segunda-feira, 13 de outubro de 2014

NAQUELA NOITE ...




Um aroma Divinal ...

Escura e fria era a noite. O inverno no seu esplendor. Em movimento lento, o velho carro balançava ao sabor das curvas dos caminhos. Tudo era silêncio. Apenas a fraca visibilidade dos faróis, dava alguma vida aos recantos escuros e inertes do povoado. 

Nada nem ninguém. Apenas nesta ou naquela casa modesta, uma luz acesa era pronúncio de gente.

Noite agreste. Muito agreste. Uma chuva miudinha salpica o vidro do pequeno automóvel e as escovas limpa-vidros, gastas pelo tempo, não me permitem uma visão clara do percurso.

Sozinho, vou convivendo com a solidão. O meu pensamento vagueia por longe, como querendo soltar-se das amarras da minha desesperança.

Lentamente, muito lentamente, chego ao meu destino. Uma cortina negra de xisto e granito, aperta-me por aquela garganta estreita. 

Guio com cuidado. Procuro uma luz que me ilumine, que me leve a um porto de bonança.

Paro no adro da igreja. Aconchego a gola do casaco e saio para a rua. É um labirinto de vielas, iluminadas por candeeiros mortiços. A chuva persistente inunda-me o rosto e ali, ali naquela casa, está o meu destino.

Na porta, do lado de fora, a chave. Entra quem quiser. Entra quem vier por bem. Entrei.

A sala é escura e, da cozinha rústica, vem um clarão desmaiado. À lareira, uma idosa, de rosto sereno e enrugado. Absorta nos seus pensamentos, aquecendo os pés na lareira, onde pontificava uma panela de ferro preto, a mulher sorvia um caldo de uma malga gasta pelo tempo e pelo uso. Da panela, subia um aroma prodigioso e Divino de uma sopa substancial, feita com couves e feijão.

Depois olhou-me e não ficou surpreendida. Conhecia-me e, do alto dos seus quase noventa anos, sabia que eu ia levar o remédio para as suas dores e padecimentos.

Por momentos, fixou-se na minha face molhada. Percebeu, sem esforço, que eu estava gelado do corpo e da alma. Então, em gestos calmos como que cumpre um ritual, foi ao velho louceiro e procurou uma velha malga. Foi à panela e retirou uma porção de sopa. E, em silêncio, estendeu-me o caldo fumegante.

Não tive coragem de dizer que não. Nem de negar a cortesia, como mandam as regras da boa educação.

Sentei-me então junto dela, num tropêço de cortiça, com a malga da sopa entre os joelhos. Debruçados, saboreámos lado a lado, aquele caldo de afetos.

Depois, parti. Reconfortado de corpo e da alma. Agora, a tempestade rugia. Pinheiros e oliveiras, dobravam-se de dor à minha passagem, dançando ao sabor do vento. 

Porém, a noite espessa, tinha agora um rosto mais brando. Tão brando, como o sorriso da aldeã, com quem tinha compartilhado um momento mágico de amizade e solidariedade. Os sentimentos simples da gente simples.

Naquela noite, de regresso ao meu cais de abrigo, no labirinto dos meus pensamentos, descobri que tinha feito uma trégua breve com a solidão.

Quito Pereira            

18 comentários:

  1. Por vezes, a simplicidade dos gestos das pessoas simples, que tem nesses gestos a ingenuidade e a pureza de sentimentos, é capaz de transformar o coração e a alma das pessoas; quiçá cada uma tocasse desse jeito multidões... a PAZ viria, numa velocidade da tempestade que rugia por teus caminhos, Quito.
    Eu adoro muito esses "afagos" por onde ando... olhares inocentes, gestos simples, mas de tamanha sabedoria, que não caberia no Curriculum de muitos doutores com diploma de "estupidez" e "arrogância".
    Eu pude rever a cena... em cada descrição, porque sei bem o que seja isso.

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  2. Quito

    Agarras num assunto e fazes um texto que é uma maravilha mas o "caldo de afetos" não me vai esquecer tão cedo. Tens um poder de expressão extraordinário que nos obriga a acompanhar-te até ao fim. Aqui também vêm trazer os medicamentos a casa à "idade de oiro" mas... não há esse quentinho.

    Anteontem, num comentário à minha postagem " Quando a concorrência é feroz ", em certa parte escreveste: "Depois ainda há a caridade de quem se promova na sociedade, à custa da desgraça dos outros, porque é chic e dá estatuto."
    Já há muito tempo que tinha uma certa ideia da caridade a nível mundial a que pomposamente chamam ajuda humanitária porque ouvi na tv, que 50% do apoio da ONU não chega ao destino e vai parar às mãos dos chefes de guerra.Só que se não enviarem, os necessitados não recebem nada.
    Ontem estive a ver um programa com as presidentes de War Child e dos Médicos sem Fronteiras, pessoas que há muitos anos têm andado em teatros de guerra. Confirmaram que muito das ajudas são roubadas, e que dantes as pessoas iam para ajudar como ainda hoje há mas há muitas pessoas que fazem da ajuda humanitária uma carreira. No caso do Haiti, a epidemia de cólera que sofreram foi a que dizimou mais pessoas desde a última Grande Guerra, quando era previsível, derivada à situação criada pelo terramoto. Do virus Ébola dizem que há razão para se ter uma vacina rápidamente. Como é que se deixa desenvolver um virús como o Ebola que já não é de hoje, quando a ajuda mundial em assitência humanitária é de dezassete vírgula oitocentos biliões de dólares por ano. Pensam que os países deviam fazer como a Noruega: quando certas companhias se aproveitam, cortar-lhes o direito de utilizarem os seus capitais, o que dá um resultadão. Ao menos já há pessoas que começam a falar. Haja esperança.

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  3. Já comi dessas coisas há muitos anos.
    Ainda hoje recordo o calor humano, e o sabor do caldo.
    Tonito.

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  4. O Nobel da literatura foi para Patrick Modiano, um rapazinho da nossa geração que escreve no mesmo estilo. E nem sequer tem a produtividade do Quito. O Lobo Antunes, que está em dificuldades para regressar aos tempos do "Fado Alexandrino", já para não falar da "Explicação dos pássaros" disse com ironia que a Academia Sueca é soberana. Tenho cá para mim que do nosso bairro há do melhor do mundo.

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  5. Iria dizer o melhor texto que li! Mas não é verdade! E a verdade é que é UM dos melhores textos que li!
    É daqueles, que abordando o teu quotidiano nessas terras do interior, nesse teu vai e vem levando o remédio que vai aliviando a dor duma anciã e lhe prolongando a sua existência já para além dos noventa, reforçando a receita com dois dedos de conversa, que alivia a solidão e repartindo a fumeganta e sucolenta sopa de feijão que te aqueceu o estômago e reconfortou a alma dos dois!
    Pelo meio ficaram as excelentes descrições das vielas, com condução prudente, numa noite agreste, o silêncio, a solidão que o xisto e o granito ampliam!
    E os dias vão continuando sempre a dar-nos surpresas.E algumas são dolorosas. Noutro registo também as sinto...e são bem sentidas. Mas escusadas!

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  6. Quito, fica para amanhã. Ainda tenho uma tarefa a cumprir e o médico quer que eu me deite cedo...
    Foi a Linda Olinda que me deu a ideia de aqui deixar este comentário. Andámos sempre a aprender com as mulheres...
    Para já, aquele abraço.

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  7. Li e gostei. Belas descrições, gente simples, afetos...

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  8. Este teu texto não pode ser lido no ritmo normal de uma leitura normal. Este texto tem de ser como que mastigado, para saborear palavra a palavra, ideia a ideia.
    As estórias da aldeia são as que melhor transmites, pela felicidade de transformar a tristeza em breves momentos de alegria e solidariedade humana, pode-se dizer, de amor.
    Pois o que é, se não amor, a tua aceitação do caldo fumegante? Amor pelo próximo que é algo que tens para dar e vender e que é um produto, hoje, muito raro.
    Parabéns, Quito.
    Aquele abraço.

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  9. Esta pérola estaria tão bem no Jornal do Fundão...

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  10. O caldo de couves e feijão, aquece-nos o corpo, mas o caldo de afectos aquece-nos o coração!
    Cada vez mais precisamos do caldo de afectos...

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  11. Jà existe material mais que suficiente para se editar um livro com estas preciosidades!!O que esperam? Que eu và ai arranjar um editor?
    Quito, hoje fui ao campo!A Lorrena, que agora querem juntar do ponto de vista administrativo à Alsàcia e à Champagne. Uma grande aberraçao! Deliciei-me com um coelhinho, alimentado a grao, com um sabôr daqueles que estao inscritos na nossa ADN de miudos! Do tempo em que todos os alimentos eram naturais e nao tinham etiquetas BIO!!!
    Excelente texto! Parabens por me teres levado até à BEIRA ALTA!!!

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  12. A dor o amor e a satisfação, sao palavras que se completam! Obrigada Quito, por todas as palavras deste texto maravilhoso.

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  13. Quito, já enviaste isto ao JF ou tenho que amuar?...

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  14. Não amues, Paulito ! Pega no instrumento e toca um fadinho do nosso Mondego, que isso passa-te ...
    Toma lá um abraço, carais !!!

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