da
Daisy
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Toda a gente tem uma história. E
a dele, dizia, era curta. Costumava contá-la assim:
— Nasci, vivi, morri.
Era assim que ele a contava. Mas
para lá daquelas três palavras, escondia-se a verdadeira razão por que tudo lhe
era indiferente, por que se considerava morto. E não queria recordá-la. Quando
o inconsciente lhe mostrava o menino a correr pelos campos em flor, ofuscava a
imagem com o véu que o álcool lhe fazia erguer ante os olhos da alma. E não
via. Melhor, fingia não ver, porque, na realidade, todos os dias, como um
pesadelo, aquelas e outras das cenas da sua vida lhe passavam no espírito como
num "écran".
— Nasci…
O menino corria, corria pisando
os malmequeres silvestres, na relva do lameiro. O perdigueiro seguia-o e
adentanhava-lhe os calcanhares, a brincar.
O menino era feliz.
— Vivi…
A tia velha pegou na carta e
rasgou-a, zangada. O rapaz via e chorava por dentro.
— "Quando eu for
maior…"
— Vivi…
O rosto da rapariga brilhava,
havia algo nela de irreal. Brincava, gaiteira, com os sentimentos dele que lhe
confessava, inocentemente, que a amava. A rapariga brincava… A tia velha
gritava…
O rapaz "maior" ouvia a
tia velha gritar. Que gritasse. Mas a tia velha sabia. A tia velha, porque era
velha, sabia tudo. E, como amiga que era, gritava. Mas o rapaz
"maior" não era velho… Que gritasse. E ela gritava. E ela gritava
sempre.
A
rapariga-que-tinha-algo-de-irreal, brincava. E o rapaz, que já não era rapaz,
que era homem, não brincava e sabia o que queria. Mas a rapariga brincava… e
ria, e moçava.
Moçou sempre, na mesma proporção,
em que a tia velha gritava.
E o rapaz-homem cansou-se. E
abandonou a repariga-do-rosto-que-brilhava.
A tia velha já não gritava.
Veio outra rapariga, e outra, e
outra, mas nenhuma delas tinha o rosto-que-brilhava, nenhuma delas tinha
algo-de-irreal. E o rapaz-homem cansou-se novamente.
— Vivi…
Procurou outra vez a
rapariga-de-rosto-que-brilhava. E a tia-velha voltou a gritar. E o
menino-rapaz-homem começou também a gritar… com a tia velha. E a tia velha
calou-se. Nunca mais gritou… Mas a rapariga-que-tinha-algo-de-irreal,
continuava a troçar, a troçar. A rapariga-do-rosto-que-brilhava, por fim, parou
de rir, e disse-lhe francamente:
— Detesto-te.
E o rapaz-homem, que já tinha
sido menino, quis voltar a sê-lo, quis correr pelos campos em flor, com o
perdigueiro atrás… Mas não pôde, continuou a viver porque… veio outra rapariga,
e outra, e outra…
— Morri…
4 de Setembro de 1969
Leio sempre com interesse os contos da Daisy. Este, não foge à regra.Ler é viver quando, muitas vezes, encarnamos o personagem. Quando vestimos a pele da esperança e do desencanto.
ResponderEliminar"Na relva do lameiro", não trai as origens da médica - escritora. "A rapariga moçava e moçou sempre". Será regionalismo ? Honestamente, não sei. Mas sei da bondade do termo, que muito tem a ver com a faceta doce e humanista de quem alinha bem as palavras, neste caso em três vértices distintos, neste triângulo em que se resume a vida, ainda que em sentido figurado: nascer viver e morrer. Morreu o texto? Não morreu. Porque textos desta qualidade não morrem.
Abraço Daisy
Mais um belo conto da Daisy e que tenho o privilégio de publicar!
ResponderEliminarAmar alguém e não ser correspondido é um golpe profundo que custa a cicratizar.
ResponderEliminarMas é a lei da vida, a que todos estão sujeitos e que, com maior ou menor dor acabam por encontrar o antidoto, se essa falta de sintonia for simplesmente indiferença.
E, quando assim é, sarada a ferida, a vida é retomada e continuará.
Casos há, porém, em que a troça, a galhofa e, finalmente a rudeza e a clareza agridem o ser apaixonado, rindo do seu sofrimento e da pureza do seu sentimento.
Foi isso que fez a gaiteira rapariga-do-rosto-que-brilhava.
Arremessando-lhe como uma pedra, depois de longo tempo, a escusada frase “ Detesto-te! ”.
E a ferida não cicratizou.
E a vida do apaixonado parou.
E o apaixonado, vegetou.
Aparentemente vivo, ele de facto morreu.
Dizer isto é fácil. Especialmente por quem, como eu, já está no ocaso da vida.
O que não é fácil é dizê-lo da maneira poética com a Daisy o disse, ainda na flor da sua juventude.
Leio e releio, sempre com o mesmo gosto!
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