sexta-feira, 29 de julho de 2011

NEM TUDO O QUE PARECE É


O Calado, o Estrela, o Serginho e eu, já estávamos em Mira há uns dias no Parque de Campismo, naquele Agosto de 1964. Num casarão da vila pernoitava um grupo de jovens francesas com quem já tínhamos travado conhecimento e que às vezes vinham até à nossa tenda ao final do dia, para conversar, beber uns copos e ouvir umas violadas que o Calado e o Estrela tocavam a acompanhar fados de Coimbra.
Era o prenúncio, o início de futuros namoricos de verão em que a praia de Mira era fértil na época de veraneio.
Na tenda ao lado, que dela parecia fazer sua residência habitual, estava um sujeito carrancudo e triste, talvez dos seus quarenta anos, que nos cumprimentava pela manhã, quase de fugida e com quem nunca chegámos a estabelecer nenhuma aproximação ou contacto mais chegado. Fosse pela sua idade ou pela sua patente timidez, as conversas entre nós resumiam-se aos protocolares bons dias ou boas noites de manhã e ao anoitecer.
De soslaio, às vezes reparávamos como ele nos observava quando as francesas abancavam à entrada da nossa tenda, denotando um ar de pena, ou se calhar de inveja, por não ter a seu lado, como nós tínhamos, uma daquelas miúdas joviais, bem dispostas e bonitas.
No silêncio de certa madrugada, o Calado acordou-nos,  fazendo-nos sinal com o dedo junto ao nariz, para não fazermos barulho e escutarmos os ruídos que vinham de dentro da tenda do nosso estranho vizinho.
Ouvíamos a voz cava e rouca sussurrada do homem, em gemidos e palavras ininteligíveis , e, para nosso espanto, uma voz feminina corresponder-lhe com sons guturais, entrecortados por repetidas exclamações de “Je t’aime” e “mon amour”.
Olhámos espantados uns para os outros em silêncio. Nem queríamos acreditar que aquele homem desinteressante, algo antipático e excessivamente tímido e envergonhado estivesse com uma miúda francesa na tenda, aparentemente a fazerem amor! Para mais, naquela época, em que passar além de uns fugazes beijos era quase inconcebível!
A verdade é que o que estávamos a ouvir era indubitavelmente a voz grossa e cheia do homem, que aliás já bem conhecíamos, e a delicada, doce e inconfundível voz feminina de uma mulher jovem. Francesa, por certo, a avaliar pelas interjeições que por vezes conseguíamos identificar.
Ficámos de atalaia até ao alvorecer. Queríamos ver a miúda sair da tenda. Mas qual quê!
O homem saiu, deu-nos os bons dias e foi à sua vida. Quando ele desapareceu por entre o arvoredo, espreitámos e não havia nenhuma mulher dentro da tenda!
Viemos a saber dias mais tarde que o homem actuava em festas de aldeia.
Era ventríloquo e engendrou aquela teatrice para nos fazer crer que também ele era capaz de engatar uma miúda...<

Rui Felício

11 comentários:

  1. E mais uma "delícia do Felício" para a funda São.

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  2. Começo por saudar o Rui Felício. Depois de uns dias de menos bem estar, como no último texto nos confessou, de novo aparece com a sua prosa. Realmente, não há nada como uns dias de descanso, fora do ambiente de trabalho e de um acumular de tensões, para repor níveis e aclarar ideias.
    O texto é intrigante e o final surpreendente. Assim como o ilusionista vai tirando coelhos da cartola, o ventríloquo foi alimentando uma ilusão para os parceiros da tenda do lado. Provavelmente, o maior iludido foi ele, auto-flagelando-se na vertigem da imaginação. Já não estou tão certo, que aquela eloquente frase que muitas vezes ouvia na tropa, faça sentido: guardado estava o bocado para quem o havia de comer .Uma tragédia de contornos circenses, que acabou de barriga vazia ...

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  3. O Quito disse e com toda a propriedade: o homem ( parece que ainda estou a ver a cara dele e entristeço-me...), acabou por se iludir a si próprio na esperança de nos iludir a nós.

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  4. Esta estória está mesmo bem esgalhada... a boa imaginação do autor sempre em forma!

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  5. Caíram que nem uns "patos"!!!!!
    Esperto foi o vosso vizinho, que vendo o vaivém das francesas na vossa tenda e limitando-se a ouvir as risadas e chacotas próprias da juventude,vos quiz mostrar usando a sua arte, que aquele ser sisudo, monossilábico, tiste e carrancudo, era capaz de ir mais "longe" que vocês!!!....
    E conseguiu, porque incrédulos estiveram à coca e mais, depois de ele sair até envadiram a propriedade alheia!!!!
    Usando uma frase do meu querido Quito, só mudando uma palavrinha, é que é caso para dizer; Guardado estava o bocado para quem o havia de "gozar"!!!!!!

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  6. Rui, regozijo-me por ver que o teu sentido de humor e a tua predisposição para a escrita está de volta!Ainda bem, é sinal que estás melhor!!!!
    Sabes a "idade não perdoa", mas quando se consegue dar a volta por cima....é fantástica, (a idade)!!!!!
    Beijo.

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  7. Tantas vezes que já me apeteceu ser ventríloquo...

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  8. Andar como clandestino não é fácil.
    Mas compensa,uma vez por outra.
    Ninguém é perfeito.
    Tonito.

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  9. Nunca um ventríloquo conseguiu criar tanta água na boca...
    Grande artista, merecedor de medalha!

    E... mais um conto "à Rui Felício"!
    Abraço.

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  10. Mas que 4 em tenda de campismo!
    Provavelmente o Calado... era o melhor!
    Protagonistas de uma estória das mil e uma noites que passaram pela Praia de Mira!
    E com mademoiselles!|
    À grande e à francesa!
    Mas o artista...apesar da imaginação, não se terá "divertido" tanto como vós!
    Penso eu de que...diria o PC.
    Mas o final foi à Rui Felício!
    Magnifique!

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  11. Nem ouso pensar que estes factos não foram todos verdade, verdadinha...
    Entendo que poderiam ter aproveitado o artista para impressionar o vosso clã de francesas!

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