sexta-feira, 22 de julho de 2011

ENCONTRO COM A ARTE - CONTOS DA DAISY

A MENINA PRETA




- Olá!
- Olá.
- Chamo-me Pedro. E tu?
- Maria.
     Pousei a pasta dos livros e estendi-lhe a mão. Era uma menina pobre e feia; pobre, porque tinha o vestido remendado; feia, porque era preta. O João é que dizia que era feia. A Nicha fugia dela. O Tito achava que as pessoas não deviam ser racistas, mas nunca falou com a menina preta que andava com a gente na escola. Para mim, ela era feia; mas só porque era triste.
     Estendi-lhe a mão, como via os “grandes” fazerem uns aos outros. Mas a menina ficou a olhar para mim com os olhos muito pretos e muito grandes, a quererem sair dos seus contornos de pestanas compridas.
     Pois era. Os meninos beijam-se. Só os “grandes” apertam as mãos.
     Beijei-lhe a bochecha e senti-a, quente, queimar-me os lábios.
     E ela fugiu, a correr. A menina-feia, que até nem era feia. Não era, não.
     Anda cá, Maria. Não fujas, não? Não gostas de mim? Não?...
     Deixou cair os livros. Os lápis espalharam-se pelo chão. O autocarro passou-lhes por cima e a Maria ficou a vê-lo desaparecer, depois de olhar os bocados coloridos no meio da rua.
     Apanhei os livros e dei-lhos. Os lápis…não valia a pena.
     A Maria era feia. Agora. Tinha os olhos vermelhos e molhados.
    -Não chores. Não? Não?...
     Mas ela chorava.
     Eu dou-te os meus lápis, tá bem?
     E ela só chorava.
    -Olha: dou-te este, e o azul, e o vermelho, e o preto. Dou-tos todos, queres? Queres?...
     Era uma menina preta. Uma menina diferente das outras. Mas chorava como elas. As meninas choram sempre. Por tudo e, às vezes, por nada. Ela era igual às outras meninas, portanto.
     Pegou nos lápis. Fungou com força. E limpei-lhe os olhos no meu lenço branco…e não ficou preto.



26 de Outubro de 1972 

19 comentários:

  1. Lindo, Daisy!.
    Fez-me lembrar o Poema Lágrima de Preta, de António Gedeão. Que aqui deixo

    Encontrei uma preta

    que estava a chorar,

    pedi-lhe uma lágrima

    para a analisar.



    Recolhi a lágrima

    com todo o cuidado

    num tubo de ensaio

    bem esterilizado.



    Olhei-a de um lado,

    do outro e de frente:

    tinha um ar de gota

    muito transparente.



    Mandei vir os ácidos,

    as bases e os sais,

    as drogas usadas

    em casos que tais.



    Ensaiei a frio,

    experimentei ao lume,

    de todas as vezes

    deu-me o que é costume:



    Nem sinais de negro,

    nem vestígios de ódio.

    Água (quase tudo)

    e cloreto de sódio.

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  2. Quero começar por saudar o Fernando Rafael, ao trazer até nós este extracto do livro da Daisy.Era obrigatório. Impunha-se. Estou certo que outros "contos", do mesmo livro, se seguirão.
    Já tínhamos conhecimento do livro da nossa amiga, que, amavelmente, um dia nos ofereceu.
    Da prosa não falarei. Porque, numa palavra, o Paulo Moura disse tudo.
    Para a Daisy vai o nosso abraço
    São e Quito

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  3. Desconhecia esta tua maneira tão bonita e tão sensível de escreveres!

    Gostei muito e achei tão lindo minha querida, estás de parabéns Daisy.
    Beijinhos.

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  4. Terá sido por alguma dificuldade técnica que saiu o comentário anónimo.
    Como é regra assumida pelos ADM evitar comentários anónimos, sou contudo de opinião que este comentário sobreviva, rogando no entanto ao seu autor que de futuro se identifique, ou escrevendo o nome no final do texto ou enviando o comentário na modalidade de URL.
    Obrigado!

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  5. Claro que conheço este conto da nossa querida amiga Daisy. Conheço todos os seus contos, do seu primeiro livro, e tenho a esperança de que o projecto do segundo vá avante.
    Neste conto, agora ilustrado com um desenho de Zé Penicheiro, há um pormenor que desde sempre me impressionou. Penso que nunca o referi, nem à autora.
    Na linguagem infantil, quando pretende ser carinhosa, é muito utilizada as interrogativas repetidas, como se de um reforço convincente se tratasse.
    Quase se saboreia o mel das palavras da criança, quando diz:
    - Não chores. Não? Não?...
    - Dou-tos todos, queres? Queres?...

    Sem duvida, maravilhosa a forma com que nos é transmitida a estória, já de si maravilhosa.

    Já agora, seria interessante saber-se com que idade escreveu a Daisy este conto.
    Allô, allô, Alfredo ...

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  6. Pela data ali em cima, foi em 1972. Ou seja... a Daisy deveria ter p'r'aí uns... 2 anos.

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  7. É por iso que o País está como está!
    Economistas não sabem fazer contas...

    1972- 1949= 23 aninhos!!!!

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  8. Tu estás a chamar-me o quê "mista"?!

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  9. Levei uma de "cegueta" pela pena impiedosa da Sãozita. Envergonhou-me pela minha falta de poder de observação. Mas teve razão!

    Dom Rafael aproveitou para demonstrar que é perito em contas. E é mesmo! Que fazer?

    Allô, allô, Alfredo. Deixa-te estar tranquilo. Podes continuar a descansar. Tens a minha bênção, já que o padre Aníbal nunca seria capar de a dar.

    Está tudo tratado... e nada resolvido.
    Allô, allô, Tonito...

    Bom domingo, abraço para todos e todas.

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  10. Viana não será necessário uma
    é rata?

    Essa do padre Anibal "capar" o Alfredo!!!!

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  11. Releio sempre com prazer este conto da Daisy!
    Linguagem infantil, bem escrita por adulta.

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  12. Dom Rafael, estás cheio de razão.
    Mas, já agora, deixa lá estar o "capar" em vez de "capaz"
    Pode ser que, com esta involuntária provocação, o Moreirinhas reaja!
    Mas está-me a querer parecer que não. Ele, tal como eu, já está por tudo...

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  13. A Daisy sensibilizada, agradece os vossos simpáticos comentários.
    Comprendeu o piropo da São Rosas, estragado pela precisão do Dom Rafael "O Castelão"!...
    O Carlos Biana pode provocar o quiser, mas capar é que ele não me capa!...
    Abç a todos e um beijo da Daisy

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  14. O Rafaelito é um ginecologista insensível, que adora estragar a minha beleza.

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  15. Os contos da Daisy são uma colectânea de histórias que releio com muita frequencia, todos elas com um traço comum que é o da profunda sensibilidade que a escritora verte para as páginas do livro.
    Muitos deles valorizados pelas ilustrações de Zé Penicheiro.
    Este é de longe aquele que mais me sensibilizou. Pelo diálogo infantil com que começa e pelo inesperado final que nos surpreende.

    Em boa hora aqui veio enriquecer o blogue...

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  16. Penso que o Felício colocou os pontos nos ii.

    Venham mais contos da Daisy, sff.

    Nota: enquanto esperamos pela publicação do 2ºlivro de contos.

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