Olho a fotografia e localizo - a no espaço. Aquele é o meu
Choupal. Ali, com a ponte de caminho – de - ferro no horizonte e o comboio do
meu encantamento a galgar carris, numa marcha fumegante e triunfal, recordo o
velho Pama. O Pama era o barqueiro e o rio o seu sustento, quando, na margem
esquerda, junto à porta da sua velha cabana, cobrava algumas moedas do magro
pecúlio, a todos os que demandavam a Mata Nacional, para trabalhar à jorna.
Tempos difíceis. Tempos de miséria. O Adelino, usava uns velhos socos no verão
e de inverno, sem o luxo de poder comprar um par de meias. Quando, ao almoço,
se refugiava debaixo de uma árvore, já se sabia que não trazia merenda e era a
avó Maria José, sempre vigilante, que percebia o drama e ia para a cozinha preparar
uma singela refeição, para lhe oferecer.
Recordo o Pama e a sua barba rala, numa cara magra e pálida. Com arte e sacrifício, construiu uma ponte - pedonal, em estacaria. Atravessá-la, era uma aventura. A ponte, de frágil estrutura, dançava ao sabor da corrente e o Mondego, quando estava de má - catadura, ameaçava engolir os passantes. Por vezes, tinha que se proceder a reparações, nos suportes de madeira de eucalipto e era aí que entrava o barco negro, que o Pama manejava com uma vara e muita destreza. Havia como que um pacto surdo com a corrente do rio, que fazia a embarcação chegar à outra margem, sem grandes balanços e aflições. Os trabalhadores, ocupavam os seus lugares e, serenos, confiavam nos braços firmes do barqueiro, para os levar a bom porto.
Na minha mente, desfilam, em catadupa, aqueles poentes
incendiados, misturados com o cheiro dos carvalhos, plátanos e eucaliptos. E relembro
o barco da saudade, de regresso à margem esquerda do Mondego, agora que o dia
tinha terminado. Com o Pama a cantar, em voz dolente e cansada, uma canção
envolvente, acompanhado por um coro de vozes arrastadas, daqueles que
regressavam aos seus modestos lares, ao tombar da cálida tarde. Era uma canção
simples da gente simples. Era a canção do barqueiro.
Quito Pereira
A canção do barqueiro e como ela é linda cantada pela voz embargada de emoções do Quito...
ResponderEliminarAcompanho-te, pois as recordações da minha meninice são, igualmente, muito fortes neste coração setentão!
Obrigado, Olinda.Um dia, de camisola branca vestida, demos as mãos numa grande roda, num movimento cívico em defesa do Choupal. Hoje e aqui, agradeço-te e relembro esse momento,onde o teu irmão Fernando também compareceu. Como o barqueiro Pama, muitos anos atrás, remámos contra a corrente e dissemos NÃO. Um abraço ...
EliminarJornada muito bonita. Estivemos lá!
EliminarObrigado Paulo pela presença. Tua e de todos os outros, que revi nas fotos. Grande espírito cívico ...e uma foto hilariante. Lá estava o Dom Rafael de babete, à espera de trincar qualquer coisa. E depois vai ao médico e tem uma análises fantásticas, de bradar aos Céus !!! E eu, se calhar, que ando quase a pão e água,carregadinho de colestrol !!!
EliminarAbraço
Tens que tirar um curso de ginecologia, como ele.
EliminarEmoções que nos contagiam! Bela recordação...do teu Choupal, Quito! Gostei!!! (parafraseando o nosso amigo Tonito)!!!
ResponderEliminarObrigado Leitão, pelo comentário simpático. Como vai a tua livraria do Mondego ?
Eliminartambém atravessei a ponte, que nessa altura penso se chamava a ponte do modesto! Seria?
ResponderEliminarTanto quanto me lembro estava situada um pouco antes da Estação Nova e ia ligar ao almegue.
Um bom texto que nos recorda tempos passados e em que o Mondego era metade água e metade areia!
AH! e recordas bem o "TEU CHOUPAL"
Quanto à canção do barqueiro deve haver várias.Só me lembro dum pouquinho de uma:
Bom barqueiro, bom barqueiro
Deixe-me passar
Tenho filhos pequeninos
Que nao posso criar
Caro Rafael, obrigado pelo comentário. A ponte do Modesto, a que aludes, era a montante da Ponte dos Pelicanos ...
Eliminar
ResponderEliminarNo barco da sua saudade, o Quito transporta-nos até ao seu velho Choupal.
E nele embarca seu avô, o Parma, o Adelino, a Maria José e até o "Blego", para nos fazer sentir o cheiro dos carvalhos, plátanos e eucaliptos e para nos dar a ouvir o silvo estridente da máquina do comboio a carvão.
É o Choupal, seu berço não dourado que lhe moldou o carácter e o ensinou a respeitar e a contornar a dureza da vida.
Toma lá um abraço.
Sabes o que me vale, Amigo Viana? É que ainda vou tendo amigos que me suportam a "Choupalite Aguda". A alegoria de todos os personagens e do meu cão "Blego", a navegarem no barco do velho Pama, é de uma visão extraordinária .Bem -Hajas ...
EliminarToma lá outro abraço
Cantado por tantos, por poetas, cantores e escritores,o romântico Choupal, nunca o terá sido com tanta verdade e sensibilidade como o é pelo Quito.
ResponderEliminarConheci o Choupal nas minhas deambulações juvenis, num tempo em que ainda era um idílico e bucólico lugar.
Mas foi através das descrições do Quito, tantos anos passados, que senti verdadeiramente o seu pulsar que o etéreo romantismo dos cantores e dos poetas não me revelava.
Porque dentro da mata havia vidas, duras algumas, que os poetas e os cantores não cantavam.
Porque os cantores e os poetas entoavam loas ao amor, mas ignoravam a simplicidade do latir de um cão que alegrava o menino com as suas brincadeiras.
Desconheciam a beleza de um avô que passeava o menino envolto na sua capa, desvendando-lhe os segredos da floresta.
Ignoravam a dureza da vida de um barqueiro que sobrevivia a custo com o que cobrava dos assalariados, tão pobres como ele, na travessia do rio.
Ignoravam que algum do parco alimento com que uns e outros se iam sustentando, eram alguns peixes do rio que ficavam presos nos alcatruzes da “Roda Doida”.
As suas canções e os seus poemas falavam de amor, mas nunca tinham ouvido as vozes arrastadas dos operários que faziam coro com o barqueiro, numa canção dolente, triste, depois de mais um dia de trabalho duro.
Mas o Quito viveu lá e os poetas e os cantores não...
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PS: Quito, esta ponte não era chamada a Ponte dos Pelicanos?
Na realidade,caro Rui, era a Ponte dos Pelicanos. Mas para nós, habitantes da Mata, a ponte tinha o nome do barqueiro - Pama.
EliminarMesmo tendo ido para o bairro, ainda me gozei do meu berço por mais nove anos. Muito te agradeço o comentário e as considerações que fizeste sobre o texto. Não tenho pejo em firmar, que me comoveu. Mas a tua prosa, não me surpreendeu. Há muito que percebi - e muitos percebemos - que o teu mundo interior, não foi moldado a régua e esquadro. Julgo que ambos apreciamos mais um poente incendiado que um cálculo matemático ...
Bem - Hajas ...
Amigo Quito,
EliminarA amizade não se agradece, pratica-se...
Mas já se agradece a forma como escreves e, por isso, sou eu que te devo agradecimento.
Porque, como eu tentei dizer, o Choupal foi para mim durante anos e anos uma imagem bonita mas baça do romantismo estudantil.
Só me apercebi, através dos teus textos, de que ele continha muito mais no seu âmago do que aquilo que sobre ele muitos escreveram e cantaram.
E esse mais mostrou-me que faltava ao idílico cenário da mata, o humanismo indispensável a dar-lhe vida.
Algumas referências que faço no comentário, vêm de textos teus anteriores sobre o Choupal e que ficaram marcadas na minha memória. Designadamente os peixes nos alcatruzes e, sobretudo, o carinho que o teu avô te dedicava.
Portanto, se te comoveste, se me comovi também ao escrever o comentário, a culpa é tua.
Porque a pena com que escreves tem mais do que aparo. Tem coração...
Um abraço e obrigado por nos saberes dizer o que deve ser dito.
Rui Felicio
Chiça, Quito e Rui Felício, vocês conseguem emocionar um calhau de trás da Serra, carais!
EliminarJulgo que a ponte de madeira a que te referes é a mesma que eu, muitas vezes, atravessei para ir comer peixinhos do rio, numa espécie de restaurante/tasca, que ficava na margem esquerda mesmo ao pé da ponte. Comiamos cá fora!
ResponderEliminarCorrendo o risco de me voltarem a chamar maluco, volto a dizer que gostava mais do Mondego com areia e um fio de água no Verão, e basófias cheio de papo no Inverno! A mata do Choupal podia ser aproveitada! Podiam desviar para dentro dela, água do rio, que não seria desperdiçada, a água regressaria ao rio, depois de serpentear pela mata dando-lhe ainda mais beleza!
Já andámos envolvidos num movimento para que o Choupal não morresse de velho, sem tratamento adequado....Um dos mentores era o dr. Jorge Paiva,Prof.na Botanica e lutador pela natureza.
EliminarE as prescrições foram dadas mas as autoridade fizeram ouvidos moucos!!!
É verdade, Alfredo. Grande memória a tua. Quanto ao Mondego, bem ... era necessário tomar providências. Com as cheias ficávamos sitiados e, por vezes, nem na Casa do Sal se podia passar. Só que nós, os que gostamos de Coimbra, perdoamos todas as diabruras do rio, que por vezes se portava mal e punha tudo num alvoroço ...
EliminarObrigado por também teres aparecido ...
Abraço
Houve aqui uma troca de comentários, em resposta ao Alfredo. Para ti, Olinda, ficam as considerações que já leste em cima ...
EliminarPontes de madeira no Mondego conheci 3.
ResponderEliminarNa zona da cidade.
No fundo do parque, na zona do açude,e a outra um bom bocado a baixo,segundo me parece (zona do picadeiro.
Sim, Tonito. É verdade. A do açude, já desmontada, era a tal Ponte dos Modestos. A de que eu falo, era ao fundo do Choupal, muito perto da casa do Mestre Florestal ...
EliminarSempre que vejo esta fotografia do teu avô fico a contemplá-la. Toca-me, encontro-lhe magia.
ResponderEliminarO facto de teres nascido no Choupal torna-te um romântico e bem invulgar.
Eu, que nasci no beco de Montarroio, numas águas-furtadas, dormia quase com a cabeça encostada ao teto, onde via o céu pela clara-bóia, repara só na diferença!
No entanto recordo-me perfeitamente desses tempos de minha infância até aos 5 anos e sinto a felicidade da vivência com os meus queridos pais, pois só mais tarde nasceu o meu irmão e já na Alta.
Memórias que tu, Quito, tens o condão de trazer à tona.
Essa fotografia, Celeste, teve um prémio internacional, em Espanha. Foi tirada no no ano em que nasci, ou um pouco menos. Quem a tirou, foi um padre chamado Samagaio.Finais dos anos quarenta. Gosto dela particularmente e tenho-a ampliada.
EliminarTodos temos as nossas recordações. Esse pormenor, de veres o céu pela clara-bóia, acho delicioso. Eu lembro as noites escuras e o céu estrelado e a canção do vento por entre carvalhos, plátanos e eucaliptos. E o aroma de tudo o que me era familiar e os sons. O estalar da lenha na lareira, o barulho da corrente do rio naquelas noites em que o caudal metia respeito.
Fui um habitante do Choupal e não nasci em berço dourado. Mas se voltasse a puder nascer, era exactamente ali que gostaria de voltar a vir ao mundo ...
Um abraço
Em tempo: poder ...
EliminarO Quito quando escreve fá-lo com a força do sangue que lhe corre nas veias. Com paixão, pondo em cada palavra a verdade absoluta e nua. As imagens criadas transportam-nos duma forma espontânea, que se reflecte em nós, como se as estivéssemos a vivenciar.
ResponderEliminarUm abraço
Nota: A tasquinha de mesas toscas e corridas, de que fala o Alfredo, do outro lado do Choupal, ao fundo da ponte, com peixe frito também por lá me apanhou. Já não me lembro com quem lá fui, era um grupo de malta. Julgo que foi o Lourenço(?), que era da Covilhã, a quem não caiu bem a sorrapa que bebemos (nós tenrinhos) e que, no regresso, se estatelou no rio.
Obrigado Abílio, pelas palavras. O texto, mais que não seja, lembrou-te tempos de antanho e a tasquinha do Choupal. Tal como ao Alfredo. Memórias de um berço que foi o meu ...
EliminarLembro-me bem da ponte, feita de estacas de eucalipto, e de a ter pasado uma vez, de mão dada com o meu Pai, vestida de anjinho , para ir para a procissão da Rainha Santa. Mas as tuas memórias, cantadas com a mestria da tua escrita,emocionam-me e a tua vivência do choupal encata-me.
ResponderEliminarChoro sempre que te leio.
Um beijinho
Ló
Amiga Ló
EliminarDe vez em quando, vamos todos de braço dado pelo Choupal. Não chores, porque eu, sempre que olho para a casa que foi meu lar, fico com um nó na garganta. Em nove anos, muitas coisas aconteceram. Conversas à volta da lareira, partilha fraterna com os mais necessitados. Momentos jocosos (poucos) e dramas. Um pouco de tudo vivi, tendo como testemunha o Mondego.
Abraço