Um crepitar de memórias ...
Ti’ Leonor, nunca percorreu a primavera da vida. A sua existência, foi sempre um triste outono. Nasceu num dia cinzento, lá para o interior da Beira Baixa. Era mais uma boca, naquela casa de um rancho de irmãos. À noite, quando o sincelo escorria pela beirada dos telhados e uma bruma fria percorria a escuridão dos caminhos, a família juntava-se à volta da fogueira, na procura do calor retemperador da fadiga e da alma. Logo que deitou corpo e conheceu os espinhos da vida, ajudou na lida da casa e na lavoura. Da fonte, carregou a água e as lágrimas que lhe lavavam o rosto. Ao serão, desfeita de cansaço, à luz do candeeiro a petróleo, escrevia palavras em letra redonda, como aprendia na escola. Um trabalho de minúcia e de paciência. O temor de um professor rude e severo, era mais uma chaga na sua túnica de sofrimento. Um dia, arrumou de vez a sacola, onde moravam o caderno, a tabuada, a lousa e o giz. Ainda jovem, de pequena estatura, mas bem rija e morena, no dizer da canção da Beira Baixa, casou. Uma boda humilde de gente humilde. Uma nova etapa da vida, riscada no Firmamento com o mesmo ferrete dos seus tenros anos. O trabalho duro nas hortas, para ajudar ao magro pecúlio do marido, que juntava os magros tostões no fundo de uma gaveta, curvado sobre os joelhos a bater sola. Serenamente, Ti’ Leonor, foi dando à luz uma vasta prole, que, nas noites longas e agrestes, aconchegava no seu regaço de mãe. No inverno, quando a chama crepitava na lareira, lembrava-se dos tempos antigos. Das ternas noites, em que repartia o pão e o caldo fumegante, com os pais e os irmãos. Hoje, sentada no banco de pedra junto à porta da sua singela casa, de óculos velhos e gastos pelo uso, vai fazendo a renda que o Destino lhe teceu. A renda branca, de quem teve uma imaculada vida.
Q.P.
Q.P.
Gostei, como sempre bem escrito, com sensibilidade e com o cheiro da terra.
ResponderEliminarRai's partam o «Jornal do Fundão», que nem se dignam responder às minhas mensagens.
ResponderEliminarTu já lá devias ter um cantinho...
Para quando uma colectânea??? Estes retratos da nossa ruralidade e das suas gentes simples, constituem um acervo precioso. Isabel Parreiral Hipólito
ResponderEliminarSou muito preguiçosa para comentar os teus textos, dava-me algum trabalho, mas por outro lado deleito-me a lê-los...
ResponderEliminarComo sempre, gostei muito !
Um abraço.
Um livro... é o mínimo...
ResponderEliminarEstou a ver o sincelo que em Lisboa nunca se vê, que embeleza as fantasmagóricas e geladas noites serranas.
ResponderEliminarEstou a ver as garatujas que a Leonor ainda menina desenhava no caderno escolar para mostrar ao severo professor no dia seguinte
Estou a ver a Leonor já moça e casada a rebuscar na gaveta os magros tostões que o marido sapateiro ia amealhando com o seu trabalho, para dar de comer aos filhos.
Estou a ver a mãe Leonor a esforçar-se para repartir pela sua prole, o magro sustento.
Estou a ver as noites de amor em que ela e o marido ia gerando sucessivamente a filharada que era a sua alegria e a sua preocupação.
Estou a ver agora, já velha, a Ti Leonor à espera do destino certo e fatal a que a vida conduz.
Sim, estou a ver!
Porque quando o Quito escreve, a gente vê...
Obrigado Quito.
ResponderEliminarTonito.
Fez-me lembrar as noites à lareira com a avó a fazer filhoses e eu a comer metade da massa às escondidas :)
ResponderEliminarDaquelas fogueiras que o avô fazia que até as chamas saiam pela chaminé ...
Tu também és outro que tal, Rui, vês com os olhos da alma, por isso escreves maravilhas para nos embalares ao som da tua caneta !"
ResponderEliminarUm abraço, desta vez para ti.
Durante o meu percurso profissional, também me cruzei com várias " Ti Leonores"!
ResponderEliminarO prazer do calor de uma boa lareira, contrasta com a vivência de muitas das mulheres, como a que o Quito nos relata, romanceada da forma que ele tão bem sabe.
Lamento, mas lamento mesmo, como um professor podia ser " rude e severo", contribuindo para um maior sofrimento de um criança!!!
Infelizmente, as tareias em crianças na escola, naquela época, eram usuais.
ResponderEliminarEra a realidade nua e crua. Tive testemunhos disso, de pessoas que frequentaram, em tempos de antanho, a escola primária do Juncal do Campo, por exemplo.
Mais grave, quando eram os próprios pais a "incentivar" o professor à violência: "Senhor professor, quando for preciso "arreie-lhe". Era assim ...
Numa tarde...de grande torments...ao passar numa aldeia, no interior da Serra do Bucaco (com cedilha)...reparei numa velhinha...na soleira da porta de um pequeno casebre. Tambem tinha oculos gastos pelo tempo....tambem tinha um rosto algo gasto, pela rudeza da vida...
ResponderEliminarAo ler este texto do nosso Romancista, julgo que o seu nome tambem era uma Ti Leonor.
Parabens. Leio-te sempre com enorme prazer!!!
Obrigado,Quito.
ResponderEliminarUm abraço.
O Quito com a sua sensibilidade deu-nos o fiel retrato duma mulher sofrida que fez do sofrimento o seu destino. Gostei deste retrato da Ti Leonor.
ResponderEliminarE como as palavras e as ideias são como as cerejas que a cada uma que se puxa outras vêm atrás, esta Ti Leonor lembrou-me o poema de António Gedeão de outra sofrida mulher.
CALÇADA DE CARRICHE
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve lhe o sangue
de afogueada;
saltam lhe os peitos
na caminhada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu a deitada;
serviu se dela,
não deu por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá lhe a mamada;
veste se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada
Esta Ti Leonor também existe no Talasnal!Conheci là senhoras duma idade muito respeitàvel que correspondem precisamente a um percurso idêntico na vida!
ResponderEliminarEleven thirty pm! Parabens Quito,em me ofereceres mais um texto duma beleza imparàvel e que me ajudarà certamente a criar um sonho!!
A moda de entrevista, constrois o texto depois de teres arranjado a foto ou passas pela fase contrària?
Um grande abraço!
Quando o Quito escreve, a gente vê...
ResponderEliminarNão encontro melhor forma do que esta para sintetizar a capacidade de transmissão de personagens, de imagens, de sentimentos, de vidas duras e sofridas, que coloca à frente do nosso olhar.
Assim, ele escreve e... a gente vê!
Felício, desculpa o "copianço", mas é isso mesmo...
Parabéns Quito, por mais este belo texto.
Há uns anos atrás tive a sorte de ouvir a Odete a declamar a "a luísa".
ResponderEliminarAcredita que até eu arfava.
Venho de cima para baixo e cá cheguei à Ti Leonor...que veio formosa e segura até ao banco de pedra! Aqui sentada depois de tamanha vida amargurada vai fazendo renda para entreter a vida que ainda lhe resta!
ResponderEliminarEmbora mais uma vez me repita, sempre escrevo que gostei e gosto do que escreves e da maneira como escreves!
Espero pela próxima!
Caro BobbyZé
ResponderEliminarExistem muitas Ti' Leonor a fazer renda por esse Portugal fora, com vidas sofridas.
Esta, de uma aldeia próxima, é real, embora eu lhe tivesse protegido o nome.
Conhecia a sua vida passada e esse foi o mote para partir para o texto.
Um abraço a todos
A tua escrita tão cheia de pessoas tão simples e tão maravilhosas...
ResponderEliminarIdentifico-me com o comentário do teu filho Gonçalo!!!