quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Carta Aberta aos Caloiros

Carta Aberta aos Caloiros

E como estamos no início do ano lectivo, deixo aqui uma Carta Aberta aos Caloiros. Caros Caloiros: Certamente sabem que, na praxe coimbrã, mãe de todas as praxes, o caloiro é tradicionalmente “o animal”. Como também julgo que sabem, segundo a lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, no nosso país os animais passaram a estar protegidos de maus tratos, o que abrange qualquer tipo de coacção física: dor, sofrimento, privação de alimentos, abandono, mutilação ou morte. A pena mais pesada pode ir até aos dois anos de prisão efectiva. Referindo-se a pessoas, legalmente protegidas desde logo pelos direitos humanos universalmente aceites, o conceito de maus tratos inclui obviamente também qualquer tipo de coerção ou violência psicológica. O que me leva a pensar: Que fariam se um professor vos mandasse rastejar no chão ? De certeza que não obedeciam, e o professor teria problemas, e apanharia com razão um processo em cima. No entanto, como se viu em imagens passadas na TV, submeter-se à praxe pode significar rastejar no chão, e a muito mais do que isso. Milhares de espectadores viram, como eu, imagens gravadas no Pátio da Universidade, em Coimbra, em que um grande grupo de caloiros, cercado por um grupo igualmente grande de não caloiros, recebeu ordens para se ajoelhar no chão, inclinar-se para a frente e baixar as calças. Dispenso-me de descrever a cena de humilhação e sadismo que aconteceu a seguir, e ficou registada nas imagens. No entanto, para muitos de vocês, aparentemente nada é violento nem excessivo. A praxe é considerada intocável, acima dos professores, reitores, universidades, instituições e até da lei, que assegura aos cidadãos direitos, liberdades e garantias, que impedem qualquer tipo de violência e humilhação. No entanto, estranhamente, para vocês a praxe parece ter um poder incontestável - embora ela não tenha qualquer validade jurídica, nem sequer obedeça a princípios racionais. Para começar, os Duxes são os que andam na Universidade há mais tempo, somando portanto mais matrículas. Para isso basta ter dinheiro para pagar propinas (embora eu deixe a pergunta se, em todos os casos, as propinas deles são realmente pagas, e por quem). Uma vez que há numerus clausus, deixo também a pergunta se eles não tiram o lugar a outros estudantes, com mais capacidade de tirar um curso. Outra pergunta elementar me ocorre: É possível não haver prazo limite para frequentar a universidade? Esse tempo pode ser ilimitado, quando o ensino, como tudo o mais, depende dos impostos que pagamos? Pelo menos até ao ano passado, havia um dux que há 24 anos que somava matrículas, proeza heróica que gloriosamente o mantinha no cargo. E também pergunto o que se passa no caso de todos os outros duxes, porque o erário público é isso mesmo,um assunto público. Mas o que mais me agride é que, na prática, vocês passaram a estar muito menos protegidos do que os animais, em sentido próprio. E a responsabilidade, em último caso, é vossa, porque se calam e consentem, rejeitando ou ignorando a lei em que vivem. Em situações de perigo ou de desastre, se as praxes descambarem em tragédia, não se espantem se as instituições não funcionarem, se universidades, reitores, professores, polícia, tribunais, vos defenderem mal, já que vocês são os primeiros a não querer ser defendidos: consideram que ninguém tem de saber nem de interferir no que acontece nas praxes, juram a pés juntos que são irrelevantes brincadeiras (o que só algumas vezes é verdade, mas está muito longe de ser sempre), sublinham que são adultos, como se esse facto vos permitisse fugir à lei que se aplica a toda a gente. Sendo essa a vossa posição, a opinião pública pouco mais pode fazer do que deixar-vos sós. Fica no entanto um alerta: em caso de tudo correr mal, dir-se-á que vocês lá estavam por vontade própria, e que, se lá estavam, não estivessem. Mas dói-me pensar que vocês pretendem ser descartados desta forma: Se querem ser “animais”, com ou sem aspas, então sejam. Boa sorte. Qualquer cão ou gato está muito mais protegido que vocês.

10 comentários:

  1. Numa linguagem tão simples tal como a Teolinda é ,assim escreve sobre a praxe......
    E estou completamente de acordo com ela.

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  2. Excelente sermao!!
    Um Dux com 24 anos de matriculas? Nos sempre fomos uns grandes castiços!!!!
    Isto faz-me lembrar um amigo dos meus Pais que, finalmente, apos x anos de estudos de Medecina, chegou à formatura!!!Na famosa CASA UMBELA, o estabelecimento do meu Pai, deu uma consulta por telefone ao meu irmao, que estava em casa deitado com muita tosse terrivel!!!!!COIMBRA dos doutoures!!!

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    1. Esse já faleceu nos USA, casou com uma irmã do meu primeiro sogro!!!.., o sr dr. BARRIGAS DE CARVALHO que portanto foi meu tio por casamento!!!
      Fernando AZENHA

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  3. Oportuna reflexão sobre tema tão actual e que devia merecer mais atenção de todos os estudantes envolvidos, sejam caloiros ou "doutores"!

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  4. Ontem, passei por aqui de raspão, e só agora li o texto. Belo texto. Não se pode, a coberto de ser dux e seus apoiantes, ou a coberto de uma capa e batina que pode ser a cultura do nada, exorbitar-se de arrogância e "competências" não permitidas legalmente. A praxe, não pode ser refúgio daqueles que, praticando o pior do seu intimo, vão vexando e humilhando os outros, na maior das impunidades. Nem os caloiros praticarem a cultura do silêncio. Há sempre uma hora para dizer BASTA !!!

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    1. Tens razão mas não deixou de ter de fugir ás trupes ziguezaguiando na Pr da República em direcção aos troleis depois de sair(18h00) dos treinos das camadas jovens da AAC. Que ricas pernas eu tinha!!!
      Fernando AZENHA

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  5. Pelo comentário da linda Olinda se percebe que a autora desta carta aberta é a Dona Teolinda. A cara da Senhora não me é de todo estranha mas parecia-me útil mais completa identificação.
    De qualquer forma, aqui lhe deixo os meus parabéns pelo excelente testemunho que aqui nos traz.
    Penso que ninguém, de bom senso, poderá deixar de estar de acordo consigo e a forma calma e ponderada como expõe o seu ponto de vista sobre um tema que, só por si, tem gerado as mais exaltadas discussões, revela uma excelente arte de comunicação.
    Quanto ao tema em si, penso que qualquer palavra mais será uma palavra a mais.
    Obrigado, Olinda, por teres publicado.

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  6. Grandes verdades que esta senhora nos diz aqui ! fantástico texto ! gostei muito. Os meus parabéns.

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