São dez horas da manhã, deste dia radioso. Ao volante do meu
carro, há muito que deixei a fria e impessoal autoestrada, para rumar ao sul de
Portugal. Agora, que o sol já vai alto, inundando a planície de uma claridade abrangente,
vou percorrendo o Alentejo, na procura dos silêncios que anseio. Dos silêncios
vertidos num tempo sem Tempo, que só o Alentejo pode oferecer ao caminhante. Desta
solidão feita de campos de girassóis, azinheiras e sobreirais. Também da
solidão feita de pequenas povoações alvas, dispersas pela planície e do
sussurrar de uma brisa quente, que vai afagando a melancolia da campina. Aqui e
ali, muitos ninhos de cegonha. Imóveis, olham-me dos ninhos com a mesma
indiferença dos dias que passam, no rolar de um Tempo sem fim. Sem dar por
isso, entro em Ponte de Sor. Àquela hora da manhã, é grande a azáfama, na avenida
principal. Uma feira de velharias percorre o passeio longo e os potenciais
compradores de relíquias, afadigam-se de volta da mercadoria exposta. Continuo
a marcha, que a jornada é longa. Para trás, ficou o imponente Castelo de Belver
e a Barragem do Maranhão, que a minha companheira de aventura e solidão, fez
questão de visitar. Por uma estrada estreita, descemos até ao rio. E ali,
naquele templo de silêncio, apenas as canoas de proa erguida de um clube
náutico, de feitio bizarro, fazem lembrar-me os livros de banda desenhada da
minha infância. E, ao longe, por entre uma cortina de calor, vislumbro uma
herdade. É visível o gado nas pastagens, naquela manta de retalhos de um verde
desmaiado e o castanho austero da terra mártir e ressequida. Maquinalmente,
continuo ao volante, absorto nos meus pensamentos. Lembro agora Pavia. Ali, naquele
lugar, quando parei junto a um semáforo dando prioridade a uma mulher idosa,
aconteceu o imprevisto. A Senhora, com uma cesta na mão, dirigiu-se ao carro,
perguntou-nos se a nossa família estava bem e desejou felicidades. De mão na
mão, falámos num breve momento. Trocámos uma saudação e não deixei de meditar,
por largos quilómetros, naquela mulher que se cruzou connosco nos caminhos da
vida, por instantes. Foi como que uma girândola mágica de afetos e de partilha,
com alguém que nunca tínhamos visto e que, com toda a probabilidade, jamais
voltaremos a ver. Agora que a indiferença da aldeia global, vai reduzindo as
pessoas a simples números, numa contabilidade sórdida de deve e haver, aquele
sentir alentejano foi como que uma espécie de água fresca que nos refrescou a
mente e a alma. É quase uma da tarde e cruzo-me com a placa branca que indica a
vila do Torrão. Estaciono o carro junto a um restaurante, na berma da estrada. O
nome é, no mínimo, estranho. Chama-se “Afluente do Sado”. Espreito para a sala,
quase na penumbra, na defesa do calor inclemente. É um recinto grande, com
algumas mesas dispersas. Numa delas, quatro alentejanos, com o seu sotaque bem
vincado, vão meditando em voz alta, nas coisas sérias da vida. Enquanto vamos
almoçando, a minha atenção, centra-se na conversa deles. Por entre o retinir dos
talheres, vão discutindo política e percebe-se que a filosofia reinante, não é
vista pelos compadres, em muitas boas Graças. E até foi pretexto para falar do
curso de um ministro sem curso. E de um convento lá da zona, património
nacional, a cair em ruínas. Entretanto, naquela sua franqueza a roçar a
ingenuidade, de quem está habituado a andar pelas arribas da Vida, como quem
percorre as retas da planície que os viu nascer, sempre nos foram dizendo que
escolhemos mal o almoço. Ensopado de borrego é que era a boa aposta – dizem
- enquanto vão molhando o pão no caldo fumegante e espesso da caçarola de barro
negro. Realmente, o cheiro era sublime e nem houve sequer coragem para
contestar. De novo na estrada, atravessámos o Torrão, ao pino do calor. Uma
vila deserta, de janelas corridas e portões fechados. Um hiato no Tempo. Um
mistério. Ferreira do Alentejo e Aljustrel, perfilaram-se perante nós,
saudando-nos nesta rota do Sul. Depois, nova incursão pela autoestrada e na
correria desenfreada dos veraneantes em direção ao Algarve do mar azul. Afinal,
aquela parte do Alentejo que sucumbiu aos ventos da dita civilização. O ruido
das buzinas dos carros, substituiu o cantar das cigarras. O silêncio dos
sobreirais, caiu perante a ditadura fulminante do alcatrão.
E eu aqui, nesta varanda, a percorrer com um olhar errante, a
grandeza de um oceano brando, de cor azul - turquesa. A recordar o velho
Cesário e o António Maluco, heróis reais de épocas de antanho, desta cidade de
navegadores.
E também convosco, a
desfiar este rosário das minhas mais frescas mas também mais remotas memórias.
Quito Pereira
António Maluco
ResponderEliminarselecionar tudo e ir para
http://encontrogeracoesbnm.blogspot.pt/2012/05/o-antonio-maluco_5523.html
Viagem descrita com tal intensidade de histórias e memórias que me sinto "invejosa"....
ResponderEliminarEm Ponte de Sôr não visitaste a Romicas,a nossa amiga que faz parte da nossa memória presente?
Boas férias,bons banhos,boas petiscadas,boas sestas....e etc e tal!
Beijinhos
Pois, Olinda, parece que não.
EliminarFiquei com tanta pena...
Aqui, no meu jardinzito, leio encantada o relato de mais uma viagem do Quito e da São.
ResponderEliminarPercorri todos os quilómetros até ao Algarve, mas não saboreei o borrego que deveria saber muito bem.
Mas gostei muito da senhora que gentilmente vos cumprimentou perguntando pela família! Uma ternura que focaste na tua escrita!
Boas férias.
Mais uma boa Prosa.
ResponderEliminarFérias com pinta para todos.
Tonito.
Gostei deste teu roteiro pelas terras do sul.
ResponderEliminarAntigamente, digo bem antigamente também a caminho do Algarve percorríamos estas terras, percurso que normalmente fazíamos no mesmo dia.Uma dormida em Alcácer do Sal.
Quanto a mim também ía no ensopado de borrego!
Eu costumava dormir em Grândola.
EliminarTendências...
Mas isso foi no século passado em que não havia nenhuma auto-estrada a atravessar a Serra do Caldeirão.
Que saudades que eu tenho dessas viagens tão chatas!...
Claro e BOAS FÉRIAS para ti e para a tua companheira da aventura e solidão!
ResponderEliminarSÃO... férias e que
DEUS as abençoe!
E lá vai o Quito, calcorreando quilómetros, saboreando o que a natureza lhe oferece mas também aproveitando os contactos humanos que tanto preza.
ResponderEliminarDestino? Não diz mas atrevo-me a tentar adivinhar que, desta vez, é Lagos que o espera. Depois de Coimbra e do seu Choupal, parece-me ser a sua maior paixão. Salgueiro do Campo também faz parte da rota da sua vida mas... Coimbra e Lagos, não é verdade?
Como sempre, conseguiste sentar-me no teu carro, atrás de ti e da tua grande companheira São Vaz, para me ofereces um belo passeio.
Pena, para mim, que a viagem de volta tenha sido imediata...
Boas férias, queridos amigos. Aproveitem tudo quanto possível. Tudo de bom, já se vê...
Assim até é fácil fazer quilómetros de carro!...
ResponderEliminarTem cuidado, não em Pavia, mas há lugares onde ao parares num semáforo e alguém se aproximar, não é para te cumprimentar, é para te assaltar ou, na melhor das hipóteses, para te pedir dinheiro!...
Boas Férias!
Olá Quito!...adorava ter a inspiração necessária para deixar aqui palavras que podessem fazer companhia a esta tua bela "música"...mas o momento não é famoso...e assim dir-te-ei que é sempre um prazer ler tudo o que escreves! Abraço e um beijo para a "pendura" que vai ao teu lado nesse teu "Caminhos do Sul"!!! Boas férias!
ResponderEliminarBela imagem bem caraterística!
ResponderEliminarNão perdeste tempo, fizeste logo o dário de bordo! Como dizia o Viana, parece que íamos no banco de trás apreciando tudo o que nos ias mostrando. Parabéns e continua a fazer o diário e a partilhar.
Boas férias e beijinhos para ambos
Este Alentejo profundo de paisagens do largos horizontes e gentes hospitaleiras de vida sofrida perdeu-se ao olhar impaciente do automobilista que corre na auto estrada.
ResponderEliminarVale-nos a descrição do Quito que nos faz lembrar que no meio das searas e dos montados há pequenas povoações, há pessoas que vivem, envelhecidas, muitas já desiludidas das esperanças que um dia lhes povoaram os sonhos.
Vale a pena viajar pelos caminhos do Alentejo,sem pressas, longe da fita de alcatrão que tudo desumanizou...
Será possível, Quito e São, que tenham passado em Ponte de Sor e não tenham dito nada? Se calhar até andaria no meio de todas aquelas velharias...
ResponderEliminarQue pena!! Seria tão bom apanhar-vos aqui e tomar um cafézinho com os meus amigos de Coimbra. Espero que, no regresso, digam qualquer coisa!
Desejo-vos boas férias e mando beijinhos para ti, Quito, e para a São.
Amigos Romicas e Rafael
ResponderEliminarImpossível passar em Ponte de Sor e não nos lembrar-mos de vós. Só não o fizemos, pelo facto de serem apenas dez horas da manhã e poderiam estar ainda a descansar. Não queriamos incomodar-vos tão cedo. Mas a tentação foi grande ...
Porém, há mais marés que marinheiros, e quando menos contarem ...toca o telefone.
Um abraço nosso para ambos