terça-feira, 4 de outubro de 2011

TOMBOU A NOITE NO ALENTEJO ...

O nosso Alentejo, dos poentes incendiados ...


De novo percorro as retas alentejanas. E de novo me deixo prender num labirinto de emoções. Afinal, era aquele o crepúsculo desejado. O despedir-me daquele poente incendiado. De olhar o Sol, a derramar-se sobre a planície silenciosa. Ali, junto à Barragem de Montargil, um sereno espelho de água e, na sua margem, em contra - luz, a silhueta de um pescador, esperando pacientemente que o peixe morda o anzol. No fim de cada reta, no fim de cada nada, um povoado. E, porque hoje é sábado, no empedrado das ruas estreitas, as pequenas tabernas, onde, no seu exterior, sentados em pequenos bancos de madeira, os homens vão confraternizando à roda da mesa, onde repousam garrafas de cerveja e copos tingidos do vinho espesso. Na sua esmagadora maioria, gente cuja idade lembra o mês que percorrem – outubro. O outubro das suas existências. Para trás, ficou a labuta da terra que lhes deu o sustento. Do arado a gemer e a ferir a terra dura e sequiosa. São oito horas da noite. Em breve, se perfilará perante mim, a esfinge fantasmagórica dos sobreirais. Mas foi para ali, que orientei hoje o meu destino. Chegado ao hotel, encontrei o pequeno grupo de ex-militares com quem convivi num período da minha vida. Fomos de véspera – como sempre vamos - para o nosso encontro anual com a toda a Companhia. Agora que a noite tombou sobre o Alentejo, nada como procurar um restaurante, naquele labirinto de ruas estreitas de Montemor – o - Novo. Quero segredar – vos, que a escolha foi acertada. Na mesa, as mais variadas iguarias. A açorda, as migas, o porco preto e um vinho de Pias, de fazer estalar o céu – da - boca. São agora onze da noite. O corpo começa a reclamar cama, de cansaço. Mas ainda não acabou o dia e é apenas o começar da noite. De novo lá vamos, desbravando a planície noturna. O destino é Arraiolos, já os ponteiros da velha torre se unem, como se fossem um só. É meia - noite na pequena vila. Não se vê vivalma. Apenas este ou aquele habitante, de olhar vazio, no cruzamento das ruas estreitas. Os muros brancos, contrastam com as singelas janelas, encaixadas em esquadrias pintadas a tinta azul, que lhes avivam a tez morena da madeira castanha ressequida. Num largo, um bando de jovens, sentam-se na esplanada. Eles e elas. Garrafas de água e cerveja, fundem-se em cima da mesa do pequeno café. Lá dentro, de avental, um homem idoso vai varrendo o chão de cimento, como quem varre as memórias de uma vida plantada no meio do silêncio e dos silêncios. Os ponteiros do relógio, já espreitam a uma da madrugada. Apenas a luz difusa dos candeeiros de rua, projeta um clarão pálido sobre os telhados do casario. São horas de regressar. Apenas o tempo de percorrer um pequeno jardim. Ao fundo, um busto. E um nome, numa placa de bronze. Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara. Estranho nome para um português ilustre. Que o foi, na sua qualidade de médico e Homem de Letras, natural da vila de Arraiolos. Por alguns momentos, fiquei a fitá-lo. O seu semblante, assemelhava-se a Alexandre Herculano. O meu amigo Paulo Archer, advogado em terras do norte, também concordou. Foi então que, junto ao chão, repousavam algumas folhas caídas. Deu para lembrar Garrett, a par de Herculano. Um momento simbólico, naquele elogio ao silêncio. E a Joaquim da Cunha Rivara, um português que é um orgulho de uma vila. Por isso aqui estou, anonimamente, a homenageá-lo. A minha forma de abraçar o povo alentejano. E o Alentejo.
Q.P.

12 comentários:

  1. Escrito conforme o novo Acordo Ortográfico.

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  2. O Alentejo é uma maravilha.
    Abre aço!

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  3. Às vezes arrepio-me com as coisas que escreves, pela forma, pelo conteúdo e pela tua capacidade de nos transmitires sentimentos que nesta azáfama diária trazemos adormecidos.
    Desta vez, para além disso, alguns arrepios vêm do uso do novo acordo ortográfico. Sou contra ele, como já tenho dito.
    Mas essas são contas de outro rosário. Noutra ocasião e noutro lugar podemos falar disso. Respeito os argumentos de quem o defende, mas não lhes reconheço valia.
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    Quanto ao texto, tem o mérito de nos falar de um homem que muitos não conhecerão, Heliodoro Rivara. E de nos deliciarmos com a forma como o Quito, a pretexto disso, homenageia o Alentejo e as suas gentes, num abraço que sei que é sentido...

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  4. Entendo o arrepio do Felício, sobre o acordo ortográfico. Também não gosto. Depois de reler o texto e de o converter há nova realidade, apeteceu-me não o publicar, nesta colaboração que vou dando ao E.G.
    É a sensação daquele almoço que fizemos para os amigos, e quando já estamos à mesa, verificamos que nos esquecemos de um ingrediente fundamental.
    Não atiro para sempre a toalha ao chão. Uma vez por outra, vou escrever "recta", vou escrever "projecta" e vou dar ao "Outubro" a dignidade que merece. Porquê ? Simplesmente porque me apetece.
    Um abraço a todos

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  5. Mais um encontro para matar saudades com velhos companheiros da "tropa", nas guerras do ultramar ou "colónias" conforme cada um prefira!
    Desta vez por terras do Alentejo.
    Dum Alentejo que te encanta e sobre qual construíste mais um belo texto!
    Foi concerteza mais uma jornada de saudade...

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  6. Talvez por serem sempre de uma beleza estranha e incomparável, as imagens dos por-do-sol proliferam e recolhem o agrado geral.
    A vantagem do bonito por-do-sol com que o Quito encima e ilustra o seu escrito é que aparece contextualizado, como complemento imprescindível e adequado. Não está ali a mais nem a menos. Está ali para traduzir o poente incendiado com que ele começa a sua história.
    Com ele, situamo-nos e começamos a caminhada para a noite, para a qual nos convida...

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  7. Oxalá te apeteça sempre, Quito! Com ou sem acordo ortográfico...
    Porque, mais importante que a forma é o conteúdo.
    E porque a forma como escreves é eterna. Não depende da ortografia oficial do momento.

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  8. Foi no Outono da vida que Garrett reuniu as Folhas Caídas a que o Quito fez referência.

    Numa vida dedicada essencialmente ao romance Garrett foi também e sempre um poeta. A sua poesia transpira da prosa dos romances que escreveu, mas também dos versos, menos conhecidos,que alinhou.

    Agora digam-me lá se exagero quando estabeleço paralelismos entre o Quito e os nossos escritores clássicos.

    De facto, quem se lembraria de Garrett, no outono da sua vida, ao olhar no chão simples folhas caídas do Outono climático?

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  9. Desta vez, é o Alentejo que é bafejado pela pena atenta e irrequieta do Quito.
    No seu estilo calmo, quase à moda alentejana, introduz-nos no seu labirinto de emoções.
    Reli o texto, tentando saborear esse manancial de emoções que ele concentra.
    O Outono, que eu prefiro a outono, está lá todo.
    A paixão pelos clássicos da língua portuguesa, está lá toda.
    A importância que é dada ao reencontro com velhos camaradas da vida militar, está lá toda.
    Isto é, em cada texto que o Quito nos oferece, dá-nos um pouco de si próprio.
    Só podemos ficar-lhe grato.
    Aquele abraço.

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  10. Este comentário foi removido pelo autor.

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  11. De regresso de mais uma viagem de trabalho a PARIS e duma passeata ontem à tarde pelos Campos Eliseos, descubro a maravilha deste texto!
    Podias ter citado a riqueza artesanal dessa linda cidade de ARRAIOLOS, a famosa tapeçaria que tanto a caracteriza!

    Parabens por esta viagem através do Alentejo!

    Quando é que te decides a escrever um verdadeiro romance?

    Um grande abraço!

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