domingo, 8 de abril de 2012

A VERDADE



A justiça popular é a antinomia da justiça.


Poderia ter-se passado no Bairro.
O Café poderia chamar-se Café Volta Ká


Os Factos:
1. - O João fez o pré-pagamento de 80 cêntimos e bebeu a imperial
2. - O João meteu o copo vazio na sua mochila e informou o empregado que o ia levar
3. - Lemos, o empregado, foi dizer ao gerente o que se passava
4. - O gerente, António Silva, chamou ladrão ao João na presença de todos os clientes.
5. - Os clientes presentes na esplanada do estabelecimento condenaram o comportamento do João, invectivando-o num coro unânime, com algumas ameaças físicas à mistura, sem lhe ser dada hipótese de se explicar, num julgamento popular que se decidia pela sua culpa, sem apelo nem agravo.


 Os Desenvolvimentos:
O gerente apresentou queixa contra o João, por furto do copo
Foi deduzida acusação contra o João
O João negou o furto, contestando a acusação
O julgamento foi marcado e a sessão aberta
……………………………………..............................
O representante do Ministério Público provou os factos pelos depoimentos do Lemos e de vários clientes arrolados como testemunhas e pediu a condenação do João.


O advogado de defesa do João pediu que o copo fosse apenso ao processo, como prova material, bem como o relatório pedido à Inspecção de Actividades Económicas que atestava que o copo tinha uma capacidade real de 17 centilitros, embora tivesse gravada a indicação de 20 centilitros. Ou seja, uma diferença de 15% menos que o declarado.
O mesmo relatório referia também que todos os copos usados no estabelecimento padeciam da mesma diferença.
O que correspondia a um benefício ilícito por parte do gerente do estabelecimento, de 12 cêntimos. E também de prática do crime de falsificação de pesos e medidas.
Requereu ainda a junção ao processo de um relatório das Finanças que indicava que naquele dia da ocorrência dos factos, o estabelecimento tinha vendido 1.200 imperiais.
Tendo, portanto, sido obtida uma receita ilícita de 12 cêntimos vezes 1.200,  perfazendo 144 euros.
O que indiciava uma ilicitude em prejuízo dos clientes, provavelmente repetida ao longo dos 365 dias do ano, num total presumido de 52.560 euros.
Requereu ainda que fosse extraída certidão para investigação das autoridades e subsequente punição do António Silva.
Solicitou a condenação do queixoso por calúnia ao apelidar o seu cliente de ladrão, com a agravante de o ter feito explicitamente em público.
Alegou que o João não cometeu furto, quanto mais não fosse porque não escondeu a sua intenção de levar o copo, tendo disso dado conhecimento prévio ao empregado. 
Sublinhou que, para haver furto é preciso dolo e intenção do autor de se apropriar de coisa alheia em benefício próprio ou de outrém, o que se provara não ser o caso.


Pediu a absolvição do réu, alegando que este mais não fez do que praticar um acto de cidadania, a todos os títulos louvável, para protecção e defesa dos incautos

Rui Felício

17 comentários:

  1. Quero mandar um abraço ao João pela sua perspicácia em querer levar uma prova duma ilicitude.
    Nem sempre o que parece é.
    Gostei. Um abraço.

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    1. O Abilio resumiu numa frase aquilo que eu, talvez desajeitadamente, tentei dizer:
      Nem sempre o que parece é!

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  2. Quer dizer que o advogado de defesa ganhou a guerra das imperiais e o suposto "criminoso" foi declarado protector dos incautos!
    O Ministério Público não conseguiu provar que "contra factos não há argumentos"
    Saia uma imperial para o advogado de defesa!
    Um conto(facto verídico?) desta vez diferente daqueles que o Rui nos habituou!Desta vez de toga vestido!

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  3. Eu também pediria a condenação do João.
    Embora com pré-aviso, o facto é que ele roubou o copo.
    Se o fez como protesto pelo facto de se sentir, também ele, roubado na quantidade da cervejola servida no copo, fez mal. Tinha um meio legal ao seu dispor, todos os estabelecimentos são obrigados a ter um livro de reclamações...
    Mas, bem vistas as coisas, essa reclamação de pouco ou nada serviria e o "Café Volta Ká" continuaria a gamar 3 centilitros em cada fino, prolongando o roubo à sua clientela.
    E, assim sendo, eu condenaria o António Silva e absolveria o João...

    Como se vê, duas teses contraditórias podem-nos levar a conclusões paradoxais.
    E temos a antinomia jurídica que o Rui Felício aqui nos traz para nos obrigar a pensar um pouco...
    Aquele abraço.

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    1. O comentário do Carlos Viana, radica como sempre em raciocinio de sólida lógica, o que muito lhe agradeço. Suscita-me dizer o seguinte:
      É comum usarem-se na linguagem corrente as palavras roubo e furto como sinónimos. Mas de facto não o são., embora em ambas esteja subjacente a subtracção de um bem ao seu possuidor.
      O roubo pressupõe uma atitude violenta, física ou de ameaça, enquanto o furto é feito sem recurso a violência.
      Por outro lado, para que haja furto é indispensável que o seu presumivel autor tenha agido com dolo e clara intenção de se apropriar em seu beneficio ou no de outrem, de bem alheio.
      O que, como diz o conto, não aconteceu.
      O conto, pela sua própria natureza, não fornece, nem tal seria apropriado, todos os dados do processo.
      Não nos diz, por isso, se já tinha havido ou não, em anterior momento, o recurso pelo João ao livro de reclamações.
      Não nos diz se, tendo ele já usado essa prerrogativa, os resultados tenham sido nulos, levando o João a optar por outra via para atingir o seu objectivo.
      Por ultimo, o conto tem uma base verídica, embora ficcionado quase até ao absurdo, para tentar levar à demonstração de que a verdade tem sempre duas faces e que o julgamento popular que nos últimos tempos tem sido visível nas nossas televisões, assenta quase sempre numa observação precipitada de uma só dessas faces.

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    2. Essa do Livro de Reclamações é bué de gira!... Para que é que isso serve? O Carlos Viana é um lírico!...

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  4. O lucro ilícito de mais de 50 000 €/ano, deveria ser investigado.
    No entanto, notícias recentes informam-nos que é anti-constitucional esse tipo de investigação.
    Acho bem. Os tribunais têm muito mais que fazer do que incomodar as pessoas que, só porque enriqueceram repentinamente, não têm que ser suspeitos de qualquer acto ilícito...
    Não me lixem!

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    1. Claramente, o Carlos Viana refere-se ao recente chumbo pelo TC da criminalização do enriquecimento ilicito. Fê-lo para proteger um principio fundamental em que assenta o Direito. O da presunção de inocência.
      Todavia, se for bem lido o Acórdão, deduz-se que aprovará essa criminalização se o Decreto-Lei for reformulado e nele ficarem explicitas com objectividade as situações em que se venha a aplicar, dado que, em Direito Penal, as leis não podem fundar-se em abstracções.
      Compete ao Parlamento corrigir o diploma e aprová-lo de novo.
      Note-se que o que está em causa é a criminalização do enriquecimento ilicito e não a sua condenação em si mesmo, que essa já está contemplada em diversa legislação.
      Infelizmente sem efeitos práticos, como sabemos…

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  5. A história está impecável, mas ao contrário do que diz o Rui no início, este episódio NUNCA poderia passar-se em Portugal!
    Eu explico: Em primeiro lugar, logo que o João metesse o copo ao bolso, era capaz de levar uns socos do patrão, do empregado e até de alguns dos clientes! Não saía dali com o copo, com toda a certeza.
    Mas mesmo que conseguisse sair com o copo e o dono do café fizesse queixa, isso só seria julgado 5 a 8 anos depois (na melhor das hipóteses)! Entretanto, depois de condenado, o dono do "Volta Ká" iria recorrer! Com isto passariam mais uns 4 ou 5 anos!... Novamente condenado, recorreria para o Tribunal do Supremo ou outra merda do género!... Passariam mais 3 ou 4 anos!... Aqui o processo teria que voltar para trás porque estava cheio de incorrecções!... Mais 4 anos e seria avaliado o processo pelo Supremo que confirmava a pena! Mas não iria pagar nada, porque entretanto, 20 anos já tinham passado e o João tinha morrido uma semana antes da decisão do tal Supremo.

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    1. Aqui é que bate o ponto! É bem verdade a ineficiência da nossa justiça que o Alfredo ilustra sem papas na lingua!

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  6. O que eu aprendo com estas lições sobre Justiça...ou Injustiça!
    Gosto muito das papas na língua de Azurva!!!!
    A Justiça em Portugal é o que todos nós sabemos!!!
    Pode ser que alguma coisa mude...se os lobbys ligados à justiça e não só deixarem.
    Já era um bom avanço se acabassem com o número exagerado de testemunhas e limitassem o número de recursos!!

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    1. O exagerado numero de testemunhas, em certos casos, é de facto um expediente dilatório, embora já haja actualmente possibilidade por parte do Juiz de o limitar, segundo a sua ponderação e arbítrio.
      Mas outros expedientes dilatórios de indole processual são muitas vezes usados com muito maior eficácia e que passam despercebidos ao comum dos cidadãos.
      Também aqui o Juiz pode contorná-los através da figura de litigância de má-fé. Mas raramente usada...

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  7. O Rui Felício, faz jus à sua condição de jurista, para trazer aqui um tema interessante. Embora ficcionado até ao absurdo - no seu dizer - a verdade é que o Felício partiu a loiça toda, a julgar pelos extensos comentários, uns jocosos e outros em que até o caso recente do enriquecimento ilícito, aparece a terreiro. Nesta história, ressalta as duas vertentes em que possa ser observada, ou seja, em defesa do João e condenação do Silva ou vice - versa. Ou de ambos.
    Este texto, pelas considerações que o Rui vai fazendo sob o ponto de vista jurídico, apenas me faz confirmar em como o poder de argumentação de um advogado, pode, num caso que parece simples e linear, ser extrapolado para outras realidades, direi, pontos de vista, que possam levar a que leitura de uma sentença possa ter um resultado surpreendente.
    Boa Páscoa, Felício ..

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  8. Uma maravilha! Deliciei-me! Acho um piadão a estas matreirices jurídicas!

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  9. Enriquecimento ilícito.
    Um muro bem alto há volta da casa dos deputados.
    Muito dinheiro se poupava.
    Tonito.
    PS: sou eu que escrevo, mas a ideia não é minha.

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  10. E com isto tudo fiquei a saber que...os arbitros nao roubam nem furtam!!Sim, porque nao hà violência nem ameaças fisicas!Os ladroes passam a ser aqueles que protestam e por isso, merecem ir para a rua!

    O Alfredo tem razao!Hà quantos anos que à minha chegada a Portugal, pergunto, "Como està o Processo da Casa Pia"? E a resposta jà vocês a conhecem!

    Mas este texto do Rui, resume bem a complexidade da Justiça!
    Aqui, no Pais dos Direitos Humanos, se furtares um kilo de açucar num supermercado, tàs feito! Mas se fores politico e implicado numa venda de armas, ao fim de 15 anos a tua pena é suspensa!Contam-se pelos dedos duma mao, aqueles que estao atràs das grades!!!!

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  11. Gostei.
    Ainda bem que o João e o Silva eram tipos abonados e podiam recorrer à justiça!
    Mas não acredito que o "caso" tenha terminado:para já faltam os relatórios dos psiquiatras do Silva e o advogado do João,por enquanto,ainda não apresentou os relatórios clínicos do João que irão provar a sua atracção fatal pelos copos de fino...
    Daqui a 20 anos,com muitos milhares de euros gastos,talvez venhamos a saber quem furtou a quem.Enriquecimento ilícito?
    De quem?!Do Silva,que se limitou a palmar uns cêntimos em cada fino?Do advogado do João que faz uma fortuna de um copo de fino?
    Se formos vivos,na altura da sentença final ficaremos a saber.
    Um abraço,Rui.

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