domingo, 8 de julho de 2012

A TRAPEIRA DO JOB


 A trapeira do Job
Isto que eu vou dizer vai parecer ridículo a muita gente.

Mas houve um tempo em que as pessoas se lembravam, ainda, da época da infância, da primeira caneta de tinta-permanente, da primeira bicicleta, da idade adulta, das vezes em que se comia fora, do primeiro frigorífico e do primeiro televisor, do primeiro rádio, de quando tinham ido ao estrangeiro.

Houve um tempo em que, nos lares, se aproveitava para a refeição seguinte o sobejante da refeição anterior, em que, com ovos mexidos e a carne ou peixe restante, se fazia "roupa velha". Tempos em que as camisas iam a mudar o colarinho e os punhos do avesso, assim como os casacos, e se tingia a roupa usada, tempos em que se punham meias-solas com protectores. Tempos em que ao mudar-se de sala se apagava a luz, tempos em que se guardava o "fatinho de ver a Deus e à sua Joana".

E não era só no Portugal da mesquinhez salazarista. Na Inglaterra dos Lordes, na França dos Luíses, a regra era esta. Em 1945 passava-se fome na Europa, a guerra matara milhões e arrasara tudo quanto a selvajaria humana pode arrasar.
Houve tempos em que se produzia o que se comia e se exportava. Em que o País tinha uma frota de marinha mercante, fábricas, vinhas, searas.
Veio depois o admirável mundo novo do crédito. Os novos pais tinham como filhos uns pivetes tiranos, exigindo malcriadamente o último modelo de mil e um gadgets e seus consumíveis, porque os filhos dos outros também tinham. Pais que se enforcavam por carrões de brutal cilindrada para os encravarem no lodo do trânsito e mostrarem que tinham aquela extensão motorizada da sua potência genital. Passou a ser tempo de gente em que era questão de pedigree viver no condomínio fechado, e sobretudo dizê-lo, em que luxuosas revistas instigavam em couché os feios a serem bonitos, à conta de spas e de marcas, assim se visse a etiqueta, em que a beautiful people era o símbolo de status como a língua nos cães para a sua raça.
Foram anos em que o Campo se tornou num imenso ressort de Turismo de Habitação, as cidades uma festa permanente, entre o coktail party e a rave. Houve quem pensasse até que um dia os Serviços seriam o único emprego futuro ou com futuro.
O país que produzia o que comíamos ficou para os labregos dos pais e primos parolos, de quem os citadinos se envergonhavam, salvo quando regressavam à cidade dos fins de semana com a mala do carro atulhada do que não lhes custara a cavar e às vezes nem obrigado.

O país que produzia o que se podia transaccionar, esse, ficou com o operariado da ferrugem, empacotados como gado em dormitórios, e que os víamos chegar mortos de sono logo à hora de acordarem, as casas verdadeiras bombas-relógio de raiva contida, descarregada nos cônjuges, nos filhos, na idiotização que a TV tornou negócio.

Sob o oásis dos edifícios em vidro, miragem de cristal, vivia o mundo subterrâneo de quantos aguentaram isto enquanto puderam, a sub-gente. Os intelectuais burgueses teorizavam, ganzados de alucinação, que o conceito de classes sociais tinha desaparecido. A teoria geral dos sistemas supunha que o real era apenas uma noção, a teoria da informação substituía os cavalos-força da maquinaria pelos megabytes de RAM da computação universal. Um dia os computadores tudo fariam, o Ser-Humano tornava-se um acidente no barro de um oleiro velho e tresloucado que, caído do Céu, morrera pregado a dois paus, e que julgava chamar-se Deus, confundindo-se com o seu filho e mais uma trinitária pomba.

Às tantas, os da cidade começaram a notar que não havia portugueses a servir à mesa, porque estávamos a importar brasileiros, que não havia portugueses nas obras, porque estávamos a importar negros e eslavos.

A chegada das lojas-dos-trezentos já era alarme de que se estava a viver de pexibeque, mas a folia continuava. A essas sucedeu a vaga das lojas chinesas, porque já só havia para comprar «balato». Mas o festim prosseguia e à sexta-feira as filas de trânsito em Lisboa eram o caos e até ao dia quinze os táxis não tinham mãos a medir.

Fora disto, os ricos, os muito ricos, viram chegar os novos ricos. O ganhão alentejano viu sumir o velho latifundário absentista pelo novo turista absentista com o mesmo monte mais a piscina e seus amigos, intelectuais, claro, e sempre pela reforma agrária, e vai
um uísque de malte, sempre ao lado do povo, e já leu o New Yorker?

A agiotagem financeira, essa, ululava. Viviam do tempo, exploravam o tempo, do tempo que só ao tal Deus pertencia, mas, esse, Nietzsche encontrara-o morto em Auschwitz. Veio o crédito ao consumo, a Conta-Ordenado, veio tudo quanto pudesse ser o ter sem pagar. Porque nenhum Banco quer que lhe devolvam o capital mutuado, quer é esticar ao máximo o lucro que esse capital rende.

Aguilhoando pela publicidade enganosa os bois que somos nós todos, os Bancos instigavam à compra, ao leasing, ao renting, ao seja como for desde que tenha e já, ao cartão, ao descoberto-autorizado.

Tudo quanto era vedeta deu a cara, sendo actor, as pernas, sendo futebolista, ou o que vocês sabem, sendo o que vocês adivinham, para aconselhar-nos a ir àquele Balcão bancário buscar dinheiro, vendermos-nos ao dinheiro, enforcarmos-nos na figueira infernal do dinheiro. Satanás ria. O Inferno começava na terra.

Claro que os da política do poder, que vivem no pau de sebo perpétuo do fazer arrear, puxando-os pelos fundilhos, quantos treparam para o poder, querem a canalha contente. E o circo do consumo, a palhaçada do crédito servia-os. Com isso comprávamos os plasmas mamutes onde eles vendiam à noite propaganda governamental e, nos intervalos, imbelicidades e telefofocadas, que entre a oligofrenia e a debilidade mental a diferença é nula. E, contentes, cretinamente contentinhos, os portugueses tinham como tema de conversa a telenovela da noite, o jogo de futebol do dia e da noite e os comentários políticos dos "analistas" que poupavam os nossos miolos de pensarem, pensando por nós.

Estamos nisto.

Este fim-de-semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa.

Que interessa? O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou. Nessa altura, em Bizâncio, discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se tivesse distraído com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha ganho aos dados a alma do pobre Job na sua trapeira. O Job que somos grande parte de nós.
 José António Barreiros, advogado

Enviado por Abílio Soares 

11 comentários:

  1. Por coincidência já tinha lido este texto.
    O que não invalida a oportuníssima escolha do Abílio, trazendo ao Encontro de Gerações a mais valia de uma análise actual deste nosso tempo, comparada e sustentada em remotas épocas que nos deviam servir de lição.
    Em Bizâncio discutia-se o sexo dos anjos, recorda-nos o Autor.
    Apetece acrescentar que em Lisboa se faz hoje o mesmo.

    Obrigado, Abilio, por esta publicação.

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  2. Gostei de ler.
    O nosso fado está todo aqui.
    O que virá a seguir?.
    Tonito.

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  3. Apenas agora venho aqui, porque já li o texto duas vezes. A pena de José António Barreiros, é lesta a refrescar-nos a memória. A rebobinar o passado e a confrontar-nos com esta sociedade egocêntrica, vaidosa e consumista, sempre de olho nos haveres do vizinho do lado, para não se sentirem ultrapassados. Para trás, fica o essencial da Vida, perdidos que estão numa visão estritamente materialista de tudo. Para a frente, vislumbra-se um futuro nebuloso, a navegar em águas revoltas das tempestades que eles próprios criaram ou que alguém criou, na mira do lucro, aliciando-os e hipotecando-lhes os sonhos de um crescente bem - estar. Já voltámos ao tempo da marmita com o almoço, que se leva para o emprego. À noite, voltarão a comer "roupa velha". E não custa a crer, que os terrenos abandonados de trigo e centeio, não voltem a ondular ao vento. O futuro será o passado.
    Gostei Abílio. Um abraço

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    1. Quito

      Voltei aqui, voltei a ler o teu excelente comentário e houve uma frase que me chamou a atenção pois mostra bem como a vida se tornou fácil em Portugal. Dizes e muito bem:" Já voltámos ao tempo da marmita com o almoço, que se leva para o emprego.". Ora aqui, práticamente toda a gente leva o almoço para o trabalho. Tanto a minha mulher como a minha filha levam o almoço. Houve tempos em que certas manhãs muito cedo da semana passava pelo primeiro ministro do Quebec, Bernard Landry, não havendo mais ninguém, nem segurança. Começamo-nos a comprimentar e depois se um até ia destraído, o outro levantava a mão ou abanava a cabeça mais fortemente com um sorriso. Bem, ele ia com a sua pasta e o saquito branco do lado de fora, que era a refeição. Não quero dizer que algumas vezes não tenha acabado por ir almoçar com outras pessoas pois até é normal mas pelo sim e pelo não, o saquito lá ia. Não há jormais sobre isto, senão também punha a imagem.
      Como diz o artigo por outras palavras: convenceram as pessoas que tinham o que não tinham.

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    2. Dificilmente os campos voltaram a ondular porq. o ser humano com o seu igoísmo destruiu a mãe natureza e, esta não perdoa. Que é das florestas que herdamos? são cinza. Que é feito dos rios que corriam a jorro? secaram. Agora dizemos: vivam as novas tecnologias que ainda nos vão mostrando a ilusão até nos destruirem completamente.

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  4. Este artigo do Abílio faz-nos pensar na sociedade em que vivemos.

    É um artigo comprido que tinha que o ler pois trata-se de uma realidade do passado, do presente e que toca muito o nosso país.

    Quantas vezes a Marquinhas fazia milagres com o que tinha quando à última hora via entrar tanta gente para almoçar. O bachalhau tranformava-se em arroz de bacalhau, as carnes em arroz de carne, os restos mexidos com ovos e salsa picada aumentavam a paparoca, enfim: era uma abundância.
    Quanto às roupas a Marquinhas também se encomendava de mudar os colarinhos, punhos, fazer as baínhas da calças, cozer meias, botões, etc.
    Lembremo-nos do tempo que um professor em Góis só ia de quinze em quinze dias a casa e na camioneta da carreira. Aqui chegavam a passar três meses e até um ano em zonas frias, sem irem a casa.
    Por estes lados também foi assim até aos anos sessenta.

    Quanto ao resto que também está absolutamente em dia, penso que só quando se conseguir reformar mentalidades, será possível sair do que foi exposto no artigo.

    Noto como principal a falta de valorização do trabalhador em certos campos e por isso empregos que antes existiam, hoje já nem se fala neles e outros nem se aceitam. Não davam, acabaram pois não foram valorizados. Foi referido neste blogue que os estudantes não aceitam trabalhos no verão. Por estes lados até aceitam durante todo o ano pois podem fazer vinte horas por semana sem prejudicarem os estudos. É por isso que eles saíram para a rua: sabem o que lhes doi e não aos papás. Se não há dentro do campo, aceita-se de tudo e continua-se à procura do emprego desejado, pois a vergonha é não trabalhar. Não é por azar que um advogado português andou aqui a fazer limpezas e hoje está aí bem. Também os médicos que vieram para cá sem terem sido convidados, andam como motoristas de táxi. Com as pessoas daqui acontece o mesmo. Já Jean-Claude Lauzon, realizador galardoado com 13 prémios genie num só filme, nomeado para a Palma de Ouro em Cannes, pelo meio andou aqui a fazer de motorista de taxi e outras coisas. Se os imigrantes nas suas terras não aceitariam e aqui aceitam, para mais com estudos, é porque o trabalhador está valorizado e sabem que podem viver dignamente com o salário de dia a dia. Além disso, aí há falta de leis. Aqui para diminuirem a imigração profissional temporária, quem está no desemprego tem direito a negar só três vezes o emprego que lhe proposeram num raio de cem kilómetros.
    Publiquei dois artigos no meu blogue sobre o o mesmo título, Desmistificação, um a 30 de Abril de 2011 Vivências QC 011 – Salários QC - Coveirose o outro a 23 de Março de 2012Vivências QC 012 – Salários QC - Electricistas, aonde o salário de coveiro ou de electricista, é idêntico ou superior ao de um mestrado, já para não falar de outras profissões. Incluí imagens de artigos de jornais para quem não está habituado a esta forma de ser e portanto não hajam dúvidas sobre as minhas afirmações.
    A atribuição dos salários depende de certos parâmetros como a sabedoria, o esforço, o risco, o traumatismo psicológico que o emprego possa originar, estas situações todas independentes ou interligadas umas com as outras.
    Sem dúvidas que é na América do Norte que há muito têm vindo a dar valor aos trabalhadores e assim um diplomado quando não tem emprego, aceita outros trabalhos. Bem perto de onde habito, ainda há pouco tempo havia uma empregada de supermercado que tinha um mestrado. Um professor universitário inglês, era desenhador de alta precisão. Se aceitam esses empregos numa perspectiva transitória e nem sempre são os melhores salários, por vezes até fica para a vida pelos mais diversos motivos.

    Por isso não ficam na apatia de uma queda do Império Romano.

    Tenho visto poucos artigos originados pelo Abílio, mas todos muito bons.

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    1. Como é que se há-de valorizar o trabalho e as antigas profissões se as máquinas fazem tudo? Os grandes agricultores e produtores até se dão ao luxo de dizerem que colheram tantos almudes de vinho, tantas toneladas de qualquer coisa sem sequer terem pago um dia de jeira. Não havendo geiras, não há dinheiro, não havendo dinheiro não pode haver consumo e, sem consumo não se pode crescer. Os mais pequenos vao acabar por morrer á míngua nas mãos dos abutres.

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  5. Boa leitura nos possibilitaste...Reflexiva sobre comportamentos repetitivos, com passos à frente e,concomitantemente,com demasiados passos atràs....A dialéctica assim faz andar a vida em sociedade e, ainda bem... mas se fosse no sentido da verdadeira justiça ou a mais aproximada possível... só que as pessoas que assumem o "comando" das sociedades não se guiam por esse nobre princípio mas por motivos tão colaterais como e tão só o seus próprios interesses e de quem os "apaparica".
    Um bico sem saida...ad eternum assim será!

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  6. Passo a passo, muito boa gente se convenceu que o "conceito de classes sociais tinha desaparecido".
    Passo a passo, muito boa gente começou a "discutir o sexo dos anjos", perdendo de vista o essencial.
    Passo a passo, caminhamos para a inevitável luta de classes.
    É uma questão de tempo, nada mais.
    Nem Deus nem o Diabo pode interferir nesta dinâmica da vida porque é da natureza humana.
    Só o Homem!

    Abraço, Abílio. Boa escolha, este texto que nos trazes e que eu não conhecia.

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  7. Excelente texto e que o Abílio enviou há já bastante tempo, mas que andou perdido em rascunho!
    Não só o texto é excelente como são muito bons os comentários!

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  8. O homem olhando para o seu próprio umbigo, de forma irrefletida, discute o sexo dos anjos na imbecil esperança de que a inércia social dará tempo para tudo resolver. Não é assim, quando a atração pelo abismo nos atira irremediavelmente para o fim desta sociedade do bem estar que nos andaram a vender.
    Tudo é efémero, menos a natureza, que mesmo no meio do terreno ardido e em cinzas tem a força para fazer nascer uma flor.
    Estamos no “Inverno do nosso Descontentamento” mas saberemos renascer das cinzas como aquela flor.

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