segunda-feira, 23 de julho de 2012

ENCONTRO COM A ARTE




CONTOS
da
DAISY


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UM AUTOMÓVEL É UM SER VIVO


        Um automóvel é uma máquina. E uma mulher?
        Louca é esta satisfação de correr, de cortar o ar e galgar
quilómetros de estrada, que vão ficar para trás.
        - Tiago, tu gostas de mim?
        É sentir este aperto no peito, este bate-rápido do coração: uma taquicardia mais ou menos psicológica… porque eu sei que as minhas pulsações não estão aumentadas.
        O automóvel é como um animal. Tem vida, isto. Tem. Sinto-o trepidar, e dá-me um gozo pleno. O ponteiro a girar e a fixar-se nestes cento e quarenta máximos. Para além deles, não há mais. Mas posso abrandar, e acelerar de novo; e saber que sou dono, que mando, que manejo este volante pequeno e macio. É um animal, o automóvel. Igual, talvez, ao cavalo que montei em criança. E é fiel. E não é traiçoeiro.
Porque não tem consciência. Porque não raciocina…não como a mulher.
        Vou abandoná-lo, daqui a pouco, junto à porta. Sei que não me perseguirá, a pedir mais rodagem. Sei que poderei vir buscá-lo, sem compromisso, quando me der na real gana. E sem justificação. Só porque quero; porque me apetece; porque é uma necessidade, tão fisiológica como outra qualquer das chamadas necessidades fisiológicas do homem.
        - Tu gostas, realmente, de mim?
        É tão complicado justificar todas as reacções!...Porque faço isto? Ou aquilo? E para quê justificá-lo? Se a maior parte de tudo o que acontece, não tem uma sequência lógica…Se é tão complicada a mente humana, que nem milhões de anos de vida do humano, chegaram para ele se conhecer a si próprio!...
        - Não vejo justificação para continuarmos, quando não sinto a tua atenção presa a mim…quando não vejo que sintas, sequer, a minha falta!...Não me procures mais, ouviste? Não interessa. Não ligamos.
No próprio bater da porta, o sinto estremecer, o sinto vibrar, como excitado. Não vou estacioná-lo, ainda. Não sei, mesmo, quando voltarei a fazê-lo. Porque esta breve paragem, me pareceu dar-lhe nova vida, transformá-lo. E deu-lhe mais força. E já passa os cento e quarenta. E tenho a impressão de que o mato. Vais ter calma, Tiago, vais abrandar! Para acelerar de novo. Para ver a estrada a fugir, a fugir, louca. E etilizar-me deste não-pensar-em-nada, a correr. A correr. Não interessa para onde. Um automóvel é um ser vivo.


5 comentários:

  1. «Um automóvel é um ser vivo».
    Eu não dou muita confiança ao meu automóvel pois ele não é muito certo, de vez enquanto passa-se da cabeça, e quem tem que o aturar sou eu.
    Tonito.

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  2. A relação entre o ser humano e o seu automóvel ultrapassa, muitas vezes, o simples sentimento de posse. De posse de uma "coisa".
    O primeiro automóvel é, um pouco, o primeiro amor. Os seguintes, aqueles que na vida mais tempo nos acompanham, e nós a eles, são amores duradouros que sempre ficam guardados na nossa memória como os grandes amores da nossa vida.
    O meu primeiro amor foi um desastre. A nossa ligação durou apenas um ano, sempre numa relação tensa. Para esquecer!
    O meu segundo amor, acompanhou-me durante quatorze anos. Ainda hoje o choro, e sinto que o atraiçoei quando o troquei pelo meu terceiro amor...
    O meu terceiro amor? Mais quatorze anos de forte e louca paixão!
    Só nunca me lembrei de os baptizar!
    Depois disso, só amores efémeros, pouco sentimento e muita paciência para nos aturarmos mutuamente!

    Um beijinho, querida Daisy.

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  3. Toda a escrita da Daisy se faz de afetos. Até neste caso, dando "alma" a um simples automóvel. Tal como o nosso caro Carlos Viana, também eu tive os meus amores. O primeiro carro - em 8ª mão - foi o mais desejado. Talvez porque não há amor como o primeiro. Ou porque foi comprado com sacrificadas economias.Mas foi sempre uma relação amor-ódio. Porque me deixou apeado sucessivas vezes, com maleitas do coração, pela sua idade já provecta. Morreu um dia, numa sucata de Miranda do Corvo. Mas senti a sua falta. Apesar das falhas mecânicas, nunca o consegui diabolizar, olhando-o sempre com um olhar humano e condescendente. Paz à sua alma...
    E um aceno de amizade à Daisy, por me reavivar uma paixão feita de rodas, volante, faróis e buzina. E de gasolina, o alimento que lhe dava, sempre que tilintava uma moeda no fundo da algibeira ...

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  4. Se é tão complicada a mente humana, que nem milhões de anos de vida do humano, chegaram para ele se conhecer a si próprio!...
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    Nesta frase se encerra todo o ilogismo da vida. Porque havemos então de querer justificar tudo, de descobrir razões para todos os sentimentos, de encontrar linhas definidas para os comportamentos?
    No automóvel, como na mulher…
    Na mulher, como no homem…

    Um texto da Daisy, profundo como habitualmente, que nos faz pensar, raciocinar.
    O mote foi um automóvel que, segundo ela, tem vida, embora aparente o contrário.
    Poderia ter sido uma pintura, uma escultura, um instrumento musical ou um prosaico electrodoméstico.

    Meros objectos, ao tornarem-se alvos nossos afectos, ganham vida!

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  5. Eu sabia que valia bem a pena publicar este conto da Daisy!
    A prova está nestes três excelentes comentários já publicados!
    Em matéria de carros aqui por casa também tivemos um "primeiro amor", num namoro que durou vários anos...depois da carta de condução tirada!
    Só depois de dada a autorização...financeira foi possivel a relação, que durou vários anos! Chamava-se Volkswagen....Foi amor à primeira vista!

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