quarta-feira, 5 de outubro de 2011

UTOPIA



Uma da tarde…
Dos alvéolos daquele moderno prédio de escritórios das Amoreiras, saem apressados advogados, gestores, secretárias, engenheiros, arquitectos, escriturários, telefonistas, formando filas nos átrios dos elevadores metálicos que chegam e os sorvem, levando-os ao piso térreo.
Já na rua, cada um toma a sua direcção, incorporando-se no formigueiro humano, uns para cá outros para lá, com destinos precisos mas insondáveis.
Procuram lugar em restaurantes apinhados não muito caros. Olham para os relógios, impacientes, gerindo o escasso tempo para almoço, enquanto aguardam a sopa, o croquete, o miniprato do dia e a imperial.
O Mário comeu à pressa as duas empadas, achou-as pastosas, ,empurrou-as pela goela bebendo de um trago o copo de compal, pagou e saiu. Atravessou a avenida e deambulou pelas sombras do Parque Eduardo VII. Ainda tinha três quartos de hora antes de regressar ao ar condicionado do escritório que lhe secava os pulmões.
Parou, mirando o grupo de jovens, sentados ou estendidos na relva, alguns com os cabelos pintados de cores berrantes, fumando cigarros feitos à mão que exalavam um cheiro agridoce, intenso.
No passeio, um deles tinha estendido uma parafernália de pulseiras, estatuetas de madeira, brincos, anéis, emblemas prateados, ganchos, incentivando os passantes a comprarem alguma das peças da sua arte…
O Mário recuou umas dezenas de anos. Lembrou-se de uma fase da sua vida em que aderira ao movimento hippie, passando dias e dias em meditação, em contemplação, sonhando com a utopia de uma sociedade livre dos espartilhos das regras e das convenções.
-Oh cota!, tira a armadura e senta-te aqui, meu!, convidou aquele que parecia ser o mais velho, de longos cabelos e barba grisalha.
Despiu o casaco, chutou para longe um sapato, depois o outro. Tinham-lhe custado 160 euros, mas que lhe importava? Tirou as peúgas e lançou-as ao vento. Sorriu e sentou-se sem nada dizer, relaxado. Como era bom sentir o fresco da relva sob os pés, naquele dia abafado, soturno.
- Tira a gravata, meu! Não te faz sentir um garrote em volta do pescoço?
Era mesmo isso, a gravata era o símbolo da escravidão consentida que lhe asfixiava a vontade.
Notou que ninguém reparava neles. Parecia ter-se integrado num grupo de invisíveis.
O mais velho do clã, explicou-lhe que não. Que não eram invisíveis. As pessoas é que se tinham tornado cegas. Que só vêem aquilo que a máquina trituradora que as comanda, lhes deixa ver!
E que a utopia é uma visão proscrita!

Rui Felicio

8 comentários:

  1. A escravidão consentida. Também podia ser este o título deste belo texto. Dá para meditar. Somos cada vez mais escravos de nós próprios e dos outros. Vivemos enclausurados em gaiolas invisíveis, numa aparente liberdade.
    A gravata como símbolo da escravidão. Uma frase feliz e muito verdadeira. Todos os dias, todo o ano, faça frio ou calor intenso, entram-me pelo estabelecimento, num ritual balofo, em que se percebe que não são eles próprios. Apresentam-se com uma aparência que lhes é imposta. Cuidaram-lhes, supostamente, da aparência, como se um fato e uma gravata fosse a imagem de marca da firma representada. Para mim não o é. Respeito quem anda por fora semanas inteiras. Tenho ouvido a vendedores desabafos de quem se sente atingido na sua dignidade. Seja pelas próprias firmas e os famigerados objectivos de vendas que é preciso cumprir com o despedimento no horizonte, ou pelos próprios estabelecimentos onde, por vezes, a receptividade é "abaixo de cão".
    Este texto do Rui, desencadeou em mim uma série de pensamentos. E de como é bem verdadeiro que muitas vezes, neste jogo de aparências, apetece derrubar os símbolos da escravidão, metendo a gravata no bolso e atirando um sapato para cada lado. Não sou quem o diz. É o que me dizem aqueles a quem o sistema castrou a vida.
    Um abraço, Rui

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  2. Se outro eco não tivesse este texto escrito em fim de tarde de melancolia e de meditação sobre o significado da efeméride de hoje, cada vez mais banalizada por discursos de circunstância, bastar-me-ia o genial comentário do Quito.
    A quem aplaudo!

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  3. Posso entrar?!
    Mais um belo texto e um belo comentário.
    Vou tentar comentar os dois,embora sem a capacidade do Rui e do Quito.
    A meu ver,de há uns 20 anos para cá,todos os nossos conceitos-padrão têm sido,de mansinho,alterados com o objectivo de transformar os nossos comportamentos sociais.
    Digamos que,na generalidade,quem o fez cumpriu os seus objectivos:domesticar algum pessoal que utilizava a sua massa crítica para reivindicar,protestar e actuar.
    Propagou-se um novo conceito de bem-estar que implicava,além de uma boa aparência física(com os respectivos adereços) uma ideia de viver num "castelo",seguro e inviolável:uma boa casa e um bom carro.Ver cinema e ouvir música em casa;não deixar os meninos andar na rua;contactos sociais reduzidos ao indispensável;acabar com cafés e com locais em que as pessoas estavam habituadas a cavaquear(sem ofensa ao "professor") e a dar à língua.
    O bem-estar passou a ser estarmos no nosso "castelo",só com os nossos,e cada um guardar para si o seu conforto,a sua música,seu filme,etc.
    O resto era trabalho intensivo,sem pausa ou descanso,de forma a que o nosso objectivo fosse atingido:sustentar o nosso "castelo".
    Esse foi,a meu ver,o golpe mortal na LIBERDADE.
    Já vai longo este desabafo trapalhão.
    Um abraço a todos e
    Viva a Liberdade!
    Rui Lucas

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  4. Lado a lado.O formigueiro da CIDADE de arranha céus, onde as pessoas não se conhecem, passando umas pelas outras sem notarem sequer que se cruzam.São autómatos circulantes.Comem de pé, qualquer coisa, que não seja caro, giram ao ritmo de uma vida cada vez menos humanizada.
    Aqui a parte do Rui Felício!
    Valha-nos as SERRAS-o campo(o pouco que ainda existe), tudo mais calmo,come-se sentado, aprecia-se a refeição, mesmo que não seja "um grande prato", dá para relaxar, respira-se ar puro(ou mais puro que na cidade).Dá para ler pousadamente o texto do Rui Felício.Por cada linha lida já germina o que vai ser o comentário, sem pressas...O Quito!
    Mas que par se juntou lada a lado! Dois textos, dois estilos:um saído da melancolia e meditação que o dia de Republica, da actual Republica o impeliu a escrever...para desabafar; outro desiludido com o tempo que passa, da escravidão consentida, que vai corroendo a vida...nesta aparente liberdade!
    Em comum o mesmo sentimento sobre a gravata!
    Sempre há alguma convergência!
    São os dois dignos da minha admiração!
    Se não me fiz compreender...não admira!

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  5. O Mário libertou-se da "armadura", sentiu a frescura da relva sob os pés descalços, respirou ar puro, liberto do maldito ar condicionado que lhe secava os pulmões.
    Foram três quartos de horas de utopia que o Rui Felício lhe concedeu.
    Em nome do Mário, obrigado.
    Em meu nome, muito obrigado, por nos lembrares, a todos nós que te lemos, que a utopia é um bom alimento para a alma.
    Porque comanda o sonho e porque este comanda a vida...
    Aquele abraço.

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  6. Em tempo:
    Também eu apreciei os comentários anteriores.
    OS TRÊS!

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  7. É incontornável pararmos nem que seja por um brevíssimo momento e pensar em que Mundo estamos e para onde vamos.
    Somos mais uma das peças desta engrenagem infernal que nos arrasta para o abismo das inutilidades. Felizes e contentes agarramo-nos a cada momento desta vida de marionetas com receio de perder as insignificâncias para que fomos formatados.
    Continuamos acomodados e cegos, na repetição de hábitos e atitudes sem sentido, que nos transportam para a situação que estamos vivendo escorregando indiferentes pelo túnel sem luz nem tempo.
    Precisamos de vozes que nos chamem e nos libertem dos garrotes que nos escravizam. O Grito, um Grito colectivo que se ouvisse em cada canto, no mais sórdido lugar, um Grito anunciador dum homem novo e livre, justo e solidário, que soubesse, como o Mário, libertasse da armadura e do garrote, renascer e saborear “o fresco da relva sob os pés”...

    Felicio, bela homenagem na comemoração duma data que nasceu um dia cheia de esperança.
    É de referir também os excelentes comentários.

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  8. Um " Grito anunciador dum homem novo e livre ", diz o Abílio, contrariando que a utopia seja uma visão proscrita!

    Mais um abraço.

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