terça-feira, 10 de abril de 2012

TEATRO AMADOR


Nas cenas de maior suspense só se ouvia o estalar das pevides e dos amendoins a serem descascados ou os papeis coloridos dos rebuçados de frutas a serem desembrulhados pelos cachopos. Uma miscelânea de perfumes baratos inundava a sala.
Num ou noutro rosto das mulheres percebiam-se lágrimas a correr pelas faces, misturadas com esgares de raiva e de condenação.
Os semblantes dos homens denotavam ansiedade, os maxilares cerrados, tentando conter a comoção. Porque chorar não é próprio dos homens. Os pais iam contendo o irrequietismo das crianças, à custa de uns sopapos  disfarçados ou com  promessas de um bolo ou de uma laranjada no intervalo.
No palco, os actores, todos vizinhos e conhecidos dos espectadores, representavam a peça o melhor que podiam, em tom declamatório e grandiloquente, enfarpelados em guarda roupa renascentista, alugado numa loja da Rua das Figueirinhas. Um drama cujo enredo era construído à volta da infidelidade de uma mulher que traía o marido com o fidalgo Dom Diogo de Alencastre, rico senhor e dono de grandes propriedades, tido como impenitente mulherengo, sobranceiro e indiferente à quebra dos ancestrais pergaminhos que o seu comportamento indigno lhe acarretava.
Na plateia, de onde em onde, eram irreprimíveis e audíveis alguns comentários:

- Malandro!- sussurrava uma mulher magricela, com o cabelo armado em avantajada forma de ninho de cegonha, para a amiga que se sentava ao lado, na cadeira de pau desengonçada que rangia ao peso dos seus movimentos.
- Uma porca é o que ela é! – retorquia a outra, em voz baixa, abanando a cabeça e as banhas da barriga que lhe inchava o vestido às flores, como se fosse um pudim acabado de desenformar.
- Eu cá, se fosse ao marido, matava-a era a ela, grande vaca!, acrescentava a Dona Leonilde sentada na fila de trás. Solteirona, a Dona Leonilde, sentenciou:
- Um homem não é de pau e o Dom Diogo não fez mais que a obrigação dele!

Um homem que estava na fila da frente, virando a cabeça, beata pendurada nos queixos, de dedo indicador esticado ao pé do nariz, reprimiu-as, sibilando:
- Chiiiuu!   

Por vezes conseguia-se ouvir a voz do ponto, encafuado debaixo do palco, que elevava a voz rouca quando os actores se esqueciam das suas falas ou das deixas.
A tensão era grande! Desenrolava-se a última cena do 3º acto. Em palco, apenas o Felisberto, que era o marido enganado, com um revolver na mão e o mulherengo fidalgo, amedrontado, procurando uma escapatória para as árvores desenhadas no cenário.

- Vou-te matar como a um cão, desgraçado!, dizia o Felisberto apontando-lhe a arma.
- Não! Não faças isso! Perdoa-me!, suplicava o Dom Diogo com as mãos levantadas.
- Dou-te aquele terreno ao pé do rio para amanhares, se me perdoares!

Mas já louco, fora de si, os olhos raiados de sangue, o Felisberto estava decidido a lavar a sua honra. Puxou o cão da pistola e carregou no gatilho. Mas nada! O fulminante não percutiu e o que se ouviu foi um estalido metálico seco e quase imperceptível.
O fidalgo, deu um pulo para trás, cambaleou e levou a mão ao peito, donde jorrou um líquido vermelho, representando a sua morte, tal e qual como inúmeras vezes tinham ensaiado.
Porém, não tendo saído o som do disparo, endireitou-se  à pressa e esperou por novo tiro, para então sim, morrer e estatelar-se no palco.
O Felisberto ainda carregou no gatilho mais duas vezes, sem êxito. Definitivamente os fulminantes deviam estar estragados porque o estrondo do disparo não saiu.
O actor, demonstrando um enorme sangue frio, pegou então no revolver pelo cano, dirigiu-se ao Dom Diogo, com o braço levantado, a mão enclavinhada no cano da pistola. Afivelou um ar ameaçador e berrou:
- Não te mato com um tiro, mas mato-te à coronhada, grandessíssimo pulha!

E caiu o pano, sob uma estrondosa salva de palmas.  
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 Uma homenagem, fraca é certo, mas sincera, ao Teatro Amador e aos homens e mulheres que depois dos seus dias de trabalho árduo para ganharem a vida, ainda encontravam ânimo e tempo para, à noite, irem ensaiar e representar no Clube Recreativo do Calhabé.
O protagonista desta peça era meu vizinho no Bairro. Era o Senhor Alberto Bastos, um dos maiores entusiastas do teatro amador e do associativismo a quem o Clube Recreativo do Calhabé muito deveu.
 Rui Felício

21 comentários:

  1. Isto da dor de corno também tem o seu quê de erótico. Vai, por isso, para os Contos Felícios d'a funda São.

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    1. Repetindo-me, mas nunca deixando escapar a oportunidade de manifestar por ti o meu apreço e amor, digo-te aquilo que sempre digo:

      O que é meu é teu, querida São Rosas!

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    2. O teu é dela, porque sabes que o tens sempre de volta...

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    3. E nem é incontornável: é contornável.

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  2. Apesar de estar privado de computador (um drama !), aqui estou para dar os parabéns ao Rui por este conto. Toda a descrição da plateia, do público, das pevides e rebuçados, dos esgares dos assistentes, todo o movimento cénico,os fatos renascentistas e um final surpreendente, são o condimento mais que suficiente para um texto de excelente recorte ....
    No fim, a homenagem ao teatro amador, à qual também me junto num aplauso ...
    Quito

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    1. I have a dream...

      Um dia escrever a meias com o Quito uma pequena peça teatral para ser representada no CNM pela Celeste, pelo Rafael, pela São Rosas, pelo Carlos Carvalho e outros.
      Porque sei que o que não falta no nosso Bairro, são actores de teatro amador.

      Com encenação do Toninho.
      Quem sabe, um dia...

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    2. Eu alinho... desde que possa levar para o palco e ler o texto que me couber.

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    3. Claro que é o texto que te couber...não vais ler os textos que couberem aos outros!!!Ah!ah!ah!

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    4. Ai é? Então vais decorar o teu texto e eu não te dou dicas nem te deixo espreitar a minha cópia que levarei para o palco.

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  3. Desde já digo ao Rui que poderá contar comigo para representar a peça que irá escrever!
    A maior dificuldade está na disponibilidade dos "artistas". Ou têm de cuidar dos netos ou de ir passear ou...
    Conheci bem o Sr. Bastos, bom pasteleiro na Central!
    Desconhecia a sua dedicação ao teatro e nunca fui ao Recreativo mas, após a descrição do Rui Felício, foi como se lá tivesse estado!

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  4. Também podes contar comigo.
    Durante a minha passagem pela Direcção do Centro Norton de Matos, tive o privilégio de reactivar o teatro, mas infelizmente e depois da apresentação de uma obra do escritor Harold Pinter, laureado nesse mesmo ano com o Prémio Nobel da Literatura e que teve como protagonistas a Celeste Maria e o António José Alves e pese ainda o começo de ensaios para uma nova peça com a participação de outros actores…ficou por aqui esta tentativa de voltar a ter teatro no CNM.
    Foi em 2005 e por curiosidade vou fazer uma postagem sobre este reaparecimento fugaz do teatro no CNM.
    Sobre o texto do Rui Felício gostei desta evocação e não sabia que o nosso vizinho e amigo sr Bastos tinha sido actor amador no Recreativo do Calhabé.
    Na casa que habitou aqui no Bairro na rua Gonçalo Velho vivem actualmente a sua filha e genro.

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  5. Também quero ser actor! Até já tenho experiência da tropa, onde me fartei de representar!...
    Neste episódio, tão bem contado pelo Rui, tinha acabado em beleza se ele lhe tivesse mandado mesmo um coronhada na cabeça, antes do pano cair...

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  6. Era eu menino e moço quando me entreguei de alma e coração à nobre arte de Talma.
    Porque não tivesse grande jeito para representar, digo eu, fui remetido a ponto. Fiquem sabendo que, naquela altura, "pontar" era uma honra. Cá por mim, não desgostava de estar enfiado na "caixa" pois era um óptimo sitio para mirar as pernas das jovens actrizes...
    Mas, ainda nessa altura, a "caixa" ficou fora de moda. Era inestética, ocupava espaço no palco, e o ponto passou a trabalhar por trás dos cenários. Era muito mais complicado, tinha-se de conhecer a localização dos actores em palco para melhor lhes soprar a "entrada". Era a "direita alta", era a "esquerda baixa", era o "centro" era... uma chatice e ainda por cima não se via a porra de um corno do que se passava no palco. Nem tão pouco se viam as pernas das cachopas...
    Julgo que foi por isso que abandonei a minha promissora carreira de ponto de teatro!

    Muito a sério:
    O Rui Felício fez-me reviver, com enorme saudade, o Grupo Dramático do Monte Aventino onde, com os meus 16 anos, me apaixonei pelo teatro amador.
    Paixão que mantenho.
    Obrigado.

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  7. Fiz uma "busca" e encontrei o Grupo Dramático do Monte Aventino.
    Fundado em 1924, um dos fundadores : Carlos Viana.
    Que, como se depreenderá, não sou eu mas sim meu pai.
    Pelos vistos, o Grupo já não se dedica ao teatro. Parece que a principal actividade cultural é o Fado. Vá lá, do mal o menos.

    Estás a ver, Rui Felício, o que me arranjaste?!
    Eu que nem sou dado a pieguices...
    Mais um abraço.

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  8. O Carlos Viana, homem pragmático e racionalista, é pouco dado a emoções piegas. Disso já me tinha apercebido.
    Mesmo assim, não há ninguém que no mais recôndito do seu ser, como que guardado em cofre inviolável, não seja despertado pela comoção de algo que a maioria desconhece.
    Podia imaginar o Carlos Viana a sensibilizar-se com as injustiças do mundo.
    Podia imaginar o Carlos Viana a comover-se por uma vitória do seu FCP.
    Podia imaginar o Carlos Viana a sentir um nó na garganta ao ver uma habilidade de um neto.
    Podia até imaginar o Carlos Viana a sentir um aperto no coração pela infelicidade de um amigo.

    Jamais imaginaria que a evocação do teatro amador despertasse nele memórias comoventes!

    Mas ainda bem que assim é, porque isso vem demonstrar que o Carlos Viana junta a tantas boas qualidades que possui, esta capacidade de se comover, que nos torna a nós, humanos, muito mais humanos...

    Um abraço, Carlos!

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  9. Belo texto que me fez recordar o Club do Calhabé onde passei bons momentos e ao qual o meu saudoso Pai dedicou com muito carinho muitos e muitos serões.
    Um grande abraço
    Nela Sarmento

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  10. já me esquecia,mas durante alguns anos pertenci ao CITAC...
    desde carpinteiro a ajudante de cenógrafo,passei por ponto e,felizmente poucas vezes,por actor.
    Bebi ensinamentos de António Pedro,de Jacinto Ramos e de Carlos Avilês.
    Nesta última fase,em que era ajudante do grande Relógio,é que conheci o Rui Pato.
    Como se costumava dizer:MUITA MERDA!

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  11. Os mestres eram de primeira!Sendo assim não percebo o fim mal cheiroso?

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  12. No teatro é proibido dizer "sorte".
    Diz-se MERDA!

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