O inverno partiu. Deixou no seu rasto, um manto de sombra dos
dias tristes. Mas foi generoso com a dádiva da água, que enche os poços e as
ribeiras que cantam o louvor da terra fértil, sitiada entre penedias de xisto e
de granito. E hoje, neste patamar da Primavera, a aldeia acordou serena. Há uma
brisa fresca que corre o vale, enquanto as montanhas austeras, brilham a um sol
que, de quando em vez, se esconde por entre um castelo de brancas nuvens que se
arrastam vagarosas pelo céu, a caminho do infinito. É o suspiro de um dia
soalheiro, depois das tardes cinzentas em que o crepitar da lareira foi o
agasalho dos simples, no tombar dos dias tristes.
Num impulso, saio do meu refúgio de solidão. Caminho pelos campos que me sussurram uma ode triunfal. Vejo os ninhos de cegonhas. E os pássaros a chilrear, saltando de ramo em ramo. E o aroma das flores, como que a agradecer a ternura de um dia primaveril.
Ali em baixo, junto ao lar da terceira idade, vejo alguns idosos arrastando as suas bengalas. Estão no inverno da vida, procurando no regaço da Primavera, o sol que lhe aqueça os corações. O Mário, está sentado num banco, meditabundo. É na cinza incandescente que se dobra na ponta de um cigarro, que revisita as memórias de uma vida parda. O Joaquim, com a camisa negra que lhe molda o tronco musculado, traz às costas um saco cheio de plantas medicinais, que, pacientemente, foi colhendo pelos campos. Essa dádiva generosa da Natureza, que ele, sabedor como ninguém, reconhece pelo aroma e pelo tacto. E os irmãos António e João, que de mão nos bolsos e boné pendente sobre os olhos, vão caminhando pela berma dos caminhos, aparentemente sem destino. Logo, mais logo, irá aparecer o padre Avelino. Ali, naquele lar, celebrará missa, acompanhado pelo conjunto de fiéis que, com Fé, acompanharão o Ministro do Senhor, na sua ladainha. É o seu férreo Crer, o farol com que caminham pelo mundo, encontrando na religião, todas as respostas para as contrariedades e tragédias da vida. Outros, aproveitam o dia generoso de sol, para deitar à terra as sementes que são o pão da sua subsistência.
Hoje, neste dia em que a Primavera nos cumprimenta, reaparecendo à boca – de - cena no rodar milenar das quatro estações, a aldeia renasceu como que por magia. Até as carroças no seu gemido lento, puxadas pelo asno paciente, arrastam o seu penoso caminhar por esses campos floridos e sem fim.
É uma miscelânea de sons, de aromas e de sentidos, que esvoaçam alegremente sobre os telhados singelos da aldeia perdida nos confins deste interior profundo.
É a valsa da Primavera.
Quito Pereira
A valsa da Primavera que primaverilmente nos "tocas" e "danças" fez com que me sentisse dançando com com esses idosos pelos trigais de Salgueiro do Campo,encantada com o sol,com as flores silvestres e na terra arada caiu-mos,exaustos de alegria abraçando-nos uns aos outros....
ResponderEliminarQue momento de fantasia me proporcionaste com um texto tão realista!!!
São lindos os teus textos. À medida que os leio sinto uma alegria enorme, uma calma, uma paz, um sentir inexplicável.Queria saber escrever como tu para, com escrita tão bela como a tua, agradecer os momentos mágicos que me dás ao ler-te
ResponderEliminarRetalhos do dia a dia de uma aldeia que o Quito aqui nos traz na sua maneira única e inconfundível de nos transportar para Salgueiro do Campo pequeno lugar que ele há muito já guarda no coração!
ResponderEliminarE só assim poderia ser, porque a doçura e romantismo com que transcreves o que te rodeia e o que te vai na alma, mostra bem o elo forte que já te prende a essa gente!!!!
Se foi a Primavera que com a sua luz e os seus cheiros te pôs nesse estado bucólico, enternecido...então que seja bem vinda e que os raios de sol que trouxer com ela, te aqueçam a alma e o coração para poderes continuar a deliciar-me com a tua escrita!
Beijinho Quito, obrigada!
TERESA LOUSADA
Foi com a calma nesta hora da noite que já vai adiantada que li mais um texto em que o Quito se despede do inverno e saúda a entrada na primavera.
ResponderEliminarÉ uma mudança no tempo que até virou soalheiro nesta passagem de testemunho.
Realmente, diga-se de passagem, que o inverno também é bem necessário...mas por vezes também abusa, como foi o caso deste último!Pronto mas está tudo regadinho, as nascentes rebentaram, a primavera aí está e dá jus ao que eu cantava nas danças folclóricas:
Já chove, já quer chover
já correm os regadinhos
Já os campos estão alegres
Ai,já cantam os passarinhos
Os utentes do lar da terceira idade, o Mário o Joaquim e os irmãos António e Jpão(provavelmente conhece-los todos pelo nome), já podem passear e apanhar um pouco de sol!
Enfim!
Viva a Primavera seja em Salgueiro do Campo, seja aqui no Bairro!
Não choveu e como sou da terceira idade, fui passear até à Baixa e...já vi alguns pronúncios de um tempo mais quente...
Em tempo: o inverno arrependeu-se e voltou...
EliminarSem dúvidas que este é mais um belo texto do Quito, que uma pessoa vai lendo para não perder o seu conteúdo mas vai pedindo que não acabe. Do rasto do inverno, a descrição do conjunto que permite descrever a tua apreciação que vai desde a terra, passando pela água, pedra como o granito, as núvens e o sol, tudo num equilíbrio de forças e bem estar. A vivência relegiosa das zonas interiores e a forma como introduziste o Outono da vida humana na Primavera. Os sons, os aromas, enfim...: só lido.
ResponderEliminarUm abraço.
Lembram-se do padre Avelino?
ResponderEliminarPois eu lembro-me porque o Quito já antes nos tinha feito dele uma descrição de que jamais me esqueci:
"O povo da região gosta dele. Porque o Avelino – o senhor padre Avelino - é boa pessoa, no seu porte baixo e atarracado." - In O Grito e o Silêncio, de Quito Pereira.
Tal como agora nos descreve o Mário, o Joaquim, o António e o seu irmão João.
Outras figuras que reterei na minha memória, tão nitidas são!
Este é o segredo dos escritores como o Quito. Marcarem como quem marca com ferro em brasa as imagens que fotografam com letras.
Deixando-as indeléveis na nossa mente...
Quito, vai-te preparando para umas reflexões similares, mas mais urbanas,quando regressares ao nosso burgo e observares o comportamento de idosos conhecidos de todos nós... Já estarei também a valsear!
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ResponderEliminarÉ a Primavera suada pelas agruras de vidas que já passaram o seu Outono.
A sensibilidade do Quito, a sua capacidade de observação e de descrição traz-nos, mais uma vez, um quadro vivo.
Parabéns, Quito