(foto net)
Chamava-se
Rosa. Era nome de uma flor.
Quando a tarde caía sobre a bolanha e o Sol inundava os
telhados de zinco do casario militar, dando-lhes uma tonalidade cor de prata, o
silêncio derramava-se sobre as cubatas cobertas de colmo, como de mistério se
tratasse. No ar, apenas os cânticos das “mulheres grandes”, o expoente máximo
da sabedoria de experiência feita. Também das mais novas que, com os filhos de
tenra idade suspensos às costas, de cabeça pendente do sono reparador,
amassavam a mandioca com o pilão, em movimentos ritmados e um rosto tristonho,
como se sentissem conformadas com o Destino.
Naquele cirandar da roda da vida, naqueles fatos coloridos em
movimento, como uma girandola de foguetes em festiva apoteose, uma se destacava
pelo seu corpo esguio, olhos grandes e pele de cetim – Rosa.
Rosa, nasceu de etnia fula e tinha nome a condizer - Cadi.
Porém, estranhamente, alguém a apadrinhou de Rosa. E Rosa ficou. Era mulher de
rara beleza, na sua tez de ébano. Porém, o Destino cruel, saltou-lhe numa
encruzilhada do caminho e o marido, soldado no exército luso, tombou para
sempre nos horrores da guerra. No regaço, ficaram três filhos que, de barriga
proeminente de desnutrição e as pernas titubeantes, se agarravam às saias da
mãe, como quem suplicava pela proteção maternal. E Rosa, a todos acarinhava com
desvelo, enquanto da panela de um asseio imaculado, distribuía por cada um dos
filhos, uma porção de arroz alvo como neve.
Rosa, era muito respeitada pelas comunidades africana e
portuguesa. Apenas este ou aquele elemento da soldadesca, mais atrevido e
afoito, a mirava com esgares de cobiça, os olhos a chispar de desejo. Mas Rosa,
sabia precaver-se das investidas da pequena alcateia que, à sua volta, girava
como lobos famintos e sombrios.
Porém, Rosa sabia que estava protegida por toda uma grande família,
que lhe admirava a dignidade com que calcorreava, a custo, todas as curvas estreitas
da vida e, de longe, se mostrava vigilante para com a africana de voz doce, num
sentimento partilhado por civis e militares.
Porque Rosa era nome de mulher. Porque Rosa era nome de uma flor.
Quito Pereira
Quem diria que uma Cadi seria um dia Rosa. Sendo um nome tradicional português não tem para nós europeus a sonoridade de mistério duma Cadi...
ResponderEliminarUltimamente, por acaso, se é que alguma coisa verdadeiramente acontece por acaso, tenho-me surpreendido pela literatura africana e tem sido um prazer a descoberta de Luandino Vieira, Mia Couto, José Eduardo Agualusa etc. Esta Rosa ou Cadi que o Quito nos traz poderia bem ser descrita por qualquer um deles.
Obrigado Quito, Gostei.
Um abraço
Abílio
Envio-te um abraço, Abílio. Este texto estava no meu arquivo há cerca de um ano e hoje resolvi trazer a Cadi (que conheci na minha passagem por África)) até aos amigos. Fico satisfeito por ter ido ao encontro dos teus gostos. Abraço também para a amiga Zeca ...
ResponderEliminarUm belíssimo texto, cheio de ternura e muito angustiante! As Cadis eram verdadeiras heroínas. Uma guerra que nos deixou marcas que o tempo jamais apagará!... Fiquei a pensar o que será feito da Cadi e das suas crianças!
ResponderEliminarTambém me interrogo, Alfredo. Ficam sempre laços de afecto, com os naturais com quem convivemos. Porém, é do meu conhecimento que a passagem de Canjadude para as forças da Guiné, se fez de forma pacifica, embora tudo o que eram instalações portuguesas, fossem demolidas. Acredito, quero acreditar, que as populações mantiveram a sua vida normal.
ResponderEliminarÁfrica é feiticeira. Os seus pôr - do - Sol, os cânticos das mulheres e as paisagens não deixam ninguém indiferente e tu, que és conhecedor pelo que tens viajado, sabe-lo bem.
Mesmo quando se vivia um momento particularmente cinzento da juventude, como era o nosso caso.
Abraço
Tens razão Quito! A África tem um fascínio e um encanto difícil de explicar!
EliminarA Cadi representa a Mulher afável,procriadora,mãe dedicada mas cuja moral hipócrita a obrigava a respeitar a"alma" do marido morto e ,em troca, era-lhe coartada a sua sexualidade e "dar" um novo pai aos filhos.Sublimaria este instinto nobre com a dedicação exclusiva às crianças?
ResponderEliminarQuantas,Cadis/Rosas sofreram esta amputação de voltar a amar!!!
E gostei desta narrativa real...Levanta tantas questões muito diversas para além das que mais me sobressairam.
Texto que nos toca profundamente!O que relatas está superiormente, como de costume, escrito com maestria!
ResponderEliminarTudo o que poderia dizer já li nos comentários que foram aparecendo.
O som cavo e ritmado do pilão a desfazer em pó a mandioca ou a descascar os grãos de arroz, os corpos das mulheres a balançar envoltos em coloridos panos africanos, o sol a derramar-se na bolanha, os telhados de colmo espalhados como cogumelos, os homens grandes a rezar à sombra do mangueiro ou em longos e acalorados debates, são imagens e sons que jamais se apagarão da memória de quem esteve em África.
ResponderEliminarO Quito fez-me recordar tudo isto...
Um Abraço.
ResponderEliminarTonito.
Uma Rosa abençoada!
ResponderEliminarMulher de grande classe!
Impunha-se pelo seu comportamento e inteligência, compondo o seu lindo rosto!
Bonito, mesmo!
Expliquem-me o cheiro,a bolanha,os sons e o encanto de África...
ResponderEliminarTenho a ideia colonialista cujos colonos transformaram o povo,as suas terras,os seus sonhos,as suas famílias...apenas resultaram raiva e revolta.O que refiro tem a ver com o tempo em que o Quito e o Rui cumpriram o serviço militar,a tal obrigados!E não ao tempo actual.
Já sei que não se consegue transmitir apenas viver,dirão, como viveram.Acredito.
Mas não há ninguém que não diga o que vocês dizem.
EliminarTambém nos filmes que já vi e nos livros que li observo isso.
Os vossos contos idem.
Contudo nenhum de vós e outros optaram por ir residir e continuarem a ter aquele fascínio de que tanto vos recordais...
Porquê,então?
Olinda,
EliminarCompreendo a tua exposição, só que eu resolvi lá ficar e tive que partir como imensos naturais nessa altura teriam partido, só que não tinham direito passaporte português como me arrumaram à cara. Uma coisa é o que se ouve e a outra é viver-se.
Não venho fazer a defeza do colonialismo porque havia muita coisa mal como todos sabemos e de fundo, só que o que estava mal, ninguém podia estar de acordo. Também não venho defender o que estava bem, pois os dois casos levariam muito tempo a expôr.
O que aconteceu é que a seguir à independência instalou-se um sistema totalitário pior que a ditadura a que se tinha estado sujeito. Não para os portugueses pois tínhamos um passaporte connosco. Era no entanto muito difícil ver o que faziam sem nada se poder fazer. Nunca mais me esqueço de me levantar uma manhã muito cedo no hotel na cidade de Maputo, porque os meus amigos telefonaram-me a quererem saber se eu estva lá ou tinha sido preso. Fiquei a saber que só nessa noite tinham levado uns milhares para estádios como aconteceu noutro país tão falado, sendo depois deportados para campos de reeducação que mais não eram que campos de concentração. Não querendo ainda acreditar no assunto, fui ver com os meus próprios olhos do ar e de facto lá estava um estádio pleno de pessoas no meio da qual se via um triangulozinho muito pequeno de brancos pois já só havia muitos poucos. O único crime como desculpa para a prisão e deportação para os tais campos, era no momento não teram uma peça de identificação com eles, o que era hábito naquelas terras. Eu trazia sempre a identificação no porta luvas do carro e era lá que ficava sem ninguém roubar.
Dois dias depois cheguei à Beira e o meu mainato que não me abandonava também tinha sido preso como outros tantos milhares. Fui aos serviços tentar saber, falei com dois comandantes e niguém sabia dizer para onde o tinham levado. Fiz um documento idêntico aos dos nossos tempos aonde me responsabilizava por ele mas nunca mais o vi. Lá tinha ido para um campo. Também tinham sido uns milhares na Beira e vim a saber que em Nampula tinham tido a mesma sorte. Enfim, umas dezenas de milhares largos.
Nada disto podia ser alterado pois dormiu em minha casa o comandante da região de Quelimane e explicou-me que todos obedeciam directamente ao comando do Maputo e não podiam interferir em nada. Assim, os comandos eram autênticas bolsas isoladas e jamais tinham a oportunidade de se revoltarem. Ele próprio entrou em minha casa sem que o comando da área da Beira soubesse e de lá partiu para Maputo. Não sabiam uns dos outros. Propôs-me de ir viver para Quelimane, se bem que já lá tivesse tido um problema criado por um comandante seu subalterno. Teve uma conversa com ele e garantiu-me que tal lá nunca mais aconteceria. Agradeci-lhe porque era o que ele podia fazer mas ter lá emprego quando tudo estava a fechar e numa cidade muito mais pequena, não valia a pena.
É preciso ver que quando se fala em mainato, a sociedade lá era matriarcal e as mulheres trabalhavam as fazendas do casal e eles iam trabalhar nas casas. O mainato era um sistema de manter a mão de obra de pessoas que não tinham cultura académica nenhuma, pois uma vez quiz-se importar máquinas de lavar roupa e não foi autorizado porque isso mandaria muitos mainatos para o desemprego, o que hoje é uma realidade.
(Continua)
A mim nunca me faltou o mainato porque não era casado, não tinha mulher em casa para lhe dizer o que fazer, ele era dono e senhor pois só me via de manhã e à noite fazendo o que queria. Por sua vez, os que queriam ganhar bem mais, iam trabalhar para as farmas das companhias no campo mas como todas as sociedades se contradizem, andavam sempre sem dinheiro. Um homem para ter uma certa projecção, tinha que ter várias mulheres. Sociedade matriarcal e polígama.
EliminarDos que tinham estudos, já era diferente. Havia os que tendo habilitações e temendo de não arranjar emprego, não as apresentavam como acontece já há muito tempo aí em Portugal com certos certos cursos superiores em bancos e aqui aonde uma pessoa com mestrado pode estar a trabalhar num supermercado. Os outros era diferente: na companhia aonde eu trabalhava tinhamos vários nos escritórios, o responsável pelo cofre era o sr. Cândido e o responsável por toda a parte técnica era um primo do primeiro presidente de Moçambique. Ainda bem que antes nunca souberam. Isto era normal, o Torres da AAC que esteve em Nampula era major e não soldado, porque até era médico.
O problema é que a queda da economia foi propositada, pois até levámos à nossa companhia o comissário Mário para nos falar das intenções da Frelimo. Explicou-nos que económicamente o país estava no dois e teria que ir ao zero para depois voltar ao um a fim de se obter uma igualdade geral, o que era de prever que jamais aconteceria. Um país que tinha uma economia que era uma maravilha mas uma economia parada não arranca tão fácilmente. Era só acertar os erros. Assim, depois na dita igualdade, tinham as suas lojas com as montras pintadas de branco para os do partido e o povo não tinha comida. Tinha-mo-nos que ajudar uns aos outros, brancos e pretos, porque certos produtos alimentares não apareciam. Falo do que vivi e só tenho pena de já me terem passados certos nomes.
Não falo de erros humanos mas sim de problemas vindos de cima como na nossa ditadura mas com muito mais repercursões em muito menos tempo para aquele povo, quando o país já estava libertado.
Com a economia em baixo os hospitais ficaram uma miséria, os meios de transporte e estradas também, a repressão sobre aqueles que nada tinham feito e para mais eram os seus próprios cidadãos, era uma realidade.
Por isso uma pessoa partiu e refez a sua vida com muita pena dos que sem culpa nenhuma sofreram as vicissitudes de uma ditadura que nada tendo ensinado, nos levou a uma impreparação com erros tremendos que se veio a sentir mesmo depois do golpe de estado.
De facto tudo mudou mais tarde no tempo de Joaquim Chissano, porque os antigos não ficaram no poder uma vez que já não controlavam os acontecimentos nesse momento.
Bem, não sei qual é a impressão que uma pessoa possa ter ao ler o que escrevi, pois não sou um Quito ou Rui Felício para expôr de certa forma mas francamente que escrevi em amena cavaqueira.
Mais um testemunho de quem soube sofrer a guerra, que não queria, olhando os africanos como seus irmãos, também eles vítimas de uma política condenada por todo o mundo civilizado.
ResponderEliminarO "cheiro", o "fascínio", de África é uma constante marcante por quem por lá passou.
Já várias vezes o disse e repito que não sei se fiz bem em tudo ter feito para me "safar" da guerra colonial. E nem sei se foi sorte ou azar ter conseguido não ter saído do "puto".
Incógnitas que me ficarão para o resto do resto que me falta viver, com a certeza que me teria enriquecido a experiência da vida.
Quito, toma lá um abraço.
Rui Felício, toma lá outro.
Nota muito importante: não suporto "os Rambos à portuguesa" dos anos 60. Enojam-me! Aqui fica o aviso, para que não haja confusões.
Também só sei de África que nada sei. Tenho colegas e amigos meus que nasceram lá e que me falam dessa paixão pelo "cheiro de África"...
ResponderEliminarUm deles, que nasceu em Moçambique e trabalha como consultor de empresários que investem nos PALOP (países africanos de língua oficial portuguesa), insistentemente me tenta convencer a ir lá, fazendo ele de cicerone. E eu, burro, nunca tenho "disponibilidade"...
Tenho andado afastado e vou continuar ainda por algum tempo mas tenho quem me vá dizendo o que se passa no blogue e eu também uma vez por outra vou lendo e vendo certas postagens.
ResponderEliminarCom uma postagem desta categoria do Quito num assunto que me toca sempre profundamente, assim como alguns comentários, não poderia deixar de me apresentar. O artigo mais uma vez muito bem escrito e muito humano a contar-nos a estória de uma de tantas Rosas que ficaram por essas terras e que nos fazem pensar. Tive uns colegas meus na tropa naturais de Moçambique dos quais um fiquei sempre amigo e que depois aderiu à Frelimo, tendo eu sido padrinho de casamento da sua irmã já depois da independência. Hoje como com tantos outros, pergunto-me o que foi feito deles em tantas reviravoltas que lá houve e que dificilemente saberei um dia. São assuntos que nos tocam e bem haja esta postagem.