quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A NOITE EM QUE CALARAM O FADO ...


Era o irmão que eu não tive ... 
São seis horas da manhã e não consigo dormir. Há uma luz coada e pálida, que entra pela frincha da janela, neste pardo amanhecer. Há um silêncio misterioso que me envolve e me trespassa. Apenas o “tic-tac” do relógio, em cima da mesa – de – cabeceira, acompanha este meu momento de solidão. Maldito relógio. Maldito “tic-tac”, que me atenta contra a vida. Cada segundo a mais na escala do Tempo, é um segundo a menos na minha esforçada existência. Sinto-me só. Estou só. O meu coração, partiu. Não está comigo. Saiu a galope pelas estepes russas, onde um amigo, um irmão, agoniza na cama de um hospital. Sinto-me exausto de cansaço, das noites mal dormidas e do telemóvel que promovi a meu inimigo. Cada vez que toca, é um sobressalto. E eu, afundado em desespero, fecho os olhos e recordo:

Era uma noite morna como as outras noites, naquele mês de Primavera. Eu, o Henrique, a Ana e a São, passeávamos pela pequena avenida da pacata cidade de Miranda do Douro. E ali, na esplanada dos Bombeiros Voluntários, nos sentámos. Muita gente ocupava as cadeiras e era um corre-corre do bombeiro de serviço, a trazer sumos e cervejas para as mesas. Afinal, aquela era a forma da Instituição angariar mais uns cobres, para os seus exauridos cofres. Foi então que o Henrique Sousa, que fazia da viola a sua segunda mulher, começou a dedilhar e a cantar uns fados de Coimbra. Na esplanada fez-se silêncio e, como que por magia, as janelas das casas em frente, até ali fechadas e às escuras, começaram a abrir as portadas devagar, como que envergonhadas, com gente que, debruçada sobre a avenida, ouvia o trinar da viola e voz potente do cantador. Depois, bem, depois apareceu um carro da Guarda Republicana. Vagarosamente, dois agentes saíram do “Fiat Tempera” e ditaram a sentença, de uma forma educada: “O senhor queira fazer o favor de não fazer barulho, pelo adiantado da hora”. O barulho era o fado. O Henrique, exemplar cidadão, apressou-se a meter a viola no estojo. Foi então que um homem, que estava na esplanada repleta de veraneantes, alto, de cabelo branco e aspecto imponente se levantou e, dirigindo-se ao cantador, disse -lhe na presença dos zelosos guardas: “ como mirandês que sou, sinto-me envergonhado. Peço-lhe, em meu nome e em nome da cidade, que aceite as minhas e nossas desculpas, pela atitude absolutamente lamentável destes senhores”.

Então partimos. A esplanada esvaziou e as portadas das janelas, até ali escancaradas de par em par, encerraram de mansinho.


Foi há dias, em Penela. Sentado ao meu lado na mesa, trocámos taças e tilintámos copos. Brindámos ao futuro num copo de vinho.

Mas hoje, às oito da manhã, o pano negro da ribalta, fechou-se. A voz potente do Henrique Sousa, pai, marido, irmão e avô extremoso, calou-se para todo o sempre.
Perdi um amigo.  Morreu o cantor.
Quito Pereira            

15 comentários:

  1. Perdemos um Amigo, Quito! Mas irá ficar sempre na nossa memória e jamais esqueceremos quando ele nos brindava com a sua voz e os acordes da sua viola!
    A ti, Quito, devemos e agradecemos que nos tenhas apresentado tão precioso Amigo!

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  2. Desapareceu do nosso convívio um MENINO BOM.

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  3. Não é fácil receber uma notícias destas!
    Desde pelo menos 2009 que tivemos a sorte da São e do Quito nos apresentarem o Henrique e a Ana Maria
    Primeiro na Louçainha e depois no 1º aniversário do Encontro de Gerações, em Penela, tivemos o prazer da sua companhia!O Henrique deliciava-nos com a sua bela e potente voz,tocando e cantando sobretudo Zeca Afonso! A Ana Maria repartia com o Henrique o entretimento destes nossos convívios!
    Quem não o vai recordar naquela magifica jornada em sua casa em Santo Tirso!
    Inesquecivel!
    Agora o Henrique partiu! Mas temos um arquivo recheado de belos momentos que passamos juntos!
    Tempos muito dificeis para a Ana Maria, filhos e netos. A dor é muito grande!
    Queremos partilhar um pouco dessa dor.

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  4. É verdade que raramente aqui venho. Por desinteresse...por falta de tempo... admito que por ambas as razões

    Hoje, porám, por estranha razão que suponho vir de muito alto, abri este blogue e li incrédula a notícia que agora me atormenta.

    Por ele que conheci... por ti que sei que sofres... e pelos trinados maviosos que ouvi num profundo encantamento numa longínqua tarde junto ao rio, em uníssono com o meu, também, querido e saudoso Mário, compreendo e associo-me ao teu pesar

    Um grande beijo, QUITO

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  5. Associo ao Henrique três momentos que me marcaram.
    A conversa que com ele tive na Louçainha depois de o ouvir cantar isolado fazendo ecoar a sua potente voz pelos montes circundantes.
    Num restaurante em Coimbra quando nos brindou com uma belissima balada que criou para homenagear as gentes do Bairro.
    Na sua casa em Santo Tirso em que, juntamente com a Ana e muitos familiares seus, nos recebeu com a lanheza de trato própria das gentes do Norte.
    Em todos eles assobrei-me com a sua simpatia e a bondade do seu caracter.

    A esses três momentos junto este em que a magistral pena do Quito nos deixa ainda mais emocionados.

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  6. A elegia da profunda amizade que vos unia!
    A dor é enorme,Quito e São...e na dor estamos unidos pelo Henrique que perdemos.
    Recordado será com alegria e bem-estar que nos transmitia...
    A Ana precisa do amor da família e da nossa amizade neste momento tão doloroso.
    Beijo,Quito e São

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  7. Perdoem-me...mas como amiga do Henrique e da Ana não pude deixar de me comover com tudo o que acabei de ler. Não perdemos um amigo...ele mudou de lugar! Saiu sim do nosso convívio terreno...vamos vê-lo com os olhos da alma. Vai custar um bocado a habituar-nos a esta ideia, mas teremos que o fazer. Pela parte que me toca, sempre lhe vou recordar o sorriso e a sua maviosa voz...Conhecê-lo desde miúda foi para mim um grande privilégio e mantenho comigo a esperança de que, sempre que feche os olhos do rosto...os olhos e ouvidos da alma se enterneçam a ouvi-lo cantar! Fomos muito felizes por o ter conhecido!

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  8. Foi um pouco de ti; Quito , que partiu. Atrevo-me a dizer que foi também um pouco de nós.
    O Henrique era daquelas pessoas que ao passarem, nem que seja por breves momentos, o que não era o caso, não mais o esqueceremos.
    Não mais te esqueceremos, Henrique.
    O que escreveste foi o sentir duma alma a sangrar. Compreendemos-te, Quito. Partilhamos contigo um abraço de conforto.

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  9. Após o desabafo do Quito, vindo do fundo da alma e suspenso nos sentimentos, a emoção tolhe-me, as palavras esvaem-se e só me resta um silêncio de respeito introspeção!

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  10. E eu apenas mando ao Quito e à São, um enorme beijo. Obrigada por terem partilhado esse grande Amigo connosco !

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  11. Não vamos esquecer o Henrique, o seu cantar, a sua voz. Compreendo, Quito e São,a dor que sentem com a perda deste vosso, nosso Amigo. Espero que a nossa amizade seja um apoio para a Ana e familia

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  12. As lágrimas correm-me cara abaixo ...

    Lembro-me deste episódio como se fosse hoje. E tantos outros houve ...

    Ainda havia tanto para viver ...

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  13. Um irmão que escolheste para ti.
    Um forte abraço, Quito, sabemos quanto sofres com o desaparecimento físico deste grande amigo e partilhamos a tua dor da mesma forma como tu partilhaste o teu irmão connosco.

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  14. Meus queridos Quito e São, sei quão dolorosos são os momentos que enlutam a vossa vida e o vosso coração! Não me quero alongar,quero simplesmente dizer-vos que estou convosco no meu pensamento e desejar-vos que as boas recordações deste querido Amigo que tão cedo nos deixou, vos tragam força, consolo e paz.
    Beijo grande de muita amizade!

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  15. Um beijo para vocês, São e Quito.
    Para a Ana e restante família do Henrique os meus sentidos pêsames.

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