No «JF» de 18 de Setembro, a Crónica de Carlos Esperança é um mimo que não resisto a «roubar com a devida vénia» para partilhar convosco:
Freixinho |
Eu, que não sou deus, nem crente, sinto a necessidade dos mitos e vou procurar nos sítios que agonizam o resto de vida que ali jaz e encontrar no húmus das minhas origens as forças de que careço.
Abalámos muitos dessas terras que eram viveiros de gente e são hoje a antecâmara da morte dos que regressam para ficar.
Já não se discute a água da presa com a sachola nem se guardam alfaias religiosas com a escopeta carregada e a navalha, de ponta e mola, à mão. A fé esvaiu-se, não se mede em decibéis, oferendas ou novenas, nem em quantidade de dias de exposição do Senhor.
Em tempos, quando o estandarte da igreja dormia nas fragas que separavam o Freixinho do Lamegal, a anexa que disputava à sede de freguesia a glória de exibir o seu pendão para proteger as searas, com moços possantes a defenderem a crença e o estandarte, que os costumes mandavam revezar, e que o impulso da fé desrespeitava, eram as procissões que tinham primazia sobre as outras manifestações litúrgicas. Hoje falo do concelho de Pinhel e podia falar do Sabugal, Almeida ou Figueira de Castelo Rodrigo, terras donde trouxe a força o menino que se fez velho.
O meu tio Manuelzinho contava-me coisas de estarrecer quando a fé ainda vicejava nas aldeias e os padres abundavam para a liturgia. Não mais esquecerei a graça com que me contava a procissão do Carvalhal da Atalaia, que correu mal. Os andores, os devotos e a fé não cabiam nos limites do casario. Era preciso percorrer caminhos de terra batida, na peregrinação cuja distância estivesse à altura da piedade dos paroquianos.
Foi num mês de Agosto, ainda não havia francos franceses, suiços e marcos a ostentar a competição dos emigrantes. A procissão saiu do povoado para a ronda tradicional do Senhor dos Passos, com o padre sob o pálio, a resguardar a tonsura e a custódia, com os mordomos aprumados e a população em filas, separada por género e alinhada por escala etária. Rezava-se e cantava-se, alternado com algum latim para fazer sobressair o pároco enquanto os anjinhos eram admoestados, para não falarem, pela catequista que os guardava.
Num desses verões, já a procissão tinha invertido a marcha a caminho da aldeia quando, inopinadamente, se armou uma trovoada que parecia o dilúvio, sem a arca de Noé, para se recolherem nela os bons, enquanto a terra se inundava.
Os mancebos pousaram o Senhor dos Passos, enquanto os andores pequenos seguiram o exemplo, e os guiões foram encostados à árvore mais próxima. O padre, com a custódia, fugiu e manteve a protecção do pálio, com os que empunhavam as varas a esticar o pano, transformado em guarda-chuva colectivo. Os anjinhos, na pressa, perdiam as asas e cada paroquiano procurava uma árvore de copa ampla com a população dispersa pelo campo e a parafernália pia abandonada no caminho.
Já se clamava «milagre!» quando o sol, de repente, substituiu de novo a chuva que se afastou a desgraçar videiras e a tornar inútil a vindima. Os paroquianos lá voltaram ao sítio donde fugiram e, ao chegarem, o horror deixou-os apopléticos.
Com a chuva esboroou-se o Senhor dos Passos que alguns fiéis haviam de julgar sólido, quiçá com músculos e ossos, desfeita a farpela puída pelo tempo, onde o manto refulgia. Do interior saiu a palha que lhe dava forma e uma burra, atraída pelo cheiro, mastigava, com os cascos sobre o manto e a pachorra de quem nasceu sem entendimento para a fé.
Descoroçoados, atiraram pedras ao animal, que insistia em mastigar a palha tantas vezes benzida, com tal sanha que, da multidão, uma mulher implorou, por amor de Deus, que não lhe matassem a burra, enquanto esta se afastava a trote, a mastigar o último naco do Senhor dos Passos.
Neste quarto de século a assinar o JF, tenho lido belas prosas, dos mais variados temas. E até prosa - poesia, partindo de uma fotografia (Pedra Angular). Vou guardando a "Pedra Angular" e de vez em quando, a partir de uma foto, vou também testando a minha capacidade. Fraca capacidade diga-se de passagem, se compararmos com o Nuno Francisco, um mestre na arte da prosa- poesia.
ResponderEliminarJá tinha lido este conto do Carlos Esperança. Reli agora e voltei a rir. Muito bem escrito e com um final hilariante e surpreendente. O burro a mastigar o último naco do Senhor dos Passos, não cabe na cabeça de ninguém. Mas a história não ofende, mesmo aqueles mais arreigados aos Mistérios do Divino.
Trouxeste à estampa, Paulo, algo que vai fazer sorrir os mais carrancudos ...
Abraço
Para me deliciar melhor com a crónica do Carlos Esperança, e na esperança que a São Rosas não me leve a mal, aumentei o tamanho das letras!
ResponderEliminarLi duas vezes, a primeira com a letra pequenina-mas acontecia saltar alguma linha e o texto ficava deturpado- mas com a letra maiorzinha li tudo direitinho e aí sim, a crónica é de arromba, própria do JF! As diversas descrições são o máximo, terminando em beleza com a burra a mastigar o último naco do Senhor dos Passos!
Deve ser por estas e por outras (O Quito baldou-se...), que vós dois continuais a ser fiéis ao JF!
Continuai e não "matem a burra"!
Por mim não foi preciso a chuva para eu perder as asas quando andei nessas andanças das procissões,mas essa das entranhas do Santo não conhecia.
ResponderEliminarGostei.
Tonito.
Um texto muito bem escrito e que termina com a cómica estória do gazo-palha, que não deixou ir os seus pergaminhos por dentes alheios. A parte interessante é chegarmos ao fim e pensarmos no riso que cada um acaba de fazer. Boa disposição.
ResponderEliminarUma delícia, esta aventura. E há tantas histórias reais engraçadas como esta...
ResponderEliminarCoitado, um Senhor dos Passos, desfilando na procissão como se fora um espantalho de barriga de palha!
ResponderEliminarA burra foi esperta, mas sujeitou-me à pena de morte...
Bom momento de leitura!
Um mimo de prosa! Uma cena caricata, muitíssimo bem escrita.
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