Não perdia uma oportunidade, mesmo que a despropósito, de elucidar os colegas, da sua ascendência aristocrática.
Na Herdade do Azinhal, perto de Portel, dizia-nos, as refeições eram pontualmente tomadas em redor de uma enorme mesa de castanho, no soturno salão do solar, sob a luz de brilhantes lustres, e com o reflexo de avantajados espelhos emoldurados em talha dourada.
O pai, Dom Pedro de Fermões e Cunha, num dos topos da mesa fazia sinal às criadas para começarem a servir, pela ordem hierárquica.
Primeiro a mãe, depois os cinco filhos de que Sá Cunha era o primogénito, a filha mais velha, o genro, a filha mais nova e três crianças que eram os netos que a primeira aportara para o seio do clã.
O ar severo do patriarca não perdoaria menor compostura ou o minimo atraso na chegada à mesa de jantar.
O ar severo do patriarca não perdoaria menor compostura ou o minimo atraso na chegada à mesa de jantar.
Ao raiar do dia de cada segunda-feira, postava-se ao cimo da escadaria de mármore do Solar e assistia atento à selecção feita pelo capataz, dos jornaleiros que ali se dirigiam na tentativa de serem contratados por uma semana. Normalmente, mais de metade eram recusados, ou por serem velhos, estarem doentes ou parecerem calões.
As regras estavam de antemão estabelecidas. Homens, vinte escudos por dia, mulheres quinze. O trabalho começava ao nascer do sol e acabava ao anoitecer, com duas horas de intervalo para comerem o farnel que cada um trazia de casa e para uma pequena sesta à sombra de um chaparro. O patrão, magnânimo dava o vinho e a água.
As regras estavam de antemão estabelecidas. Homens, vinte escudos por dia, mulheres quinze. O trabalho começava ao nascer do sol e acabava ao anoitecer, com duas horas de intervalo para comerem o farnel que cada um trazia de casa e para uma pequena sesta à sombra de um chaparro. O patrão, magnânimo dava o vinho e a água.
Sá Cunha, hospedado numa vivenda no Penedo da Saudade, onde morava um primo afastado, viera para Coimbra cursar Direito, depois de ter acabado o liceu no Colégio Nuno Álvares em Tomar onde esteve interno durante sete anos.
Tudo isto nos contava, com um indisfarçável pedantismo, tentando contudo conquistar-nos as simpatias, asseverando-nos que, apesar da sua ascendência aristocrática, era acérrimo defensor dos direitos dos proletários e que lutaria denodadamente ao lado daqueles que um dia haveriam de derrubar o iníquo regime em que viviamos.
Tudo isto nos contava, com um indisfarçável pedantismo, tentando contudo conquistar-nos as simpatias, asseverando-nos que, apesar da sua ascendência aristocrática, era acérrimo defensor dos direitos dos proletários e que lutaria denodadamente ao lado daqueles que um dia haveriam de derrubar o iníquo regime em que viviamos.
Seis meses depois da incorporação militar em Mafra, desertou e foi viver para Lausanne, ocupando um challet de férias que o seu pai tinha adquirido uma dezena de anos antes. Vivia de uma mesada choruda que a familia lhe mandava para que ele não passasse dificuldades.
Reencontrei-o uns três meses depois do 25 de Abril, numa noite em que eu ia a caminhar na Rua do Coliseu e ouvi alguém chamar-me pelo nome. Virei-me e quase não o reconhecia. De barbas hirsutas, cabelo comprido, vestido com uma camisa grossa de flanela aos quadrados, umas desbotadas calças de ganga e um boné esverdeado com uma estrela na pala, nem parecia o Sá Cunha de fato e camisa branca irreprensivelmente engomada que conhecera em Coimbra.
Ia a entrar no Gambrinus, viu-me, chamou-me e insistiu para irmos lá comer uns lagostins.
Ainda lhe disse que o traje que ele envergava não condizia muito com a maneira de vestir da clientela do Gambrinus, mas retorquiu-me que agora o povo tinha sido libertado e podia aceder aos locais que mais lhe aprouvessem.
Encolhi os ombros, pensando com os meus botões, que o povo podia ser livre mas faltava-lhe o dinheiro para gastar na mais cara marisqueira de Lisboa.
Reencontrei-o uns três meses depois do 25 de Abril, numa noite em que eu ia a caminhar na Rua do Coliseu e ouvi alguém chamar-me pelo nome. Virei-me e quase não o reconhecia. De barbas hirsutas, cabelo comprido, vestido com uma camisa grossa de flanela aos quadrados, umas desbotadas calças de ganga e um boné esverdeado com uma estrela na pala, nem parecia o Sá Cunha de fato e camisa branca irreprensivelmente engomada que conhecera em Coimbra.
Ia a entrar no Gambrinus, viu-me, chamou-me e insistiu para irmos lá comer uns lagostins.
Ainda lhe disse que o traje que ele envergava não condizia muito com a maneira de vestir da clientela do Gambrinus, mas retorquiu-me que agora o povo tinha sido libertado e podia aceder aos locais que mais lhe aprouvessem.
Encolhi os ombros, pensando com os meus botões, que o povo podia ser livre mas faltava-lhe o dinheiro para gastar na mais cara marisqueira de Lisboa.
Fiquei a saber que aderira ao MRPP e que em breve concluiria a licenciatura em Direito que interrompera em Coimbra. A Faculdade de Direito de Lisboa, explicou-me, estava democratizada e o MRPP dominava os postos-chave daquela escola, com exames sob fiscalização, controle e decisão final por elementos do Movimento.
Contou-me que desembarcou em Santa Apolónia uma semana depois do 25 de Abril. Como exilado político que era, que sofreu na carne o afastamento da sua Pátria, foi recebido de braços abertos no seio do movimento do proletariado, ocupando um lugar de destaque nos orgãos dirigentes.
Contou-me que desembarcou em Santa Apolónia uma semana depois do 25 de Abril. Como exilado político que era, que sofreu na carne o afastamento da sua Pátria, foi recebido de braços abertos no seio do movimento do proletariado, ocupando um lugar de destaque nos orgãos dirigentes.
Ainda o vi uma ou duas vezes na televisão, de punho cerrado, mas depois perdi-lhe o rasto.
Até que um dia, muitos anos depois, estava eu a olhar o mar, numa esplanada do Mónaco, a bebericar um Campari com laranja, e vejo um vulto a puxar uma cadeira, estender-me a mão sorridente e sentar-se à minha mesa.
Era o Sá Cunha, o mesmo aristocrático dandy do meu tempo de Coimbra, calças beije vincadas, sapatos castanhos brilhantes, um blazer de tweed azul escuro, camisa branca e um lenço de seda a envolver-lhe o pescoço por dentro do colarinho engomado.
Até que um dia, muitos anos depois, estava eu a olhar o mar, numa esplanada do Mónaco, a bebericar um Campari com laranja, e vejo um vulto a puxar uma cadeira, estender-me a mão sorridente e sentar-se à minha mesa.
Era o Sá Cunha, o mesmo aristocrático dandy do meu tempo de Coimbra, calças beije vincadas, sapatos castanhos brilhantes, um blazer de tweed azul escuro, camisa branca e um lenço de seda a envolver-lhe o pescoço por dentro do colarinho engomado.
- Que fazes aqui, perguntei-lhe, mais para entabular conversa do que porque nisso eu estivesse especialmente interessado.
- Olha pá, quando começaram as ocupações de terras, a Herdade do Azinhal foi transformada numa Unidade Colectiva de Produção. O meu pai morreu de velho e de desgosto.
Achei uma injustiça. Especialmente pela ingratidão quanto à minha árdua luta pela revolução. Com a Lei Barreto, anos depois, conseguimos retomar a propriedade e receber uma indemnização.
Vendemos a Herdade por um bom dinheiro e com a parte que me coube resolvi vir viver para o Mónaco, onde apliquei o capital, cujos rendimentos são suficientes para ter uma vida sossegada.
Só me ocorreu dizer-lhe:
Fugiste do teu País, em protesto contra o Salazar.
Regressaste com a Revolução e voltaste a fugir do teu País, em protesto contra a Revolução.
Se, como sempre, o dinheiro que nunca precisaste de ganhar, não te vier a faltar, serás sempre um exilado.
Ou, como diria a minha avó, que confundia as palavras homófonas, serás sempre um “asilado”...
Rui Felicio
Achei uma injustiça. Especialmente pela ingratidão quanto à minha árdua luta pela revolução. Com a Lei Barreto, anos depois, conseguimos retomar a propriedade e receber uma indemnização.
Vendemos a Herdade por um bom dinheiro e com a parte que me coube resolvi vir viver para o Mónaco, onde apliquei o capital, cujos rendimentos são suficientes para ter uma vida sossegada.
Só me ocorreu dizer-lhe:
Fugiste do teu País, em protesto contra o Salazar.
Regressaste com a Revolução e voltaste a fugir do teu País, em protesto contra a Revolução.
Se, como sempre, o dinheiro que nunca precisaste de ganhar, não te vier a faltar, serás sempre um exilado.
Ou, como diria a minha avó, que confundia as palavras homófonas, serás sempre um “asilado”...
Rui Felicio
O Rui Felício voltou e em boa hora. Excelente descrição daqueles que foram habituados na vida a viver com o dinheiro fácil, do papá.
ResponderEliminarExcelente,real e coerente esta tua visão/contacto pessoal sobre os exilados ou refugiados Sás e Cunhas da cagança ou pseuda cagança portuguesa e sem sentido político em termos de direitos sociais...Incoerentes e desonestos.
ResponderEliminarOs tais que se apelidavam "os defensores da classe operária" mas desde que estivessem numa "boa". E sempre estiveram bem à custa dos paizinhos ou padrinhos.
Paleio e mais paleio que nos enfadavam nas assembleias gerais de estudantes...
Eles aí andam no desGoverno a praticar o que "pensavam" tentando escamotear o que de facto pensam e agem "roubando-nos". Mas nunca nos enganaram.
A tua avó tinha toda a razão ao chamar-lhes "asilados".
Dá para pensar!
ResponderEliminarPelo que vou ouvindo há mais casos de "exilios dourados"
Gosto sempre de ler os teus textos!
«Eles aí andam», como diz a Olinda. E andam, repetindo, estrategicamente, a mentira, para que ela pareça ser verdade: "o paradigma mudou, os tempos são outros, os direitos e a forma de viver de antes não são viáveis agora, pois a crise já não é cíclica, mas sim estrutural, temos de nos habituar e adaptar à mudança, para entrarmos no futuro". Um futuro que não passa pela estabilidade e dignidade, mas sim pela mobilidade, dinamismo, pelo rasgo, pelo aproveitamento das oportunidades, que a boa da crise nos proporciona em "janelas de oportunidades". Assim, já se aponta e vislumbra a «selecção feita pelo capataz, dos jornaleiros que ali se dirigiam na tentativa de serem contratados por uma semana. Normalmente, mais de metade eram recusados, ou por serem velhos, estarem doentes ou parecerem calões».
ResponderEliminarUm bom texto do Rui Felício, que dá para refletir. Os tempos mudaram. Para pior. Sob a capa da generosidade, da igualdade, da fraternidade, da justiça e da solidariedade, vamos-nos afundando numa sociedade competitiva, desconfiada e pouco ou nada solidária. Uma sociedade doente.Aqui e ali, vão aparecendo até campanhas de solidariedade que mais não são, que interesses publicitários de grandes superfícies comerciais, com a população à porta degladiando-se para quem entra primeiro no hipermercado, para poupar uns euros que tanta falta fazem.A hipocrisia instalada dos tubarões, lidando com as dificuldades da população, a quem manipula como marionetas ...
ResponderEliminarPara muitos, partir é o que resta. Hoje, em Portugal, velhos são aqueles que têm mais de 4O anos de idade. Há uma espécie de triagem que é feita, excluindo quem tem a desdita de numa fase da vida se vê sem trabalho, ou, tendo-o, se vê obrigado a fazer centenas de Km por dia, para se renderem pela exaustão e assim abdicarem da indemnização a que têm direito por muitos anos de trabalho. Ou daqueles que apenas têm 4O minutos para almoçar,depois de um trabalho pesado, e proibidos de se sentarem para comer a refeição. Soube disto há poucos dias e nem queria acreditar.
"Eles aí andam". E andam mesmo, Olinda ...
Meu caro Rui Felício, nunca uma palavra homófona foi tão sabiamente aplicada!
ResponderEliminarParabéns à tua avó, e aquele abraço para ti.
De facto quando li a postagem do Rui Felício, liguei ao passado mas ao lêr os comentários acima, vejo que a relacionam com a presente crise.
ResponderEliminarNo campo das idades para trabalhar, continuo a dizer que o problema vem de cima pois não é qualquer deputado que faz leis. Fiquei admirado quando aí fui da útima vez ao lêr um anúncio que pedia pessoas com menos de cinquanta anos. Isso aqui, é impossível. Não quer dizer que não haja quem o faça mas de forma a que não se possa provar, o que diminui imenso o número de casos. A lei não o permite e mesmo que não houvesse lei e fôsse uma zona cinzenta, os direitos humanos não dariam chance nenhuma. A maior demonstração que se pode ver em todo o mundo, são soldados de idade muita avançada ao serviço dos EU e Canada. Uma pessoa é apta para o serviço, não pode ser descriminada. Não compreendo os nossos tribunais dos direitos humanos em Portugal, pois deixam passar tudo. Basta lêr os jornais.
No que respeita aos tempos de trabalho, isso aqui é muito restrito. O trabalhador com horário fixo tem direito a uma pausa sindical de quinze minutos de manhã e outra no periodo da tarde. A maioria dos patrões pagam estas pausas mas não são obrigados. Para almoçar, a pessoa tem direito a trinta minutos para almoçar. Um ponto principal é a pontualidade. Nisso não há desculpa. A mim parece-me que se atribui à crise que o nosso país passa, muitas desculpas. A disciplina é básica a tal pontos que até os sindicatos que têm muita força porque a ganharam ao longo dos tempos, não a põe em causa. O que penso que vai mal em Portugal, são os salários indignos que aí se pagam. Uma pessoa com família com vários filhos, como pode sobreviver? – Cortando condições às crianças que são o nosso futuro. É toda uma situação social. Aqui no trabalho, é trabalho mas a pessoa acabou o trabalho, tem o seu nível de vida.
Quanto às ofertas das grandes superfícies, se só agora aí há, é copiado do estrangeiro. Disso já cá existe há muito tempo. É um modo de marketing e não tem nada a ver com crises. E não pensem que vão lá só os necessitados, vão também para a bicha pessoas que estão com um nível de vida superior económico e académico. O que entra no bolso, é o que não se gasta. É esta a forma de ver daqui. Há muitos problemas a nível social porque a qualidade dos mesmos também evolui no tempo mas as pessoas são muito próximas e fáceis no contacto. Não se trata de humildade mas sim a forma de trabalho desde estudante e a disciplina, criou a simplicidade.
A crise em Portugal é terrível, ninguém tem dúvidas mas que não vejamos nos mínimos gestos um momento para se desanimar e atribuirmos tudo à crise.
Força.
Felício, passei por aqui e adorei ler o que tu escrevestes e o que o Chico Torreira escreveu.
ResponderEliminarOs dois são *****(5) estrelas!!
Um abraço para ambos
Fernando AZENHA