Caminha, curvado, em passo lento e cansado, como se trouxesse
o mundo suspenso sobre os ombros. Num domingo longínquo, de cabeça vergada
sobre a pia batismal e a família vestida de fato domingueiro, envolto num traje
branco de alva inocência, viu o padre soletrar um nome – Benjamim. E ali,
perante Deus e os Homens e o espargir de umas gotas de Água - Benta, tomou a Graça
que foi escrita no livro de registos da capela singela, em letra redonda, antes
que os padrinhos, de ar compenetrado e solene, colocassem nas mãos calejadas do
sacristão, o envelope com algumas notas, afinal o passaporte para que o neófito
tivesse direito a um Sacramento Cristão e a um radioso futuro. Já anteriormente,
tinham corrido para a Conservatória, onde o nome foi inscrito em letra de lei.
Benjamim era o nome apropriado, sendo o mais novo de três
irmãos que viviam naquela casa modesta, plantada numa viela escura da aldeia
cinzenta. Os pais eram feirantes. Vendiam calças de homem a preços módicos,
pelas feiras da região. De cima do tabuleiro da velha carrinha, o chefe da
família, em voz alta e repetida vezes sem conta, apregoava o preço da
mercadoria, chamando pelos clientes que, de longe e desconfiados, iam avaliando
das qualidades do tecido. No dia em que deitou corpo e o buço lhe decorou os
lábios grossos, Benjamim passou a acompanha-los no negócio. Logo de madrugada,
armando a tenda e arrumando as peças do vestuário barato, o rapaz ajudava ao
magro pecúlio familiar, agora que os irmãos tinham partido, a espaços, para a
guerra em África e no regresso, enfeitiçados pela vida da capital, não mais
voltaram a casa. Mas, a verdade, é que ninguém se importou. Naquela família,
cada elemento era uma ilha e de manhã, quando rompia a aurora, não era o
espirito familiar que estava subjacente em cada um deles, mas o instinto de
sobrevivência. Benjamim, porém, tinha como que uma aliança com o pai, agora que
a mãe falecera por doença implacável. Talvez o seu aspeto rude e feitio pouco
cordato, mais não fosse que um secreto laço de afeto, que o levou a não
arranjar companheira e a viver, silencioso, num mundo interior, repleto de
insondáveis labirintos.
No rodar dos anos, o Benjamim fez-se homem. O pai, desgastado
e apoiado numa bengala, vai percorrendo a casa de repouso que o acolhe. Sentado
num banco de jardim, com um olhar ausente, o Domingos já não é mais que a
caricatura daquele homem pleno de vigor, que de cima da camioneta apregoava, em
tom imperial, a mercadoria que permitia o seu sustento e o dos seus. Trucidada
pelo Tempo e pela ferrugem, a carrinha, companheira de jornada, dorme agora
debaixo de uma velha oliveira, num descampado. Os pneus desfizeram-se, de
ressequidos pelo calor inclemente e as ervas daninhas já trepam pelo volante
agora imóvel para sempre, como se a história triste de uma modesta família,
terminasse ali.
Do Benjamim, pouco se sabe do seu andar. Vai percorrendo a
região, a pé ou de bicicleta, debaixo de um sol impiedoso. De tez morena e
sempre de camisa preta, parece deambular sem rumo, parando junto aos ribeiros,
onde, ajoelhado nas margens e com as mãos em concha, vai bebendo a água que não
lhe refresca a alma. Quando me vê, cumprimenta-me com um aceno de cabeça, no
seu mutismo permanente. E o seu olhar vago, mais não é, talvez, que um desfilar
de memórias sofridas, desde o dia em que, em letra dourada e uma ladainha de
circunstância, o padre Horácio lhe vaticinou um esplendoroso Destino.
Quito Pereira
O trajecto da vida de Benjamim contada com a sensibilidade do Quito...As memórias são o que lhe resta!
ResponderEliminarAfinal,todos vamos trilhando caminhos semelhantes ou diferentes mas sempre com um END...
Uns duma maneira outros de outra fazem a passagem por
ResponderEliminaresta margem.
Boa prosa.
Tonito.
Na pia baptismal, o padre Horácio augurou-lhe um esplendoroso futuro.
ResponderEliminarDizê-lo faz parte da liturgia...
Mas a vida dos neófitos será moldada pelo ambiente em que se vão integrar e não pelos augúrios feitos à nascença.
É insondável o desígnio do destino, por mais voluntariosas que sejam as palavras do padre que baptiza.
O introvertido Benjamim de hoje, vai mastigando com o seu silêncio a amargura de uma vida passada sem horizontes nem esperanças.
O Benjamim não vive já. Sobrevive...
Mas subjaz à revolta que abafa e não desvenda, um sentimento mais forte e que é causa próxima da vida que viveu:
O laço afectivo ao seu Pai que por dever nunca quis quebrar e a quem nunca regateou o seu apoio e ajuda.
As palavras escolhidas do Quito não se limitam a fazer um relato. Cada uma delas, cada frase, são certeiras setas apontadas à nossa reflexão e aos nossos sentimentos.
Mais um excelente texto!Mais um retrato em prosa de um quotidiano que o Quito vai presenciando e que nos transmite a "estória" deste Benjamim, porventura igual a outras que por este Portugal do interior ainda existem e talvez continuem a existir!
ResponderEliminarA mestria e sensibilidade comovente, da escrita do Quito! Mas quantos Benjamins vivem em casas modestas, em vielas escuras de aldeias cinzentas, por este País fora??? E depois há muitos nababos....indiferentes a estes dramas, vivendo olhando sö para o seu umbigo!!!!! Toma lá um abraço, caro amigo!
ResponderEliminarGosto da maneira como o Quito escreve e descreve o mundo que nos rodeia. Para muitos, eu incluído, esse mundo passa despercebido, ou pelo menos, só o notamos quando alertados por pessoas como o Quito!
ResponderEliminarPela pena do Quito, aqui temos mais uma reflexão sobre a maneira como cada um de nós passa pela vida!
ResponderEliminarO Benjamim ainda tem a sorte de se ir cruzando com este nosso amigo, que lhe fala e até tem a sensibilidade de adivinhar os seus pensamentos.
ResponderEliminarNem o nome baptismal o poupou ao destino.
É verdade que o destino, ou a sorte na vida, como se queira, também se procura e por ele se tem de lutar.
Naquela família cada elemento era uma ilha ...
O Benjamim escolheu a sua e, não fosse o Quito, ninguém se aperceberia de mais uma vida vazia, sem qualquer sentido que não fosse o da sobrevivência.