segunda-feira, 30 de julho de 2012

"HISTÓRIA DIGESTIVA" DE COIMBRA...


As “lições” do Pulga


A mitologia infantil é ainda mais fértil que a dos adultos, multiplicando anjos e demónios a um ritmo alucinante. Em Coimbra, nas décadas de cinquenta e sessenta do século passado, no imaginário das crianças germinava o famoso Pulga, um “vilão” que disputava o campeonato dos duros, ombreando com os Irmãos Metralha e com o Capitão Gancho. Só que estes figurões desenvolviam as suas patifarias na banda desenhada, cercados por heróis invencíveis. Ao passo que o Pulga era de carne e osso, e impunha alarvemente a sua lei à miudagem, sem que ninguém lhe fizesse frente…

Como se tivesse sido ontem, nunca mais me esqueci da minha chegada à cidade, no já longínquo ano de 1960. Terminado o ensino primário na aldeia, para prosseguir os estudos no Liceu Normal de D. João III, logo a malta se condoeu da minha triste sina:

- Coitado! Este vai para o Liceu!... Não te ponhas a pau com o Pulga…

A garotada costuma tocar o mundo para a frente, mas os meus novos amigos - quase todos filhos de gente pobre e proscrita do ensino – deixaram-me no ar umas reticências inquietantes, como se a minha nova escola fosse a cela de um condenado à fogueira. Minutos depois, já a minha curiosidade havia sido satisfeita: o tal Pulga era o reitor do liceu… um pequenote que, qual alma penada, fazia cair o fogo dos infernos sobre quem se lhe atravessasse no caminho.

- Não há-de ser tanto assim… – Pensei, para os meus botões.

Alguma razão me assistia para duvidar do calvário que me era anunciado. Na escola, que acabara de frequentar, também a professora marcava o ritmo das horas com a cana e a palmatória, usadas sem regra nem parcimónia. E, no entanto, eu conseguira sobreviver durante quatro longas temporadas aos seus destemperos, sem que alguma vez o céu me tivesse caído sobre a cabeça. Decididamente, a malta exagerava. Como é que um menino tão aplicado, e tão bem comportadinho, como eu, poderia cair nas garras de tal galfarro? Ingenuidade dos meus verdes anos, não imaginava que, em Coimbra, não passava de um catraio hipercinético e atrevidote, mesmo ao jeito do buril de tão tenebrosa personagem...

A confirmar a minha “apetência” por escolas, a minha entrada no liceu foi “triunfal”. Proveniente das berças, poucos dias depois já era eleito “chefe de turma”. “Posto” que me enchia de orgulho e me concedia a “regalia” de interromper as aulas de trabalhos manuais, para saltitar pelos corredores transportando o “livro de ponto”, uma vez que essas turmas se dividiam e não existia “mão-de-obra especializada”, para desempenhar tão sublime missão.

Adaptado ao pulsar da escola, lembro-me que depressa me “apaixonei” pelo Prof. Sousa Santos, de Canto Coral, que me ajudou a urdir uma peça de teatro para ser representada na “Festa de Natal”. Novidade absoluta, também com esse mestre comecei a explorar os segredos da música, centrado na “arte do assobio”: era assim que ia superando a carestia de vida, uma vez que, em minha casa, não havia tradição, nem dinheiro para instrumentos musicais e conservatórios. Sem vilões à vista, durante semanas, o meu novo liceu foi um deslumbramento… Até ao dia em que, a assobiar como um rouxinol, me salta ao caminho um gabiru de gravata e fato azul, que encontrei emboscado numa esquina:

- Então, meu menino, o que andas a fazer por aqui, quando devias estar nas aulas?

Pelas descrições que me haviam chegado, não tive dúvidas de que aquele meia-dose só podia ser o Pulga. Mas a pergunta parecia honesta e a “fera” até exibia um ar respeitável. E que podia eu recear, se estava às ordens da hierarquia?

- Sou chefe de turma e vou levar o livro de ponto à senhora professora… - Trauteei, pronta e educadamente, sem sombra de receio.

- E que faz o teu pai?

- É funcionário público… - Anunciei, cheio de orgulho, enquanto nos seus olhos vi brilhar um clarão, a que se seguiu um tremendo tabefe, que me atroou nos ouvidos e me fez cambalear.  

- Não sabes que não se deve assobiar? – Censuraria ele, antes de virar costas.  

A engolir as lágrimas e a revolta, e enquanto refrescava a vermelhidão do rosto numa pia da casa de banho, uma primeira “lição” logo extraí: que, no meu país, existia uma justiça para ricos e outra para pobres.

- O “cabrão” nunca mais me há-de apanhar… - Jurei para mim próprio, já resolvido a passar à clandestinidade.

Nunca me faltaram companheiros para diversas acções de guerrilha, mas eu era dos que não se contentavam a quebrar vidraças ou a riscar carteiras, actividades a que outros “operacionais” se dedicavam de forma eficiente. Para mim, o que valia mesmo eram acções de risco, tais como galgar diariamente as “escadas da vergonha” – usadas, em exclusivo, pelo Pulga e pelo vice-reitor - ou saltar muros para fanar os “limões da reitoria”. E foi assim, sem programa político, nem agenda fixa, que me fui integrando nas “forças da resistência” ao regime vigente. Até novo “encontro imediato do 3.º grau” me aclarar em definitivo as ideias…

O embate definitivo aconteceu no quinto ano, quando o Pulga invadiu a minha sala sem dar os bons-dias. Não corria notícia de ilícitos, mas o pessoal temeu o pior. Quem podia adivinhar o que ia naquela mente peregrina, sempre na pista de foragidos? Porém, senti, havia qualquer coisa de errado nessa risonha manhã: a criatura surgia carregada de livros e, como se vendida ao inimigo, tardava em descoser-se…

- Quem é o melhor aluno desta turma? – Inquiriu, por fim, a exibir as dentuças amareladas.  

A malta até respirou fundo, apercebendo-se que estava safa. Sarilho que sobrava inteirinho para mim, porque, entre todos, eu era quem obtinha as melhores classificações. O que não era propriamente o mesmo que ser o “melhor aluno”... Como ninguém abrisse a boca, fixei-me então na professora que, pensei, era quem devia prestar tal esclarecimento. Mas a pobre nem pestanejava, enquanto os seus olhos piscos, presos aos meus, pareciam implorar socorro.

- Quem é o melhor aluno desta turma? – Insistiu o visitante, na sua voz rouca e enrolada, já estilhaçada a frágil máscara da bonomia.

A turma inteira voltava-se agora na minha direcção, numa denúncia tão muda como pungente. No entanto, assim raciocinei, não seria de bom-tom dar-me como “melhor aluno”. Pois se alguns já me chamavam vaidoso, mesmo sem abrir a boca…

- Quem é o melhor aluno desta turma? – Havia o franganote de repetir, já meio alterado, desta seguindo o rasto da malta e a interpelar-me directamente.

- Sou eu quem tem melhores notas... - Confessei, meio enfiado, como a erguer-me de um banco dos réus.

O Pulga pousou os livros sobre a secretária e aproximou-se, como a tirar-me as medidas ao fato. No fundo dos seus olhos pardacentos observei o mesmo clarão assassino que registara no outro encontro aziago, anos atrás. Inevitável, quando ele soltou a mão, desviei a face. A agressão passou ao lado mas, em vez dos merecidos aplausos, a assistência ficou gelada. Posto em sentido nos segundos seguintes, impossível me foi escapar ao redobrar da sua sanha:

- É para saberes que, da próxima, te deves acusar. – Abonaria em seu favor, enquanto vingava a afronta, administrando-me uma dose reforçada. Para depois rematar, atirando com um dos livros para cima da minha carteira: - E toma lá isto, que te manda o autor…

Lembro-me do tipo ter abandonado o local inchado da sua importância, sem mais comentários, deixando a professora sem fala e toda a turma em estado de choque. A aula havia terminado e, a mim, apetecia-me fugir dali para esfanicar aquele troféu… um livro que exibia uma extensa dedicatória, destinada ao “melhor aluno do 5.º ano, turma E”. À saída das aulas, num auto-de-fé irrepetível, e de que não me orgulho, incinerei o “prémio” nas escadarias do liceu: nele se defendia a presença de Portugal no Ultramar, e a guerra colonial, quimeras que, no sonho dos meus quinze anos, eu até alimentava.

Fácil é perceber que a minha luta se iria aprofundar nos anos seguintes, num contestação quase inútil contra tanta gente a precisar de ser abanada. Com que imaginação me dediquei então a novas formas de protesto, que passaram pelo desenvolvimento de técnicas de copianço geral que punham os profes “doidos”? E com que adrenalina um dia invadi o santuário da Reitoria, para logo despejar, pela sanita, a tinta ciosamente guardada para a impressão dos pontos escritos?...

Fugaz, mas uma vez mais extremamente frutuoso, também deste segundo encontro eu havia de retirar marcantes ilações. Recordo apenas uma verdade até aí insuspeitada, mas de que até Camões se queixou: que a “pátria” nem sempre presta a devida homenagem aos seus melhores. É claro que me refiro ao reconhecimento público desse grande educador, que foi o Pulga. No que a mim toca, e como o seguro morreu de velho, confesso que, desde aí, dispenso prémios…


 Cândido Ferreira
"história digestiva" de Coimbra, extraída do facebook do Liceu, por sugestão do autor.


7 comentários:

  1. Já tinha lido este artigo no CS e vou pôr práticamente o mesmo comentário.

    Isto foi uma realidade dos nossos tempos.
    Uma vez a patinar no fim de umas escadas que desci a correr, o "Pulga" mandou-me parar ao lado dos outros que já tinham feito o mesmo.
    Depois de passado o intervalo, todos em fila, foi perguntando a cada um como se chamava o Pai e o que fazia, distribuindo bofatadas. Eu disse-lhe o nome do meu e que era chefe da secretaria do grémio, isto cheio de medo pois o meu Pai nem era uma pessoa conhecida nem era Dr. ou engenheiro, etc. Bem... disse-me para não voltar a fazer o mesmo e mandou-me embora, pois tinha-lhe acabado de dizer que ele era "chefe"...
    Se fôsse chefe de fila também devia ter passado.
    Enfim... descriminação.

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  2. Realmente, tinha os dentes amarelos, como o Gigante Adamastor, apesar de ser de pequena estatura. Chamava-se Guerra e fazia jus ao nome, pois gostava de pancadaria. Melhor dizendo: valia-se da sua condição de reitor, para, cobardemente, agredir os alunos. Mas era seletivo nas agressões: batia conforme a condição social dos pais dos alunos. Os mais modestos, eram chamados ao seu antro, onde eram agredidos a murro e a pontapé.
    Esta tela negra do Cândido, não peca por exagero. O Senhor Guerra, de má memória, era dos indivíduos mais mal formados que conheci até hoje ...

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  3. Não frequentei o Liceu e não conheci o Reitor Guerra.
    Já noutras ocasiões ouvi contar algumas histórias destas.
    O senhor pelos vistos era muito amigo dos alunos!

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  4. Quito
    Quem gostava muito dele, era professor Ferreira da Costa.
    Uma vez na nossa aula com o Ferreira da Costa, o "pulga" entrou e foi para junto à secretária arrumando um papel amarfanhado para o chão. O Ferreira da Costa que não o podia ver, virou-se para o primeiro aluno sentado que estava mais perto do reitor, mandou-o apanhar o papel e deitá-lo no caixote do lixo, com uma lição de civismo.

    De outra vez já não estou bem certo de todos os passos mas teve muita piada. O "pulga" entrou e pôs-se em abaixo, antes do ou dos degraus para o quadro perto da secretária do prof que acabava de fazer uma pergunta a um aluno. Como ele não respondesse, o Ferreira da Costa perguntou ao aluno se não era capaz de ler o que estava no quadro ou se era a altura do Sr. Reitor que o não deixava ler.
    Velhote mas era um tratado.

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  5. Com vossa licença: eu estudei na Brotero e lá se contavam as estórias do "pulga". Alunos que saíram do Liceu, e passaram para o Ensino Técnico, diziam-nos que os colegas mais destemidos também lhe (ao “pulga”) foram aos fagotes. Verdade ou mentira?
    Os pais dos mais escandalizados, que não tinham capacidade reivindicativa, socorriam-se dos amigos ligados ao "sistema" para dar a volta ao assunto. Os outros, não!

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    1. Na altura em que estudei no liceu, diziam que o "pulga" tinha sido transferido do liceu da Guarda para Coimbra porque os alunos do sétimo ano o tinham dependurado num cabide e que lá ficou durante a noite.
      Nunca soube se era verdade ou se foi boato.

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  6. Pelos vistos, o tal Pulga tratava os alunos em conformidade com a classe social paternal.
    Assim sendo, se tratava grosseiramente um filho de funcionário público (que nos anos 60 até era uma classe socialmente respeitada), como trataria o filho de um pedreiro ou de um camponês?
    Ops, desculpem! Estava-me a esquecer que estes não tinham acesso aos Pulgas.
    Já não está cá quem falou!

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