CONTOS
da
Daisy
Lá em
baixo, é o rio.
O lume
crepita entre os toros de madeira, na lareira de pedra.
Um dos olhos do “Mondego” crava-se em mim, observador,
enquanto o outro se conserva num dormir-acordado, num deixa-correr-que há- alguém-que- vela.
O
gira-discos berra, no quarto ao lado e os miúdos pulam atrás daa bola…
A capela
de Stº Antão continua a clamar por se ver tão só, apesar de lhe terem
construído mesmo juntinho, a estrada florestal que por entre os pinheiros e
pela qual os automóveis se recusam a passar…
E
enquanto a chama regurgita na sua alegria de viver, a chuva, ali fora, cai,
impiedosa e fria. E, lá em baixo, é o rio…
O Sol de
Verão foi-se embora há muito. A água boa da presa já acariciou o meu corpo nos
dias quentes que desapareceram.
- A água
do rio está sempre muito fria…
É
mentira. É temperatura de gente, é temperatura do corpo. É como algo vivo que
brinca connosco, que afaga, terno. O primeiro contacto custa sempre: como quase
tudo o que dá prazer, começa sempre pela dor. Mas é um custar-que-não-custa, um
contratempo que se suporta com a ideia do que vem depois.
A chuva
parou. Agora é o ping-ping monocórdico dos beirais.
O gira-discos calou-se também.
- Ana,
vamos jogar lá para fora…
- Está a
chover. Não deixo. Vão-se constipar…
- Já não
tá.
A Ana
velha, a Ana gorda, a boa Ana-dos-meninos-dos-outros, levanta-se, pousa a meia
enfiada nas agulhas em cima do banco comprido, de madeira, e espreita pela
janela. Junto a mim, o cheiro dela, a fumo, e os seus olhos cansados de viver.
Cansados de viver…ou de não viver?
- Ainda
pinga…
- São as
beiras…
-
Vistam, então, a outra camisola…
Não está
frio. Ana. Lá fora é que se vive. Aqui, dorme-se quase tão profundamente como
no sono eterno.
Lá em baixo, é o rio. E eu aqui, a tentar
não dormir. E o rio a chamar, a chamar, como, as sereias ao aventuroso Ulisses…
- Para
onde é a ida?
Fecho de
novo a porta, e fico-me a olhar, séria, para a cara redonda e enrugada que
encima aquele corpanzil de compridas e rodadas saias.
Lá em
baixo, é o rio, Ana, com todos os heróis e príncipes encantados das histórias
que tu me contavas e que eu afoguei. Lá em baixo, há o doce sussurrar dos
amieiros e o som monótono da queda de água; há o velho moinho-de-água,
abandonado…
- Vou lá a baixo, Ana…ao correio!
- Vê lá
se te constipas, menina…
É claro
que me vou constipar. Tu adivinhas parte da verdade, Ana, só parte…
Transposta a barreira da porta, uma lufada de ar fresco percorreu-me o
corpo. As escadas voaram debaixo dos meus pés. Era a preparação para a
satisfação de um desejo intenso. Era como uma onda magnética que captava todos
os meus sentidos.
Atrás de
mim, o “Mondego”, de orelha fita, saltitante.
Quem
disse que a água do rio é sempre fria? Sinto o acariciar quente nas costas nuas
do meu corpo a boiar.
Cá em
baixo, é o rio!
19 de Novembro de 1970
ResponderEliminarÉ lapidar esta frase:
"O primeiro contacto custa sempre: como quase tudo o que dá prazer, começa sempre pela dor. Mas é um custar-que-não-custa, um contratempo que se suporta com a ideia do que vem depois."
Se para chegarmos ao que vem depois e que nos seduz, o caminho estivesse aplainado e sem escolhos, não obteriamos a satisfação de lá chegar.
Deixaremos de viver quando desistirmos de vencer os obstáculos para atingirmos os sonhos.
Já alguém disse, com razão, que é surpreendente a escrita da Daisy. De facto, se atentarmos que este texto foi escrito há mais de quatro décadas, gozava a autora dos seus verdes anos, fica o leitor perplexo pela maturidade da escrita.
ResponderEliminarDe novo o rio. De novo, uma corrente mansa de um prosar muito próprio, que desagua numa foz de afectos.
Gostei Daisy. Gosto sempre. Eu sei, que uma imagem, vale mais que mil palavras. Que uma fotografia é, por vezes e quase sempre, muito mais apelativa que um texto. Alguns de nós, porém, vamos insistindo em construir imagens por palavras. E esta iniciativa do Fernando Rafael de, de novo, trazer os teus textos para a ribalta, são uma mais valia para este espaço de amigos e para quem os lê.
Por isso, estou grato ao Fernando Rafael. Por isso te estou grato, Daisy.
Tenho sempre um enorme prazer em postar os contos da Daisy.
ResponderEliminarSei que surgem comentários que também são um prazer ler, porque merecidos!
Escrita com imagem real.
ResponderEliminarGosto.
A escrita da Daisy irradia imagens simbólica/reais...
ResponderEliminarA emoção da vida das personagens contagia com tal intensidade que me sinto uma delas.
E a garra das palavras ficam cá bem dentro...
Daisy,és mesmo tu com a tua doçura a mostrar a realidade dura...Mas icentivando a ultrapassar as agruras com emoção e determinação.
Parabéns!
ResponderEliminarOs contos da Daisy fascinam-me.
Uns mais do que outros? Talvez. Mas não sei o que é o mais sem o menos e, portanto, digo não!
Neste, fascina-me o "lá" e o "cá". O objectivo a atingir e o sonho alcançado.
Com o "Mondego" por cúmplice e testemunha, a teia vai-se tecendo da forma doce e límpida que só a Daisy sabe tecer.
Lindo!
Obrigado, um beijinho para ti, querida amiga.
Daisy! Que delicia a tua subtilidade literària!Gostamos imenso de te ler!E porque nao pôr uma fotozinha do maior rio Português?
ResponderEliminarTu sabes muito bem que, estando cà longe, os teus textos provocam certas emoçoes!!Beijinhos e um grande abraço para o Alfredo!