Dormirei descansado ...
Sentado num degrau de mármore, na entrada do lar de idosos,
vai mastigando o cigarro. Um cigarro encardido, que se lhe cola aos lábios
grossos e descarnados. Por momentos, fica meditabundo. Um olhar vazio, à
procura de nada. Depois, com o ritual de muitos anos, tira o cigarro embebido
em saliva e já no seu estertor da boca, preso por entre os dedos indicador e
polegar da mão direita, como o cirurgião que manipula com precisão, uma pinça
no corpo do paciente. Encara-me então e dá uma sonora gargalhada. É sempre
assim. Num esgar, abre a boca toda que deixa ver meia dúzia de dentes semeados
ao vento, implantados numas gengivas vermelhas e infectadas. Depois, cordial
como sempre é, pergunta-me:
- Leva-me de boleia para a aldeia, para eu tomar um café?
Partimos. É curta a viagem. Cerca de seiscentos metros no
alcatrão da estrada ziguezagueante. Chegamos. Paro o carro debaixo de um
frondoso plátano, junto do Café “Portas da Serra”. Então ele, com um sorriso
gaiato a iluminar-lhe a face, atira – me:
- Podia dar-me cinquenta cêntimos para eu beber uma tacita de
vinho …
- Pois podia – digo-lhe sério, a morrer de riso por dentro –
mas combinámos que só te pagava uma taça de vinho às sextas – feiras e hoje ainda
só é terça … portanto …
Ri-se. Ajeita-se nervosamente no banco, estende para mim o
dedo indicador e diz-me devarinho como quem está a medir bem as palavras:
- Mas já me deve a taça da sexta - feira passada, porque eu
não o vi por aqui …
Encostado às cordas com a argumentação, puxo do porta -
moedas do bolso de trás das calças e dou-lhes cinquenta cêntimos. Agradece-me
com uma vénia e um “bem - haja”. Abre a porta do carro, que depois fecha
cuidadosamente. Já na berma da estrada, mete de novo a cara grande e marcada pela vida no
habitáculo do automóvel e diz-me muito educadamente :
- Daqui a três dias … na próxima sexta- feira, paga-me outra
para acertarmos tudo. A taça de hoje não conta para esta semana, porque é atrasada
e estava em dívida …
Fico a olhar para ele, como que querer mostrar-lhe que me apetece
engoli-lo vivo, para depois lhe responder:
- Está bem Mário, na próxima sexta - feira pago-te mais uma
taça e as contas ficam resolvidas …
Com mais uma gargalhada, partiu. Entrou no Café, para logo
sair de seguida, a fazer um frete de levar aos ombros uma bilha de gás a um qualquer
freguês, o que lhe poderá valer mais uns apetecidos trocos.
Na próxima sexta - feira lá estarei, no “Portas da Serra”, a
rodopiar uma moeda em cima do balcão, para pagar o que devo. Já com a dívida saldada, certamente que ao deitar a cabeça no travesseiro ao badalar da meia -
noite, dormirei mais descansado …
Quito Pereira
Esta malta da aldeia não se perde!
ResponderEliminarContas com Jorge e Jorge na rua...mai'nada!!!
ResponderEliminarMenino Quito «contas são contas,o resto são aveques».
ResponderEliminarTonito.
Tá giro o que aqui descreves.
ResponderEliminarEste teu amigo, aliás, como tens outros por aí, e que te proporcionam belos textos, relatando episódios que vais vivendo por aí, nas fraldas da serra., deve ser um amigo especial e com graça!!!
Embora mal "acomparado" aqui há uns anos encontrei-me com um companheiro dos nossos tempos, talvez mais do meu, e que jogava à bola connosco no cavalo selvagem.
Já não me lembrava bem dele, mas lá se identificou, contando essas tardes de futebol "selvagem", e ia indicando nomes que correspondia aos amigos desses tempos.
Dizia que estava doente, a mulher também, os filhos a mesma coisa e tal e coisa e que precisava de ajuda.
Lá lhe fui dizendo que devia procurar os subsidios que estavam instituidos para essa situações, etc.
Mas, ok, vou-te ajudar em alguns alimentos e roupas.
E lá fui dando o que entendia que lhe pudesse ser útil, agradecia e voltava de vez em quando para nova remessa
Até que mais tarde me pediu que em vez dos alimentos e roupas eu lhe desse algum dinheiro.
Fulano dá-me tanto, cicrano tambem, beltrano também...
Então lá passei a dar também algum dinheiro.
Mais ou menos todos os meses onde me encontrava, (tratava-me por Fernandidto),"pode ser hoje uma ajudita"?
Foi decorrendo com o tempo até que um dia me bate à porta, e dispara: vinha receber a féria!!!!!
Levou um sermão e foi o FIM DA AJUDA!
Ainda hoje passados mais de 30 anos ainda o costumo ver a passear por estes lados!
Ó Fernandito! Se ele te passasse um recibo com NIB ainda vá que não vá, sempre dava para o sorteio do carro!... Mas sem recibo nem NIB, fizeste tu muito bem... despachaste o gajo que aqui não há pão p'ra malucos!...
EliminarQuito
ResponderEliminarO prometido, é devido mas na realidade o Mário começou pelo café, passou ao copito que segundo dizem tem trinta e duas proteínas e vitaminas, terminando com a paga semanal. Esse Mário é manhôôôôôôôôôso.
Pois é Quito!... A andares assim a distribuir a reforma pelos Mários, Pedros, e Paulos, (e estes dois últimos não se contentam só com um copo por semana) qualquer dia andas tu a pedir boleia e a pedir um prato de sopa de porta em porta!...
ResponderEliminarAquele bon vivant pediu ao amigo:
ResponderEliminar- Tens aí um conto de reis que me emprestes?
- Não, pá. Olha só aqui tenho uma nota de cem, ~desculpou-se o outro mostrando lhe a carteira
- Está bem, retorquiu o bon vivant. Dá cá os cem. Ficas me a dever 900 paus.
Ocorreu-me esta história, anáçoga à do Quito.
A diferença essencial está em que aquela que ele aqui nos trás é o leitmotiv para mais um extraordinário conto que nos delicia com a perfeita descriçao do ambiente rural em que o Quito se movimenta e que nos faz imaginar que, na sua sombra, assistimos a tudo.
Desde o perfeito retrato do "credor", à tasca, à estrada ziguezagueante...
Solidário mas nem tanto,Quito...
ResponderEliminarAldeia é já habitada por "xicos espertos"!
Conta mais desse quotidiano tão bem bem retratado por ti.
Grande Mário, grande Quito, excelente descrição!
ResponderEliminarO Quito dá boleia, dá dinheiro, dá copito, dá sermão e dá tanto afeto!
E que bem nos falas dessa tua tão rica vivência
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