à parte, estou a começar a salivar de náusea ...

    A Carminho das "avultadas ancas", desnudava-se para o Teófilo, no curral dos porcinos .É pouco romântico, admitamos, apesar de Teófilo ser nome de alta estirpe, mesmo quando colado à farda de um cabo lateiro ...

    Já a filha da Almerinda, não se podia gabar de ser farta de carnes. Era pálida como um círio, sofria de falta de ar e até me arrepio, só de a ver nos braços do pardalão, nos ardores do amor, a arfar, cheia de asma e a socorrer-se de um nebulizador para a bronquite ...

    Em jeito de remate, afirma o Felício que os personagens são diferentes mas análogos.

    Pois são. E aí é que está o drama !!!

    NO TAMANHO DAS FRIGIDEIRAS E NA GORDURA GENEROSA DAS BIFANAS !!!

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  3. Coisas de tropa são para mim, para esquecer completamente.
    Tenho um calhau muito grande por cima de tudo.
    Gosto da tua escrita Quito.
    Dias.

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    1. António, do que estamos a falar, não é de guerra. É de gastronomia e do paralelismo inquietante quanto à coincidência de um molho de bifanas.

      Neste caso, o drama não está na guerra. Está no condimento com que se dava paladar ao molho ...

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    2. Oh Tonito, a Ti'Almerinda, a Ofélia e a Dona Lúcia não andavam na tropa que eu saiba.
      Quanto à Carminho também não, embora seja verdade que esta, de vez em quando, visitava o curral dos porcos e o Teófilo, mas por razões nada castrenses. E, segundo é de crer, nas horas vagas do cabo, recebendo-a este completamente desfardado, e até livre de quaisquer vestes mesmo civis, como é bom de ver.

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    3. Tonito, não é a primeira vez que falas nesse calhau muito grande.
      Vá lá, pá, vê se percebes que para aliviar o peso do calhau, o melhor que temos a fazer é dividir o seu peso com os amigos.
      E, se possível, de uma forma saudável, como é o caso.

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  4. Até na tropa tive sorte!CALDAS DA RAINHA: ao principio indigitado para "atirador" fui parar a VENDAS NOVAS (onde nos levantàvamos là para as 9 e meia da manha)para os Serviços Auxiliares (devido à miopia). Seguem-se 9 meses em COIMBRA, no Serviço de Saude (frente ao Jardim Botânico). Como o meu Pai conhecia o 2° Comandante, fui aconselhado a ficar em casa e so a aparecer là no quartel quando estivesse de serviço!!Uma beleza!
    Surge a mobilizaçao para ANGOLA (LUSO)como Furriel Vagomestre!!!O Homem das massas!Conta a lenda que muitos regressavam ricos!Eu nao! Comia frequentemente lagosta ao almoço, tinha chauffer privativo (Cabo Marques) e tratava bem o pessoal!Claro que era impossivel que houvesse lagostas para todos!No 2°ano,(1972) apresentei-me a um casting no Quartel onde estava instalado o Chefe do Estado Maior da Zona Leste, para integrar uma banda musical, que animaria os famosos bailes do HOTEL LUSO, requesicionado pelos Oficiais e, fui aceite como viola-ritmo!!Sabia desmontar a G3 mas para a montar tinha quem o fizesse!

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  5. Guerra e Paz!
    Este texto só trata de PAZ!Ainda bem! O Tonito agradece!
    Texto pitoresco, leve e bem apimentado!
    Enquanto uns comem bifanas da Ti Almerinda..outros por deformação profissional estendem a mangueira até casa da Ofélia!
    Tá tudo nos conformes!

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  6. Tavira, 1970! Eram cerca de 14 horas de Tavira a Coimbra e outras tantas de regresso! Estive lá 3 meses e só vim a casa duas vezes! Não compensava o esforço e até tinha lá umas meninas com quem ia à missa ao Domingo... Não me recordo do nome de uma delas, mas morava mesmo em frente ao quartel. Ela era pequenina, mas muito engraçada, e com ela fui muitas vezes rezar para uma das capelas que lá havia. As capelas eram melhores do que as igrejas, porque não corriamos o risco de aparecer o padre a interromper as nossas rezas!... Muito rezava eu... e ela!...
    Quito, eram 16 Igrejas e 10 Capelas, mas liceu ou qualquer escola de ensino secundário, não havia!...

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  7. o dom castelão que me desculpe,mas parece-me mais coisa de continências...

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  8. Ou sou eu que estou lento ou é o blog que avança a uma velocidade que eu não consigo acompanhar.
    Quito, mais um belo conto que se ia escapando na voragem do meu tempo.
    Mas não do Tempo...

    São deliciosos os pormenores.
    O "roubo" das fronhas/travesseiros, o "roubo" dos tapa-chamas/tapa bocas,
    e a consequente "vingança" com que o roubado justificava, perante si próprio, a necessidade e a legitimidade de roubar...
    Também passei por isso. Que saudade!
    Grande abraço.

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