segunda-feira, 18 de março de 2013

A ILHA DA SOLIDÃO ...



 
Escrever é um acto solitário. Muitos, milhões, escolhem a solidão da noite ou a quietude dos locais mais recônditos do planeta para, de uma forma modesta e anónima, ou com reconhecida capacidade de comunicação que lhes granjeiam os aplausos de todo o mundo, fazer viajar o leitor interessado, por realidades muitas vezes dolorosas e até incomodas aos olhos de alguns, nesta roleta da fortuna e do azar, em que se está a transformar com contornos cada vez mais definidos, esta aventura de viver. E a escrita, para muitos, é também uma forma de se confrontarem consigo próprios, exorcizando medos, dúvidas e até angústias. E porque tenho, de facto, a convicção de que escrever é um acto solitário, que me lembrei do nosso Nobel da Literatura, José Saramago e da ilha que habitou – Lanzarote. E é do fascínio que a pequena Ilha Canária causou em mim, que me faz partilhar convosco um pouco das minhas impressões daquele mar de lava e solidão. Ao recordar Lanzarote, a palavra mágica que me acode ao pensamento é Timanfaya.  Estranho e brando nome para um vulcão que, no auge da sua ira, sepultou aldeias inteiras e os seus aterrorizados habitantes. Agora, já só resta a paisagem descarnada a perder de vista e as formas caprichosas com que a lava solidificada se apresenta aos olhos do viajante. Para os que apreciam e também para aqueles a quem os vulcões exercem o seu sinistro fascínio, é a arte da mãe-natureza no seu esplendor. Por uma estrada estreita e ziguezagueante, vamos subindo até ao topo da cratera. É mais de uma dezena de quilómetros em carrocel. E é quando afundamos pelas apertadas gargantas, em que apenas se tem o céu por horizonte, que sentimos um estranho desconforto, no meio daquela paisagem negra e calcinada, e damos connosco a pensar na fragilidade da nossa condição humana. No cume, a cratera lá está. E também um restaurante, sabiamente construído por César Manrique e que não é mais do que o prolongamento da paisagem agreste que nos seca a vista. César Manrique, era natural da ilha. Foi arquitecto, pintor e escultor de mérito e a sua obra encontra-se profusamente espalhada pela ilha, que assim o imortaliza e lhe confere um estatuto quase divino. Dez metros abaixo de nós, a temperatura é de seiscentos graus centígrados, que o mesmo é dizer, caminhamos em cima do inferno. Mais tarde é o regresso ao hotel na zona de praias de areia negra da ilha. E à noite, quando o céu se tinge de negro e vislumbramos as luzes mortiças da bela enseada da costa Teguise, damos conta dos ventos que ali habitam. São os quentes ventos alísios que, roçando a copa das palmeiras, produzem uma estranha e  soturna sinfonia. Temos então a sensação que ali coabitam, em estreita cumplicidade, Hefesto e Éolo, e que este lugar de solidão será, quiçá, o sítio ideal para se verter sobre uma folha de papel, as inquietações da alma e a busca incessante da Verdade. E será olhando o mar revolto e tendo como companhia o vento sussurrante que assola a ilha e o lúgubre negro da paisagem que por vezes mais parece lunar, que Saramago edificou o seu mundo, deu azo às suas perplexidades e ganhou, pela sua escrita brilhante, por vezes hermética, um lugar entre os eleitos na arte de partilhar com o leitor, o fio condutor do seu pensamento. De semear dúvidas e colher convicções. De nos fazer transportar nas asas de Morfeu, ou descer ao demoníaco ventre de Vulcano, onde habita o fogo eterno.

Enquanto lá fora, na noite misteriosa e quente de Lanzarote, vamos assistindo por entre a folhagem exuberante dos palmeirais, à dança constante e intemporal do vento uivante.                 

Quito Pereira   (Junho de 2010)         

16 comentários:

  1. Trago hoje de novo ao convívio dos amigos, este texto que escrevi há cerca de 3 anos.
    De todas as ilhas espanholas,apenas não conheço La Palma. Já tive a felicidade de calcorrear as outras. Todas com motivos de interesse diversos. Da "Real Cartuxa" de Palma de Maiorca, refúgio de Chopin, às noites loucas de Ibiza.

    Porém, é a mais descarnada das ilhas, que exerceu em mim maior fascínio. Lanzarote dos Ventos Eternos. Um mar de lava e solidão.Dos planaltos descarnados e ventosos onde, de onde em onde, encontramos pequenas habitações plantadas no meio do nada. Um mistério. Gostava de lá voltar. Porque neste mar revolto em que se transformou a vida da maioria de todos nós, é aquele o meu lugar de eleição para me aplacar as iras da alma ...

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    1. Vá lá conheço Ibiza!!!
      Ibiza a mim aplacava-me mais as iras que me sufocam....
      Aquela vidaça quando lá estive tornou-me elétrica e só deste modo posso dar cabo das iras.Parados estamos a levar "cachaporra" todos os dias e apenas nos queixamos.
      Bem,continua beirão/choupalinho a escrever!!!

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  2. Não são 600º mas 485º que já é uma temperatura muito elevada.
    Correu muito bem, deixei a leitura e ficou mais fresco.
    Um Abraço.
    Tonito.

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  3. Pela mão do Quito revisitei Lanzarote onde tinha estado em 1980.
    De novo, o restaurante que naquele ano ainda não existia. Nem as pisadas de Saramago, que só anos mais tarde ali escolheu viver até à morte. Como se fosse mais um vulcão entre vulcóes.
    Obrigado por me fazeres recordar uma paisagem agreste que contrasta com o cosmopolitismo de Las Palmas ou Tenerife.

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    1. Também não conheço Las Palmas e Tenerife...
      Pela tua mão dá-as a conhecer,Rui!

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  4. Ler não é um acto solitário...
    E escrever ser considerado um acto solitário questiono um bocadito!
    Sabes escritor Quito que não estás a escrever apenas para ti porque divulgas a tua escrita e ainda bem...Após divulgada também nos pertence!
    Ora mostras-me uma ilha e a sua vida que não conheço a não ser através dos Cadernos de Lanzarote de José Saramago. Assim fico mais rica ao conhecer e ficar a imaginar que uma ilha agreste pode ser bela e sentirmos alguma paz de alma (durante uma semana) mais não. Ficaria neurótica!....Então,Quito obrigada.

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  5. Belíssimo texto, Quito ! adorei.
    Um abraço e continua.

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  6. Não para rever Lanzarote...pois nunca lá estive, mas para ficar com uma ideia mais "fresca" desta ilha,que o reli com prazer!Andei por lá perto, nas Canárias, Las Palmas, Tenerife...isto no tempo das "vacas gordas", que felizmente existiram mesmo!Agora decorre o tempo não das magras, mas apenas só dos esqueletos...
    É a vida!

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  7. Recordo-me bem deste texto do Quito que li e comentei. E, se a memória não me atraiçoar, o meu comentário foi no sentido de lhe tentar demonstrar que escrever está longe de ser um acto solitário. Ao escrever, o autor comunica com o seu leitor. Aqui é Lanzarote que nos faz visitar, como já nos levou a visitar muitos outros locais. Escrever, desta forma comunicativa, não é um acto solitário, bem pelo contrário, é uma forma de reunir à volta de quem escreve uma enorme quantidade de pessoas, ou seja, os seus leitores.
    Dar a conhecer o nosso conhecimento é um acto mais solidário do que solitário...
    Aquele abraço, Quito.

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  8. Fiquei com uma ideia muito boa de Lanzarote, nunca lá fui, mas fiquei com uma vontade muito grande de lá ir! O texto, como sempre, de grande qualidade!

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  9. Como noutras zonas do planeta, Lanzarote é também exemplo de como o Homem se adapta às condições mais hostis e inóspitas.

    Cada homem é um homem. Quero dizer, que cada um de nós tem a sua forma de estar e da sentir. Podemos apreciar as noites coloridas de Ibiza. Também gostei. Mas Ibiza ou Menorca, apenas nos trazem uma componente forte de lazer, salpicada aqui e ali, por um qualquer monumento de relativo interesse.

    Num outro patamar, relembrar Chopin em Palma, olhar o piano por onde repousaram os seus dedos prodigiosos ou constatar das condições agrestes do mundo de Saramago no seu refúgio de Lanzarote, também é turismo.Uma outra forma de repousarmos o corpo e o espírito das preocupações do dia a dia. De pararmos para reflectir.

    Como vos disse, Lanzarote é um mistério. Mas já não o será tanto para mim, no que respeita a José Saramago. Porque aquele é o local ideal para, em momentos de solidão e nas asas do Vento Eterno, se construir em fiadas de palavras, um muro de reflexões e de pensamentos. De libertar o espírito do garrote que nos aperta a existência.

    Respeitando a opinião de todos e de cada um, tenho para mim, que escrever é um acto solitário. Quando estamos sós, de dia ou de noite, vertendo para uma folha de papel ou para o teclado de um computador, o nosso mundo interior. Da-lo depois a conhecer a uma estreita ou vasta plateia, já é dar a conhecer um pensamento que, na sua génese, foi só nosso.

    Se eu tivesse a felicidade de escrever como os eleitos, se eu quisesse alinhar um romance ou confessar as inquietações que me assolam a alma, era em Lanzarote que lançava ferro.

    Porque as asas do Vento Uivante que assola a ilha, é o veículo ideal para nos fazer transportar a uma outra dimensão. De percebermos da nossa fragilidade terrena, perante a grandiosidade rude que nos rodeia.

    Foi ali, no cume do Timanfaya, que mais me afundei nos meus pensamentos pardos, nas margens do inferno ...

    Obrigado pelos vossos comentários e colaboração.

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    1. Este teu comentário é a prova de que escrever não é um acto solitário.
      Muitas dezenas de leitores se "sentam" à tua volta para te ler, nesta espécie de blog...
      Toma lá mais um abraço.

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  10. Excelente! Mais uma bela prosa do Quito. Parabéns. De vez em quando também me apetece "verter sobre uma folha de papel, as inquietações da alma e a busca incessante da Verdade." Abraço.

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  11. Mais uma bela viagem, com estadia, que me proporcionaste!
    Vi Lanzarote da ilha de Tenerife.

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