O Zangamulo ...
Pelas páginas de um livro, perco-me nos labirintos de um Tempo de antanho. De um tempo de guerra. Recorda - se a guerra Civil de Espanha, com o seu cortejo de sofrimentos, terminada em mil novecentos e trinta e nove. E, meses depois, o começo da Segunda Grande Guerra Mundial, que duraria até mil novecentos e quarenta e cinco.
Aquele dia do mês de Fevereiro de mil novecentos e trinta e oito, acordou triste. Juncal do Campo, era uma terra que não teria mais de oitocentas almas. Afinal, um povoado escondido entre montanhas. A somar às dificuldades da pobreza generalizada, também o racionamento de bens, que logo se fizeram notar, quando rebentou o conflito do outro lado da fronteira. Foram tempos difíceis. Muito difíceis. Nos dias pardos e noites de sincelo, apenas o lume a crepitar na lareira, aquecia os corações. Ali, naquele lugar, as crianças deitavam-se cedo. Era preciso correr para a fila do pão, por volta das cinco horas da madrugada. O principal sustento das famílias, era distribuído já o sol, há muito, tinha subido no horizonte.
Era sempre um desassossego, a distribuição do zangamulo. O pão negro de centeio, que era a base da refeição das bocas famintas. Porém, as crianças, durante o dia, percorriam os campos na apanha da marova e, aparentemente indiferentes na sua inocência de criança, jogavam à bugalha, à bola de trapos e ao pião.
E à noite, na terna lembrança do Valentim, juntavam-se em casa do Zé Luís, alfaiate. E ali, no humilde lar, ouviam o Francisco contar histórias de guerra de pasmar, enquanto a Ti´ Maria Clara, curvada sobre a máquina de coser e óculos descaídos sobre o nariz, imprimia um ritmo vivo ao pedal, com os dedos esticados ao correr da agulha. O Zé Luís, de fita métrica pendente do pescoço, ia marcando as bandas de um casaco com um giz, à luz da candeia, pela escassez de combustível para alimentar o candeeiro a petróleo.
Os outros, à volta de um caldeiro negro cheio de brasas, colocado no centro da acanhada sala, também participavam na assembleia. Falavam baixo e invocavam S. Simão, o nome do Santo Padroeiro, na esperança de melhores dias.
Um pequeno pedaço de toucinho, do fundo da arca vazia, preenchia uma hora de lamentos e cogitações. Também o pão escuro, de sabor acre, como elo aglutinador de convívio entre gente simples de uma singela e desterrada aldeia encostada à Serra da Raposa.
Naquelas gélidas noites, sob um céu polvilhado de estrelas e um avassalador manto de silêncio, ansiava-se pelo calar das armas. Mais alto, porém, falavam os fortes laços de amizade e de dorida cumplicidade, entre homens e mulheres ao redor do lume acolhedor, como se, nas veias de cada um, corresse, sofrido, o mesmo sangue.
Era amor fraterno, em tempo de guerra.
Q.P.
Aquele dia do mês de Fevereiro de mil novecentos e trinta e oito, acordou triste. Juncal do Campo, era uma terra que não teria mais de oitocentas almas. Afinal, um povoado escondido entre montanhas. A somar às dificuldades da pobreza generalizada, também o racionamento de bens, que logo se fizeram notar, quando rebentou o conflito do outro lado da fronteira. Foram tempos difíceis. Muito difíceis. Nos dias pardos e noites de sincelo, apenas o lume a crepitar na lareira, aquecia os corações. Ali, naquele lugar, as crianças deitavam-se cedo. Era preciso correr para a fila do pão, por volta das cinco horas da madrugada. O principal sustento das famílias, era distribuído já o sol, há muito, tinha subido no horizonte.
Era sempre um desassossego, a distribuição do zangamulo. O pão negro de centeio, que era a base da refeição das bocas famintas. Porém, as crianças, durante o dia, percorriam os campos na apanha da marova e, aparentemente indiferentes na sua inocência de criança, jogavam à bugalha, à bola de trapos e ao pião.
E à noite, na terna lembrança do Valentim, juntavam-se em casa do Zé Luís, alfaiate. E ali, no humilde lar, ouviam o Francisco contar histórias de guerra de pasmar, enquanto a Ti´ Maria Clara, curvada sobre a máquina de coser e óculos descaídos sobre o nariz, imprimia um ritmo vivo ao pedal, com os dedos esticados ao correr da agulha. O Zé Luís, de fita métrica pendente do pescoço, ia marcando as bandas de um casaco com um giz, à luz da candeia, pela escassez de combustível para alimentar o candeeiro a petróleo.
Os outros, à volta de um caldeiro negro cheio de brasas, colocado no centro da acanhada sala, também participavam na assembleia. Falavam baixo e invocavam S. Simão, o nome do Santo Padroeiro, na esperança de melhores dias.
Um pequeno pedaço de toucinho, do fundo da arca vazia, preenchia uma hora de lamentos e cogitações. Também o pão escuro, de sabor acre, como elo aglutinador de convívio entre gente simples de uma singela e desterrada aldeia encostada à Serra da Raposa.
Naquelas gélidas noites, sob um céu polvilhado de estrelas e um avassalador manto de silêncio, ansiava-se pelo calar das armas. Mais alto, porém, falavam os fortes laços de amizade e de dorida cumplicidade, entre homens e mulheres ao redor do lume acolhedor, como se, nas veias de cada um, corresse, sofrido, o mesmo sangue.
Era amor fraterno, em tempo de guerra.
Q.P.
Texto de ficção, baseado em factos e personagens reais.
ResponderEliminarLegenda:
Zangamulo - Pão de Centeio
Bugalha - Espécie de jogo do berlinde
Marova - Fruta
A neutralidade do Estado Novo na Guerra Civil Espanhola foi um sofisma.
ResponderEliminarSob o disfarce da hipocrisia neutral, o governo português colocou-se militarmente ao lado dos nacionalistas criando a Legião e os “Viriatos”, corpo expedicionário, dito de “voluntários” que combateram ao lado de Franco.
Mas esse apoio encapotado englobava também o auxílio logístico com alimentos e outros bens, cuja falta levou ao racionamento alimentar e de bens básicos em território português, afectando as populações, especialmente as mais carenciadas e, sobretudo, as que habitavam perto da fronteira espanhola.
É a imagem dolorosa da vida dessas gentes que este memorial excelentemente escrito, refresca e traz à nossa lembrança colectiva.
Que nunca te doa a mão, Quito, de nos testemunhares as valiosas recolhas que vais fazendo, de outros tempos que nos devem servir de lição para evitarmos que retornem.
A hipocrisia chegou ao ridículo quando o Estado Novo chamou ao auxílio alimentar a Espanha de "Sobras de Portugal".
EliminarNum Portugal esfomeado, o Estado Novo inventou "sobras" para auxiliar o Franquismo.
Ao deixar esta nota, que nada acrescenta à tua correcta análise, faço-o mais para que saibas que a apreciei.
Um abraço.
E é na adversidade que o espirito gregário e o amor mais se fortalecem. Como derradeira tábua de salvação...
ResponderEliminarUma outra faceta dessa época também se pode ler no blog de um amigo, o David Caetano, homem de "trás da serra", que por achar interessante faço questão de recomendar a sua leitura aqui:
ResponderEliminarhttp://dokatano.blogspot.com/2012/02/dos-tempos-do-salta-e-pilha.html
(Quito!Antes que esqueça! Na próxima vez, em tua casa, também queremos zangamulo!)
Okey, Carvalho, mas tu e o Paulo não se livram de comer os dois pasteis de bacalhau que sobraram deste ano e que ficaram no congelador do frigorífico ...
EliminarBoa Quito. Não quero voltar a trás mas como já passei por isso, é nos momentos mais difíceis que as pessoas são mais unidas. Ainda hoje nos lamentamos com a vida que levamos.
ResponderEliminarA memória é curta.
Texto que dá para recordar tempos muito dificeis.
ResponderEliminarTambém passei por eles!|
Ía para a "bicha" da loja do Ti Manel Vaz para poder receber o quinhão de mercearia que cabia a cada familia!
E não era só para a mercearia, até para ter água em casa, logo de manhã toca de meter o cântaro também em fila para o poder encher!E como a bica deitava pouco eram precisas algumas horas para chegar a nossa vez!
Também tenho a minha conta desses tempos dificeis!
...Mas depois passados ,muitos anos, felizmente também veio a fartura!
Pois, mas foi mal gerida... A coisa está preta!Ainda não se sabe ao certo onde é que a crise vai parar!
15% de desempregados com tendência para subir, é uma situação aflitiva!
Não sabemos, ou por outra eu não sei, se hei-de acreditar nos optimistas ou nos pessimistas! Aguardemos!
A ser verdade que a conceituada fábrica DANONE, sediada em Castelo Branco, pondera ter de encerrar as suas portas, será um rude golpe numa cidade de pequena dimensão e com escassas oportunidades de emprego.
EliminarE a este facto, não será alheia a cobrança de portagens, com o consequente agravamento dos custos ...
Vamos andando e vendo ...
Rafael
EliminarQuem sofreu com o que diz, foram os meus Pais. Eu fui diferente. Já não havia nada para comer, o comércio não tinha e eu fui à pesca. Como a crise era grande, só apanhei um peixe que deu para mim e para o mainato para a refeição desse dia.
Quanto ao que se passa na Europa as pessoas aqui andam um pouco admiradas e é constrangente. Ainda a semana passada perdemos mil e tal postos de trabalho mas os governos fazem tudo para que haja condições para criação de empregos. Aí é só cortar!!!! E as pessoas não têm aonde arranjar trabalho. O que eu já dizia em África: pé descaço e barriga vazia, só vai criar problemas. Não sou economista mas não compreendo assim como muitos economistas daqui.
Esta é a última: problemas na bolsa de Montreal. Cortaram a entrada na Bolsa e os pessoal não pode entrar para trabalhar e aqui já são onze e trinta. Está para lá a polícia, incluindo a de choque mas tudo se deve resolver pois os polícias são pacientes.
Por mim não tive problemas.
ResponderEliminarMas sei de pessoas que passaram muita fominha.
Para adoçar o café era com um rebuçado, e uma sardinha dava para 3.
A sopa era água quente com umas coisas a boiar que ninguém sabia muito bem o que era.
Enfim, tudo para ir para o franco.
Um Abraço.
Dias.
Ao ler estes comentários fui à procura do meu livro de bébé pois nasci no fim da guerra, no princípio de janeiro de 1945 como muitas pessoas aí do bairro. Entre as prendas que me deram estão três pessoas com um pacote de um kilo de açucar cada, outra com uma galinha e outra com o tão conhecido bolo rei. Como era tudo diferente.
ResponderEliminarAlicerçado na História, o Quito traz-nos uma maravilhosa história de amor.
ResponderEliminarÉ o amor pelos "nossos", é o amor concentrado em oitocentas almas escondidas num povoada entre montanhas.
E a todas essas almas dá vida, ao dar protagonismo a figuras humanas que descreve com tal precisão que o leitor fica com a sensação de que vê um filme e não um texto.
Mas é mesmo um texto, é um conto à moda do Quito.
Grande abraço.
Olha, por tua causa, já perdi 15 minutos do meu Fêquêpê.
ResponderEliminarMas baleu a pena. Bamos ver se bale a pena ber o resto do jogo.
Toma lá mais um abraço.
Não correu bem!
EliminarMas o adversário era de respeito!
Só vai à frente dos clubes do petróleo!!!!
A crise toca em tudo!!!
Lamento meu caro Viana, mas a infelicidade de Alvaro Pereira deitou tudo a perder. Ainda faltam 90 minutos, mas ...
ResponderEliminarUm abraço
Pois, a porra é essa, ainda faltam mais 90 minutos...
EliminarNão te preocupes, hei-de sobreviver ao desgosto!
Obrigado,Quito.
ResponderEliminarAs tuas estorinhas aquecem-me a alma.
Não conheci os tempos da Guerra Civil de Espanha.
Conheci,mas mal me lembro,o tempo do final da 2ªGG.
Na minha memória,mas pouco nítida,tenho o tempo em que íamos todos para a "bicha" da manteiga(conforme os horários de cada um),porque só vendiam determinada porção(não me lembro do peso) por família.A manteigaria,no início da Rua da Sofia,é um belo edifício.Hoje está lá uma agência de viagens.Tinha umas paredes com paineis de azulejos lindíssimos que,não sei,poderão estar sob os paineis actuais.
Também me lembro que,nesse tempo,também ia para a "bicha" do leite.Por qualquer motivo,que desconheço,as leiteiras não faziam a distribuição à porta de casa e era necessário ir ao fundo da rua de Montarroio,nas traseiras da Polícia,ir buscar o leite.
O azeite,também racionado,vinha da aldeia,dentro de odres escondidos com mantas,na grade da "carreira"...
Na infantil,tive uma professora francesa e dois colegas austríacos.Eram refugiados e nunca mais tive notícias deles.Meu Pai dizia que foram para a América.
Basta de memórias mal amanhadas.
Um abraço.
Mais um conto do Quito que não deixa ninguém indiferente!...
ResponderEliminarPelos comentários podemos ver que a todos vieram à memória tempos difíceis!
As dificuldades hoje são diferentes, mas não se o povo as irá aguentar com a mesma capacidade de abnegação!...
....
Para desanuviar um pouco, eu diria:
MAIS VALE UM CONTO DO QUITO DO QUE DEZ GOLOS DO FÊQUÊPÊ!!!...
Alfredo, estou contigo!
ResponderEliminarAo fêquêpê deem-lhe zanganmulo, mandem-no apanhar marova e ...que brinquem com os bugalhos.
Um relato sempre muito agradável de ler, mesmo focando temas penosos, mas que convém relatar para a posteridade.