CONTOS
da
Daisy
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O sangue subiu-lhe ao rosto. Carregou-se-lhe o
sobrolho. E berrou:
— Não quero que me aborreças, com isso. Vai-te embora!
A rapariga olhou-o, admirada, enquanto a velha
serviçal se afastava.
Miguel, tu és mau!
Sou?
És…
Ele levantou-se, francamente atrapalhado. Caminhou em
direcção à janela e ficou-se a olhar as águas do rio a correrem, mansas, no
fundo do pomar.
— Ela simplesmente te perguntou o que querias comer. É
perfeitamente lícito, pois que és o único que podes decidir…
— Porque havemos de discutir esse assunto? Há cinco
anos que não nos víamos. Vieste matar saudades das férias que passaste aqui…
Não vais querer fazer-me zangar, não, Luísa?
A rapariga pôs-se a seu lado e ficaram ambos a olhar
para fora.
Acho-te muito irascível. Acho-te diferente… Que se
passa contigo, Miguel
Sorumbático, ele agarrou-lhe as mãos e murmurou
tristemente:
És muito nova, Luisinha…
— Que diabo, não é bem assim. Não és muito mais velho
do que eu. Não me vais dizer que te sentes velho…
Mas dizia-o. E sentia-o. Não era pròpriamente pela
idade. Não. Aquela melancolia acompanhava-o desde que a mãe morrera. Era como
se a vida perdesse todo o significado. Nada o prendia ao tempo que passava, e
os dias pareciam lentos e monótonos.
— Sinto-me só…
O desabafo saiu-lhe inconscientemente.
— Precisas de te distrair. Isto aqui é demasiado
bucólico… e tu nunca foste muito… campesino. Porque não vens comigo?…
Não podes compreender, pequena…
— Não podes compreender, não podes compreender… E
deixa de me tratar por pequena… Lembro-te que sou casada e que já tenho um
rebento…
Consegues fazer-me sorrir…
— Vem, Miguel. Acredita que tanto eu como o Roger
ficaríamos encantados. Bem sabes como gostamos de ti. Precisas distrair-te… Ir
a festas…
— Não. Nada disso me consegue transformar. Nem tu
podes imaginar as festas e lugares de diversão a que fui, no ano em que
permaneci em Londres… Mas tudo me pareceu extremamente fútil. Já não há remédio
para mim. Deixei que todas as oportunidades de ser feliz se me escapassem por
entre os dedos, como grãos de areia… dediquei-me completamente à mãe, quando te
vi partir… e sempre julguei que ela era eterna. Luísa… nem tu sabes com que
força eu me agarrei a ela… Era como se de repente, ela encarnasse outra
personalidade, em que houvesse uma simbiose entre o que ela era, na realidade,
e o que eu perdi, recuando perante ti…
Os seus olhos, húmidos, fixavam a rapariga que, sem
saber o que pensar, permanecia queda, a escutá-lo. Mas aquelas palavras fizeram-lhe
bulir o inconsciente. Deu-se conta do que se passava, e murmurou, abismada:
Miguel… Tu amavas-me…
O amigo moreno, de cabelo negro, olhava-a, sorridente
e brincalhão. O amigo moreno, o amigo de infância, era amigo, só
"amigo". Era? E a rapariga loira sonhava com ele, com o amigo moreno…
desde menina. Sonhava, mas o amigo moreno era apenas "amigo". Era? A
menina loira cresceu, a rapariga loira perdeu as esperanças… Apareceu um senhor
loiro, de olhos azuis, estrangeiro no falar que gostou da rapariga também
loira, que tinha perdido as esperanças, casou com o senhor loiro, estrangeiro
no falar. O amigo moreno ficou só… O amigo moreno que era apenas
"amigo"… Era?
12 de Março de 1970
Quem lê a prosa da Daisy, não necessita da sua assinatura, para perceber que se trata de um conto seu. O seu prosar, é "como o rio de águas mansas que corre ao fundo do pomar". Há um diálogo terno e inquieto que corre para a foz. Um desencontro de amor entre um homem e uma mulher, que se redescobriram num amor tardio e impossível. E a suspeita dela, naquela interrogação final, mais não é que a afirmação tácita de uma certeza, mesmo que o sorriso jocoso de Miguel, encubra o travo amargo da ditadura do Destino ...
ResponderEliminarAbraço Daisy
Belo conto!
ResponderEliminarAs interrogações,as dúvidas,os desencontros que experienciamos na vida...
A alegria do reencontro tardio,aos 6o anos a uma morena e a outro também moreno, aconteceu com muito amor depois de outras vivências já saboreadas, no entanto, a memória afectiva retinha aquele tesouro da juventude bem guardado.
Ambos com cabelos brancos e a pele muito sulcada pelas rugas consolidaram com intensidade a perda de tantos anos...
O travo amargo da ditadura do destino,conforme palavras do Quito ( aqui a guerra colonial) foi dolorosa mas o reencontro superou-a...até que a morte dele,há quatro anos, os separou de vez.
Daisy,obrigada por me dares a oportunidade de fazer esta analogia(mal feita certamente)...Senti-me bem falando em vez de chorar.
O amigo moreno era amigo da Luisa sim. Mas não era amigo, só.
ResponderEliminarNunca o quis revelar, não sabemos se por timidez ou por não o querer admitir.
A sua indecisão, o constante adiamento daquilo de que a Luisa esperava, fê-la afastar-se e Miguel refugiou-se na dedicação à mãe.
Com o seu desaparecimento e perdido esse refúgio ficou definitivamente só.
Este belo conto da Dais traz-nos uma situação que é mais vulgar do que se pensa.
A beleza da forma de o contar, veio permitir-nos o acesso a um comentário da Olinda não menos belo.
A vida tem destas coisas.
ResponderEliminarTonito.
Depois dum interregno é com imenso prazer que recomeço a publicação dos contos da Daisy.
ResponderEliminarSão contos excelentes que aliás os diversos comentários já publicados, para este conto, bem como para os anteriores nos dão nota da excelente escrita da Daisy.
Para mim é o tipo de conto feito à minha medida: consiso quanto baste e mensagem muito rica!
ResponderEliminarPara Ela foi apenas um amor de praia, daqueles que se enterram na areia, nada que um senhor loiro, de olhos azuis, estrangeiro no falar, não fosse capaz de fazer esquecer.
Para Ele ficou o fardo para toda a vida, teve que carregar com a sua falta de coragem para anunciar à sua amada que ela era mais do que amiga.
E foi assim que a rapariga loira e o seu amigo moreno se quedaram, vencidos pelas artimanhas da vida.
O que mais me impressiona neste conto é o facto de uma pós-adolescente, de seu nome Daisy, ter tido a capacidade de criar este quadro entre adolescentes e para cada um deles ter criado um futuro diferente, em absoluta consonância com as respectivas personalidades que, desde o inicio do conto, faz adivinhar para cada um deles.
Que mais posso dizer? Obrigado, querida amiga.
Excelente comentário do amigo Carlos Viana
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ResponderEliminarMeus amigos,
Peço-vos que me façam o favor de considerar que referi "os amores de praia, daqueles que se enterram na areia" como uma mera figura de retórica...
Um abraço.
...com esta é que me lixaste!
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EliminarEssa está boa! Então, porquê?
Vá lá, desliga esta porra que amanhã tens muito que fazer...
Trabalha, Chiça!