João Pires aconchegou a gola do casaco, naquela tarde fria de
Janeiro. Sentado num banco da Estação de Santa Apolónia, olhava a chuva
miudinha e enervante que caía sobre Lisboa. No seu olhar errante, mirava as
carruagens na gare, enquanto um altifalante roufenho, debitava informações
sobre a chegada e partida dos comboios. Depois, fixava-se nos carris a perder
de vista, até à curva onde o olhar lhe consentia. Eram os carris do Destino. Estava
de partida para Paris, agora que o país que o vira nascer, o empurrava para a
fronteira. Na Beira - Baixa, deixou a mãe viúva, encostada à soleira da porta,
limpando as lágrimas ao avental negro que era o espelho da sua alma.
Abraçaram-se em silêncio e João partiu, levando na mala em partes iguais, um
quinhão de esperança e outro de desespero.
Ao apito estridente do chefe – da - estação, o comboio partiu,
com um solavanco. Depois, foram dois dias de viagem, com transbordos e
paisagens diversas. Mas João ia absorto nos seus pensamentos, recordando a família
e a aldeia que deixara para trás, o berço da sua infância. No bolso, ciosamente
guardado, o pecúlio que a mãe lhe dera e tirara do fundo da arca onde guardava
o centeio, fruto de muita poupança. Também uma carta – de - chamada, que lhe
compraria a força dos braços, numa qualquer obra de Paris.
Tudo correu bem. Apesar de dividir a camarata com três
companheiros, João Pires deixou-se embalar ao ritmo da grande cidade. À tarde,
depois do trabalho, percorria com os amigos as ruas da capital, ao som dos
acordeons que despontavam em cada rua e em cada viela. Era o perfume francês,
que lhe embriagava a alma.
Num Sábado, pleno de sol, mais afoito e conhecedor dos
segredos da grande metrópole, João saiu sozinho à conquista de Paris. Novo e
bem - parecido, João percorreu os Campos Elísios, em direcção ao Arco do
Triunfo. A correria dos automóveis, o movimento dos passantes, o clamor da
cidade, tudo era uma nova realidade a que se ia acostumando.
Até que, numa pequena esplanada se sentou. Precisava de um café retemperador. Foi então, que uma rapariga se acercou dele. Era empregada do pequeno estabelecimento e a barreira da língua, que poderia ser um entrave ao diálogo, mais não foi que a troca de uma gargalhada. Riram. Riram muito. Depois, mais sérios, olharam-se nos olhos e Nicole apressou-se a trazer a bebida requerida. João ficou ali, sentado, a sorver o café em pequenos tragos e a observar todos os movimentos da bela francesa de olhos grandes e cabelo loiro. E ela, de faces ligeiramente roborizadas, escondia que naquele momento o seu coração batia forte. Decididamente, juntara-se gasolina à fogueira, ao som arrebatador de um entusiasmante tango em Paris.
Nessa noite, João dormiu mal. E, no emprego, trabalhava
maquinalmente, fazendo contas aos dias que faltavam para Sábado e de novo
encontrar Nicole, no simpático bar de uma esquina da cidade. Durante meses, foi
assim. Mais conhecedor da língua, João esperava que ela saísse do trabalho e
ela, um dia, confidenciou-lhe que morava numa mansarda, numa rua próxima dos
Campos Elísios. João acompanhou-a até lá.
Subiram a escada escura, até à porta da habitação. Depois beijaram-se. E ele, fez
menção de entrar. Ela, porém, suave e delicadamente, empurrou-o com uma mão no
peito, impedindo-lhe a passagem e, devagar, fechou a porta. João ficou ali,
parado e sozinho, a esbracejar em ondas de desespero. Depois partiu, para junto
dos companheiros, trazendo na mente a ideia que os dias de férias a passar em
Portugal, ficariam para outra ocasião. Seriam passadas com Nicole. Iria
propor-lhe que ela também pedisse dispensa na mesma altura, para voarem nas
asas da paixão. Se assim o pensou, melhor o fez. E ela, louca de amor por ele,
concordou.
Foi num dia de Setembro, que, de mãos dadas, se passearam pelos jardins do “Trocadero”, mesmo junto à Torre Eiffel. As férias estavam no fim e João preparava-se para regressar ao trabalho. Para trás, ficavam as caminhadas nas margens do Sena e as noites passadas na mansarda, naquele ninho de amantes. Ali, em momentos escaldantes e sôfregos, trocavam de alma, trocavam de corpo e trocavam de beijos ardentes. Antes, ao som do gira – discos, dançavam o tango, ao ritmo da voz temperada e envolvente de Carlos Gardel.
Numa tarde cinzenta de Outubro, João Pires foi confrontado
com o destino. Um pé mal colocado, o desequilibrar de um andaime e o estatelar-
se desamparado na calçada. Correram os companheiros, aflitos, em sua ajuda, mas
João não dava sinal de vida. Rapidamente, foi levado para um hospital de Paris.
Em coma, permaneceu vários dias. Até que acordou. Porém, o seu estado de saúde
era grave e a sua recuperação muito lenta. Por vários meses, permaneceu internado.
Mas, num dia de Abril, já recomposto mas ainda débil, João regressou ao
estrondo da cidade. Porém, a rota dos seus pontos – cardeais, apenas lhe
lembrava um destino: o bar de Nicole. Ainda meio trôpego e magro, João partiu
na procura da sua amada. No estabelecimento entrou, mas não viu Nicole. Do lado
de lá do balcão, em silêncio, Pierre, o dono do pequeno bar, olhava-o, num
misto de surpresa e de compaixão. Então, João sentou-se e perguntou por ela.
Pierre olhou-o, taciturno, e, de uma gaveta, retirou um pequeno envelope
fechado, que, sem explicações entregou a João. Com um ar grave e as mãos
trémulas, João abriu o envelope que continha um pequeno bilhete e leu:
João
Não estou certa que leias estas linhas. Nunca mais voltaste e
desesperei de esperar por ti. É estranho que neste tempo que passámos juntos,
nunca me ter preocupado em saber onde moravas ou o que fazias. De saber tão
pouco de ti. Foi pecado meu. Restou-me esperar. Penso, agora, que tudo não
passou de uma fugaz ilusão e que tu rumaste a outras paragens ou, talvez, a
outra mansarda. Já não estou em Paris. Parti para Itália, com Ângelo. Apesar da
diferença de idades, decidi viver com este italiano cortês, com quem me sinto
segura e a tua ausência fez-me ter a certeza que tudo terminou entre nós.
Deixei a minha casa e o café do Pierre, onde não tinha futuro. Tal como tu, que
deixaste do teu país, também eu atravessei a fronteira, na procura de uma vida
melhor. Gosto do Ângelo, mas apenas gosto, porque é amável e leal para comigo. Mas
foi por ti que um dia me apaixonei e guardarei para sempre a recordação dos
momentos felizes que contigo vivi.
Sempre tua
Nicole
Por minutos, João ficou de olhos fixos no chão, meditabundo.
Pierre, varria o chão do bar, num mutismo comprometido. Então, levantou-se com
dificuldade, apertou a mão a Jean Pierre e partiu.
Por Paris deambulou, até que a noite o cobriu com a sua capa
de escuridão. Sentado num lugar isolado, nas margens do Sena, a carta
amarfanhada entre os dedos, João escutava o rio, com um olhar ausente. No seu
cérebro, em turbilhão, lembrava o rosto da bela Nicole. Também a penumbra da
velha mansarda, os tangos dançados no auge da paixão e a voz inesquecível de
Carlos Gardel. Com a cabeça entre as mãos, no zénite do desespero, deu um grito
e atirou-se ao rio, que rapidamente o tragou e acolheu no seu ventre.
Depois, o silêncio. Apenas o lúgubre murmurar do Sena, em
sentido pranto. Até a voz argentina de Gardel, de triste, emudeceu. João Pires
acabara de dançar, em passada lenta e sofrida, o seu último tango em Paris.
Quito Pereira
Este é um texto de ficção. Não teve como suporte, qualquer facto da vida real ...
ResponderEliminarA excelência de um vida difícil de um emigrante cujo amor por Nicole o inebriagava de amor e esquecer as tais dificuldades...
ResponderEliminarAté que o azar lhe tocou.A fatídica queda, " os ossos do oficio", motivou os desencontros derradeiros da sua Nicole e do tango parisience...C´est la vie!
Ele e nós com desencontros!!!
Parabéns,Quito
Este comentário foi removido pelo autor.
EliminarDesculpem mas vou aproveitar este espaço para pedir para irem ver o cartaz do concerto com a Luisa Amado onde escrevi novas informações.
ResponderEliminarObrigado pelo comentário, Olinda. Como sabes, por amizade que me liga ao teu irmão, vou colaborando, sabendo antecipadamente que me estou a expor a muitas criticas. Este texto, deu-me algum trabalho a fazer. Foi emendado por vária vezes, no sentido de poder oferecer algo apresentável, dentro das minhas reconhecidas limitações. Mas é motivador para mim, quando alguém tem a amabilidade de aparecer, como é o caso de alguns amigos nossos e onde tu, naturalmente, também estás incluída ...
EliminarUm abraço
Não vale a pena vires para aqui dar graixa que as ajudas de cus(t)po não podem ser aumentadas!Já tens muita sorte em teres um mês adiantado em relação aos outros "escrivas"!
EliminarGaita!... Deixas aqui um gajo amargurado!... Nem sei o que diga!... O texto é excelente, mas gosto mais quando as coisas acabam bem!...
ResponderEliminarÉ o meu lado negro, Alf. E quando fiz este texto, ainda não tinha ouvido o discurso de hoje do Ministro das Finanças ...
ResponderEliminarAbraço
...será que alteravas o final!Mas o Ministro não mexeu no valor acrecentado!!!
EliminarA segurança no trabalho é um bem precioso.
ResponderEliminarTonito.
Quito! Por vezes as coisas acabam mesmo muito bem!!!Conheci a Elisabeth em 1969 em Mira Beach. Em Outubro mandaram-me para Angola! Namoràmos felizes! A Elisabeth escrevia-me TODOS OS DIAS!!!Eu era o UNICO com correspondência quase diària. Nas primeiras férias, convidei-a para vir para nossa casa! Os meus Pais nao estavam ao corrente!!!Tudo OK!
ResponderEliminarEm 73 regressei e ela foi-me buscar a Coimbra!!Casàmos, somos felizes e desse amôr nasceu o nosso grande orgulho, a Sarita.
Tem graça Quito! Amanha levanto-me às 4 da matina para apanhar o TGV das 5h21 rumo a PARIS. Tenho uma reuniao às 9h e na sexta vou passar o dia ao SALON MONDIALE DE L'AUTOMOBILE!!!
Gostei imenso do teu texto!Mas se fosse o Joao tinha ido a Itàlia buscar a Nicole!!!
Grande abraço!!!Queres algum carro?
Olha o Bobbyzé a relembrar tempos que já mais esquecem!!!!
EliminarE faz muito bem!
Chiça, Quito! Muito bom!
ResponderEliminarJá de manhã tinha lido o teu texto! Mas não me atrevi fazer de imediato um comentário.Precisava de o reler para me "enfronhar" bem, em todo este enredo que criaste para construir esta "estoria" à volta destas tuas duas personagens à volta das quais abordas temas que te são muito caros, como seja a desertificação do interior do país e que leva em último recurso à emigração!
ResponderEliminarA abordagem da vida do emigrante numa cidade como Paris,a descoberta dos seus encantos e tentações, depois das horas de trabalho, acabam num romance de amor, onde a fatalidade se conjuga com o desespero e à mistura com um desencontro, que nos conduz para um finalque se desejava que fosse outro...e como diz o Alfredo não fosse tão amargurado!Resolveste dar à tua Nicole um rumo mais de conveniência prática...com o amor em segundo plano!
Para terminar faço minhas as linhas que a amorosa São Rosas esvreveu!E repito com sua licença.CHIÇA, QUITO! MUITO BOM!!!
Oh... tão amoroso...
EliminarHoje o Quito traz-nos um verdadeiro romance!
ResponderEliminarAborda um facto pertinente e atual, a emigração, com todos os ingredientes para dar corpo a um drama.
Felizmente nem sempre é assim e o Bobbyzé dá-nos disso o seu testemunho.
Agora tenho de reconhecer que estavas inspiradíssimo e só desejo que nos continues a brindar com estas pérolas de escrita!
ResponderEliminarSem receio de me contradizer, considero este o melhor texto do Quito que até hoje li.
Certo que me recordo de já ter feito uma afirmação idêntica a esta e também é certo que poderei voltar a fazê-la num futuro próximo.
É que o Quito evolui, cresce, e só ele se recusa a reconhecer as suas qualidades literárias.
Muito bom, Quito, mesmo muito bom!
Aquele abraço.
Concordo Viana.Nota-se bem neste texto!
EliminarOlha lá, Quito, este teu texto não é propriamente erótico mas não deixa de combinar muito bem com os cortinados do blog «a funda São». Deixas-me publicá-lo lá? Aquilo tem uma média de 500 visitas diárias... além de muito mais gente que lê através de feeds e do Facebook.
ResponderEliminarCaros Amigos
ResponderEliminarNaturalmente que agradeço as palavras amáveis que me dirigem. Mas o que mais agradeço, é terem aparecido, como se estivessemos todos, não no "Trocadero" em Paris, mas à mesa do Samambaia.
Nem todas as histórias são como a da Branca de Neve. Mas diz o BobbyZé, com graça, que João poderia ter ido a Itália buscar Nicole. Bem pensado e isso daria mais não sei quantas folhas deste "romance", não compatíveis com o espaço limitado de um blogue, onde, ainda por cima, tenho mais de seis salários em atraso. Mas fico muito satisfeito, quando na vida real, um amigo parte para França e é feliz no seu matrimónio (como dizem os espanhóis). Abraço para ti e Beth, BobyZé.
Quanto à São Rosas ... óh pá tu não tens que me pedir autorização para nada. Publica e prontosssss ...
O Senhor Administrador, ainda arranja aqui um caldinho entre mim e o Viana. Se o Viana sabe que me andas a pagar as ajudas de custo por baixo da mesa, está o caldo entornado. E palpita-me que o Felício ainda vai aparecer por aí, a reclamar também o quinhão dele...
Abraço a todos
Eu peço sempre autorização, Quito. Quero ser sempre uma cavalheira :O)
EliminarPorque ontem estive em viagem não tive oportunidade de assistir à estreia no blog Encontro de Gerações, do conto “O Ultimo Tango em Paris” da autoria de Quito Pereira.
ResponderEliminarHoje a 3.500 Kms de distância da nossa terra, e graças a este admirável meio de comunicação que é a internet, saúdo esta pouco usual faceta da sua excelente escrita.
Com efeito, habituei-me a admirar-lhe o uso preferencial das formas de crónica, narrativa, relato ou reportagem, para nos trazer factos da vida real do povo anónimo que atentamente observa envolto em fabulosos e rigorosos enquadramentos paisagísticos.
Desta vez recorreu ao imaginário e à ficção, para, com a mesma matriz que caracteriza a sua escrita, nos brindar com este magnifico conto.
O cerne essencial dos contos reside no enredo.
Contudo, se a história contada é ficção, já o não é a mensagem que o conto encerra.
Não sei qual a intenção do Quito, qual a mensagem que nos quis transmitir.
Mas quem lê um conto ou um romance, quem ouve uma música ou abserva uma pintura, não tem de adivinhar a intenção do autor.
Mais importante, e esse é o sortilégio da Arte, é extrair da obra que se lhe depara, a interpretação que esta lhe sugere.
O que retenho deste belo conto é que a vida é feita de altos e baixos.
Uns, felizmente a maioria, enfrentam a adversidade, lutam para a ultrapassar e têm esperança em a vencer.
Outros, face à dor e ao desgosto, sucumbem e acabam em tragédia.
Parabéns Quito!
Este conto é de antologia!
Meu Caro Rui Felício:
ResponderEliminarAgora que te livraste do espartilho dos malditos relógio e calendário que te condicionavam a vida, é natural que bússola dos teus sentimentos te indiquem cada vez mais o Norte.Mas atenção: não te deixes embalar pela chantagem emocional de seres de palmo e meio. É que a seguir a um saxofone, virá o piano - de - cauda que tu, com esse coração - de - manteiga, não vacilarás em comprar, para gáudio teu e deles e do desfalecimento de alguém a quem também muito amas e te dirá com azedume: "Pois, estás sempre a fazer-lhes a vontade !!!"
Um abraço
Cà estou em Paris!!!Foi muito duro levantar-me às 4 da manha para apanhar o TGV e estar cà às 9 da matina!!!Mas sao 6 menos um quarto desta tarde com sol manhoso e agora PARIS est à moi!!!!Hoje à noite tinha duas opçoes: ir ao concerto da KIM WILDE ou jantar com o LOUIS SOTTO!!!Escolhi o segundo porque vamos rir que nem uns desalmados, depois dum excelente jantar!Cuidado! Tenho grandes recordaçoes da ultima vez que estive com a KIM WILDE!Naquela altura ela tinha um corpo jeitosinho e umas pernas que nao ficavam là muito atràs da TINA TURNER!!!!Mas a idade avança!!!!
ResponderEliminarAmanha, farrobodo!!!!Vou passar o dia inteiro no SALON MONDIALE DE L'AUTO!!!!
Grande abraço para vos todos!!!
NB- O meu escritorio em Paris fica a 700 mts da Assembleia Nacional, mas nao troco a minha vida por aquela de ministro!!!!!!
Acabei de ler o teu conto e simplesmente adorei !
ResponderEliminartambém concordo que a tua evolução é sem dúvida crescente ! continua a deliciar-nos Quito !
Um abraço.
Olga