quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

O ENCARREGADO DE EDUCAÇÃO ...


Chamemos-lhe Manuela. Quando a Doutora Manuela subiu a escada, engoliu em seco e entrou na sala. Inspirou, espirou, suspirou, pendurou a carteira num cabide, colocou o compêndio de História no tampo da mesa e sentou-se de lado na secretária, como uma donzela desprotegida, a defender-se dos olhares de cão perdigueiro dos galfarros. Ela, a Manuela, professora de rosto suave, teve dois azares na vida: o primeiro, foi ter ficado viúva muito cedo; o segundo, foi ter sido escalada para dar aulas naquele antro de matulões.

Ela, a docente, já tinha sido avisada na sala dos professores, da qualidade dos alunos. De alguns alunos. Também na sala de aula, havia lugares marcados, conforme as expectativas dos discentes. 

Nas carteiras da primeira fila, os graxas, que lambuzavam os professores, com sorrisos e perguntas por vezes a roçar o untuoso. Depois, quatro ou cinco filas de carteiras de indiferenciados, que davam atenção às aulas conforme estavam de boa ou má catadura. No fundo, as galerias, que até dava para ler jornais desportivos, almanaques do Tim - Tim e comer pevides do Pianinho.

Ela, a docente, trazia a lição bem estudada e que assentava em dois pilares fundamentais:

Primeiro: não mostrar os dentes aos matulões, não dando qualquer confiança ao maralhal ;

Segundo: mostrar distanciamento perante a turma, tratando os alunos por “Senhores”;

Por exemplo:
- O Senhor aí atrás, diga-me quem é Robespierre?

Mas que pergunta mais escusada, lá para o fundo da galeria! Só se for o novo ponta de lança do Bordéus, do Lille ou do Marselha …

Na fila da frente, os escovas, roçavam o traseiro nas carteiras, desejosos de brilhar. O André, o mais velho da turma, ajeitava os óculos na esperança de poder vomitar a resposta:

- Ó Senhora Professora, Robespierre foi uma figura muito importante da Revolução Francesa, foi membro do Clube dos Jacobinos, da ala mais radical dos revolucionários …
Bingo ! Acertou !!!!!!!

Ela a professora, mantinha um ar distante, apesar de lhe ter agradado a resposta.
Três longos dias, durou o braço de ferro. O deslize foi no dia em que, desastradamente, a Dona Manuela se esqueceu do compêndio de História em casa.
Pediu um emprestado e o livro do Mendes rapidamente passou de mão em mão lá do fundo da sala, até que aterrou em cima da secretária dela. A Dona Maria Pia com a cara da Pata Margarida colada em cima e recortada de uma revista do Tio Patinhas não cabia na cabeça de ninguém. Camões com a cara de um dos irmãos Metralha … francamente … só tudo corrido a vara de marmeleiro !!!

Ela, a professora, surpreendida, desatou às gargalhadas e o caldo entornou-se. Nunca mais teve mão na turma.

Mas a maior surpresa, veio um dia da fila da frente. Exatamente aquela dos politicamente corretos. Dois irmãos gémeos, lá dos lados de Arganil, ocupavam as carteiras, mesmo em frente da secretária da professora.

Um dia, um dos irmãos teve positivo num teste, e o outro negativo. Um drama ! A Dona Manuela, então, debruçou-se da secretária e deu o teste negativo ao aluno e disse com voz imperativa:

- O Senhor leve o ponto ao seu encarregado de educação, para ele tomar conhecimento e assinar …
Ato contínuo, o aluno passou o ponto ao seu gémeo que, puxando da caneta, rubricou o exercício …

Ele, perplexa, perguntou de uma forma agreste:
- Que está a fazer ?! ... é para o encarregado de educação assinar …

A resposta foi imediata:
- Senhora professora, nós somos o encarregado de educação um do outro...

E o caldo entornou-se outra vez. Tinha acabado o reinado breve da Doutora Manuela, queimada na pira fumegante dos mais extravagantes alunos …
Quito Pereira           

10 comentários:

  1. A Doutora Manuela devia pedir ajuda ao Pulga que ele metia os galfarros na linha!...

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  2. Eu conheci alguns,Amílcar, Balhau Pinheiro ,etc.
    Tudo bons rapazes.

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  3. No 1º ano só andei até ao Natal, sendo trans ferido para o Liceu Camões/Lisboa mas ainda levei um estouro do PULGA, "só" três meses no D. João III e vim embora com o "selo"!!!
    Fernando AZENHA

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  4. No meu tempo e em colégio, quando nos iam matricular os pais-encarregados de educação- delegavam logo no director do Colégio essa responsabilidade!
    E assim, quando havia problema, de cábula ou de mau de mau comportamento, eram chamados ao gabinete do director, que fechava a porta e tratava do assunto, sem ser necessário incomodar o encarregado de educação!!!
    Mas a tua abordagem ao comportamento dos alunos "reguilas", que sempre houve em qualquer turma fosse do liceu ou colégio, deixa perceber que a relação aluno/professor era muitas vezes complexa, sobretudo se o professor/a não se impunha logo de inicio.
    Enfim "estórias" que são sempre saborosas de relembrar por quem por elas passou, algumas delas têm em comum episódios com gémeos!
    E do nooso tempo também mete pevides, seja com o pianinho ou com o calmeirão
    E como lhe sabes dar um cunho pessoal de escrita ainda mais "saborosas" ficam
    Gosto!


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  5. Eles deviam ter passado pela minha avó, Professora Claudina...

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  6. Essa da responsbilidade mutua, não lembraria a ninguém. Fartei-me de rir. Bem começado, melhor acabado.

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  7. Boa estória e, como sempre, bem contada. Essa da responsabilidade mutua, como diz o Chico Torreira, está muito "bem apanhada" e também me fez rir.
    Coisa que, nestes tempos difíceis, é o único luxo que não paga imposto.
    Toma lá aquele abraço.

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  8. Nunca tal desfecho me passaria pela cabeça!
    O Quito lembra-se de estórias que esqueceram ao diabo!

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