quarta-feira, 27 de julho de 2011

MEMÓRIAS DE UMA ESTAÇÃO ...

Cúmplice do Tempo ...

(Net)

É ali, na Estação de Comboios de Lagos, que me repousam as lembranças. Corria a década de sessenta do século passado e ainda hoje me recordo. Lá dentro, junto à linha, vários bancos de madeira corridos. Também um grande relógio, cravado na parede, em jeito de bandeira. Tinha enormes ponteiros negros, que indicavam as horas e os minutos na numeração romana do mostrador circular. Era cúmplice do Tempo. E testemunha de desencontradas emoções. Dos abraços da chegada e das lágrimas da partida. Momentos de grande alegria e de infinita tristeza. Rejeito falar das horas da abalada. Quantas, no meu álbum de memórias!. A família, residente nesta risonha cidade, esperava-nos impaciente. E eu, de cabeça fora da janela da automotora ronceira, ia observando a paisagem. Recordo o céu azul e os dias claros. Aqui e ali, a pequena composição apitava, assinalando a sua passagem junto dos pequenos apeadeiros. Tunes, há muito que ficara para trás. Tenho ainda hoje nos ouvidos, o metálico balançar dos rodados, deslizando sobre os carris. O apeadeiro da “Meia Praia”, era uma espécie de paraíso. Já se divisava o branco casario de Lagos, alcandorado sobre a vetusta muralha. Também as traineiras, em doca seca, para reparação. E, ao longe, um bando de gaivotas, perseguindo um pequeno barco que entrava na barra, carregado de pescado. Então, a pequena automotora, de um vermelho desbotado de tanto calcorrear sob o inclemente sol algarvio, abrandava a sua marcha. Os azulejos verdes, que forravam a gare, davam a indicação da chegada ao destino. O chefe da estação, de casaco castanho e apito na mão, corria a plataforma em passo estugado, verificando todos os pormenores do desembarque. Era uma amálgama de gente, de sacos e de malas. E eles ali – a família – abraçando-nos e beijando-nos com a sofreguidão de quem já se não via há um ano. Memórias ternas dos meus verdes anos. Agora, que o cabelo embranqueceu, corre-me pela face o silêncio de uma lágrima. Pelos meus familiares lacobrigenses que partiram desta vida, para uma viajem sem retorno. A esses, sei que jamais voltarei a abraçar. Resta-me a Estação dos azulejos verdes, como bastião da saudade. E uma cidade – Lagos – que, juntamente com a bela Coimbra do Choupal e do Mondego, reclamo como minha.
Q.P.

(em Memória de Lucília de Jesus Oliveira e António Silva)

10 comentários:

  1. A Estação de comboios de Lagos foi desactivada e substituída por outra mais moderna. Encontra-se, ainda, em razoável estado de conservação. Na gare, junto à linha, o suporte metálico que sustentava o relógio ainda lá está.Apenas espero, que a edilidade lacobrigense, não deixe a estação ser, no futuro, uma ruína. Quem vai a Trás-os-Montes e vê, por exemplo, a Estação do Rós, com os seus belos azulejos arrancados e vandalizados, percebe em como a preservação do nosso património colectivo não é para levar a sério ...

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  2. Gostei!
    Mas acho, Quito, que não deves criar muita esperança em ver restaurada a velha estação...

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  3. È curioso, ou talvez não, como eu fiz esta viagem com o Quito, com as exactas sensações que ele nos transmite. Só que em viagem mais curta, mas também demorada,entre Coimbra e a Fontela, último apeadeiro antes da Figueira da Foz, onde a família que ali tinha nos vinha acolher ao apeadeiro como se acabássemos de chegar de uma longinqua cidade...

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  4. Não sei, caro Rui Pato. A cidade tem progredido e tem havido ao longo dos tempos, uma preocupação em preservar o passado. São evidentes, porém, alguns atentados urbanísticos, como é o caso de vivendas construídas em arriba primária. Ainda sou do tempo em que a cidade era totalmente dentro da muralha. É esse recordação que hoje trago aqui e partilho com os amigos. Já várias vezes escrevi sobra lagos, quer no CV, como no EG. Lagos é, para mim, um manancial de memórias.
    Um abraço

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  5. caro Felício
    A viagem era longa. Coimbra - Lisboa. Depois apanhar o "Cacilheiro" para a outra margem. Embarcar de novo no comboio até Tunes. Depois o trajecto em automotora entre Tunes e Lagos. Uma epopeia !!! Mais de 1O horas de viagem !!!
    E depois a família, muito especialmente a minha tia Lucília Oliveira que tinha grande afecto por mim, ainda eu andava de calções. Era incontornável oferecer-lhe este modesto texto a titulo póstumo ...
    Abraço

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  6. Um Abraço Quito.
    As minhas viagens para Setúbal eram uma epopeia autentica.
    O que lá vai lá vai.
    Tonito.

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  7. Um belo texto! Durante muitos anos, ia passar férias em Lagos, cidade cheia de beleza!
    Nunca fui de combóio, mas hoje, depois de ler o texto do Quito, é como se tivesse ido!!!...

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  8. O Quito leva-nos com ele a mais uma fantástica viagem, repleta de memórias e de afectos.
    Centraliza numa simples estação de comboio todo um mundo de emoções, tendo por fundo uma das mais belas cidades portuguesas.
    Lagos, que ele reclama como sua.
    E, pelo que nos diz, irmanando-a com a sua Coimbra, bem o pode fazer.

    Parabéns.
    Aquele abraço.

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  9. Quito como sempre no seu melhor!
    Em relação a Lagos tal como noutros textos que tens ecrito, dá bem para notar o amor que tens a esta cidade e a saudade, penso que de familiares ou simples amigos, com quem conviveste desde tenra idade.
    Não sei como era nesse tempo a linha, a paisagem e a estação de lagos.
    Mas já há dois anos seguidos que vamos, eu e a Celeste Maria para Portimão de Intercidades...mas chegamos a Tunes e apanhamos um ronceiro à antiga portuguesa que nos leva até Portimão, e depois segue viagem para Lagos!
    Eu chamo-lhe a "linha do Far Weste!!!
    É inconcevivel que numa zona de turismo de excelência ainda se tenha um transporte de caminho de ferro tão antiquado!
    Pelo percurso vão-se vendo alguns apeadeiros em ruinas, pelo menos nos que o combóio já nem pára!

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  10. Boas memórias que tu, Quito, tratas com tanto carinho e emoção que nos consegues contagiar!

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