quarta-feira, 19 de março de 2014

DÍVIDA SALDADA ...




Dormirei descansado ...

Sentado num degrau de mármore, na entrada do lar de idosos, vai mastigando o cigarro. Um cigarro encardido, que se lhe cola aos lábios grossos e descarnados. Por momentos, fica meditabundo. Um olhar vazio, à procura de nada. Depois, com o ritual de muitos anos, tira o cigarro embebido em saliva e já no seu estertor da boca, preso por entre os dedos indicador e polegar da mão direita, como o cirurgião que manipula com precisão, uma pinça no corpo do paciente. Encara-me então e dá uma sonora gargalhada. É sempre assim. Num esgar, abre a boca toda que deixa ver meia dúzia de dentes semeados ao vento, implantados numas gengivas vermelhas e infectadas. Depois, cordial como sempre é, pergunta-me:

- Leva-me de boleia para a aldeia, para eu tomar um café?

Partimos. É curta a viagem. Cerca de seiscentos metros no alcatrão da estrada ziguezagueante. Chegamos. Paro o carro debaixo de um frondoso plátano, junto do Café “Portas da Serra”. Então ele, com um sorriso gaiato a iluminar-lhe a face, atira – me:

- Podia dar-me cinquenta cêntimos para eu beber uma tacita de vinho …

- Pois podia – digo-lhe sério, a morrer de riso por dentro – mas combinámos que só te pagava uma taça de vinho às sextas – feiras e hoje ainda só é terça … portanto …

Ri-se. Ajeita-se nervosamente no banco, estende para mim o dedo indicador e diz-me devarinho como quem está a medir bem as palavras:

- Mas já me deve a taça da sexta - feira passada, porque eu não o vi por aqui …

Encostado às cordas com a argumentação, puxo do porta - moedas do bolso de trás das calças e dou-lhes cinquenta cêntimos. Agradece-me com uma vénia e um “bem - haja”. Abre a porta do carro, que depois fecha cuidadosamente. Já na berma da estrada, mete de novo a cara grande e marcada pela vida no habitáculo do automóvel e diz-me muito educadamente :

- Daqui a três dias … na próxima sexta- feira, paga-me outra para acertarmos tudo. A taça de hoje não conta para esta semana, porque é atrasada e estava em dívida …

Fico a olhar para ele, como que querer mostrar-lhe que me apetece engoli-lo vivo, para depois lhe responder:

- Está bem Mário, na próxima sexta - feira pago-te mais uma taça e as contas ficam resolvidas …

Com mais uma gargalhada, partiu. Entrou no Café, para logo sair de seguida, a fazer um frete de levar aos ombros uma bilha de gás a um qualquer freguês, o que lhe poderá valer mais uns apetecidos trocos.

Na próxima sexta - feira lá estarei, no “Portas da Serra”, a rodopiar uma moeda em cima do balcão, para pagar o que devo. Já com a dívida saldada, certamente que ao deitar a cabeça no travesseiro ao badalar da meia - noite, dormirei mais descansado …
Quito Pereira    
          

11 comentários:

  1. Contas com Jorge e Jorge na rua...mai'nada!!!

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  2. Menino Quito «contas são contas,o resto são aveques».
    Tonito.

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  3. Tá giro o que aqui descreves.
    Este teu amigo, aliás, como tens outros por aí, e que te proporcionam belos textos, relatando episódios que vais vivendo por aí, nas fraldas da serra., deve ser um amigo especial e com graça!!!
    Embora mal "acomparado" aqui há uns anos encontrei-me com um companheiro dos nossos tempos, talvez mais do meu, e que jogava à bola connosco no cavalo selvagem.
    Já não me lembrava bem dele, mas lá se identificou, contando essas tardes de futebol "selvagem", e ia indicando nomes que correspondia aos amigos desses tempos.
    Dizia que estava doente, a mulher também, os filhos a mesma coisa e tal e coisa e que precisava de ajuda.
    Lá lhe fui dizendo que devia procurar os subsidios que estavam instituidos para essa situações, etc.
    Mas, ok, vou-te ajudar em alguns alimentos e roupas.
    E lá fui dando o que entendia que lhe pudesse ser útil, agradecia e voltava de vez em quando para nova remessa
    Até que mais tarde me pediu que em vez dos alimentos e roupas eu lhe desse algum dinheiro.
    Fulano dá-me tanto, cicrano tambem, beltrano também...
    Então lá passei a dar também algum dinheiro.
    Mais ou menos todos os meses onde me encontrava, (tratava-me por Fernandidto),"pode ser hoje uma ajudita"?
    Foi decorrendo com o tempo até que um dia me bate à porta, e dispara: vinha receber a féria!!!!!
    Levou um sermão e foi o FIM DA AJUDA!
    Ainda hoje passados mais de 30 anos ainda o costumo ver a passear por estes lados!

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    1. Ó Fernandito! Se ele te passasse um recibo com NIB ainda vá que não vá, sempre dava para o sorteio do carro!... Mas sem recibo nem NIB, fizeste tu muito bem... despachaste o gajo que aqui não há pão p'ra malucos!...

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  4. Quito
    O prometido, é devido mas na realidade o Mário começou pelo café, passou ao copito que segundo dizem tem trinta e duas proteínas e vitaminas, terminando com a paga semanal. Esse Mário é manhôôôôôôôôôso.

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  5. Pois é Quito!... A andares assim a distribuir a reforma pelos Mários, Pedros, e Paulos, (e estes dois últimos não se contentam só com um copo por semana) qualquer dia andas tu a pedir boleia e a pedir um prato de sopa de porta em porta!...

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  6. Aquele bon vivant pediu ao amigo:
    - Tens aí um conto de reis que me emprestes?
    - Não, pá. Olha só aqui tenho uma nota de cem, ~desculpou-se o outro mostrando lhe a carteira
    - Está bem, retorquiu o bon vivant. Dá cá os cem. Ficas me a dever 900 paus.

    Ocorreu-me esta história, anáçoga à do Quito.
    A diferença essencial está em que aquela que ele aqui nos trás é o leitmotiv para mais um extraordinário conto que nos delicia com a perfeita descriçao do ambiente rural em que o Quito se movimenta e que nos faz imaginar que, na sua sombra, assistimos a tudo.
    Desde o perfeito retrato do "credor", à tasca, à estrada ziguezagueante...

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  7. Solidário mas nem tanto,Quito...
    Aldeia é já habitada por "xicos espertos"!
    Conta mais desse quotidiano tão bem bem retratado por ti.

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  8. Grande Mário, grande Quito, excelente descrição!
    O Quito dá boleia, dá dinheiro, dá copito, dá sermão e dá tanto afeto!

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  9. E que bem nos falas dessa tua tão rica vivência

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