CONTOS
da
Daisy
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CATARINA
CATARINA
A Catarina foi sentada
na cadeira. A perna magoada estava ligada e eu fixei-lhe os olhos azuis, muito
sérios, e as bochechas rosadas.
— Doeu-te muito,
Catarina?
Muda, ela contunuava a
olhar-me fixamente. Doeu com certeza. Mas bochechas proeminentes, já nada
mostrava que estivesse a sofrer qualquer dor. Não doia. Agora.
— Mamã, a Catarina
chorou?
Não chorara. Só quando
a voltou, para lhe aplicar a ligadura, ela pronunciou um gemido. Mas não
chorara. Aquilo era o hábito: não gostava de estar de barriga para baixo.
Senti-me aliviada. O
remorso do que lhe havia feito tinha-se dissipado um pouco por saber que ela
não sofrera.
Nunca mais a atiraria
para o chão. Nunca mais me zangaria. Com ela eu nunca me zangava, mas quando
alguma coisa me apoquentava, era a pobre Catarina que pagava porque, dócil, sem
um queixume, era a única pessoa lá em casa em quem eu podia descarregar a minha
cólera.
Peguei-lhe na mão
rechonchuda e acariciei-lhe os cabelos loiros, numa tentativa de me fazer
perdoar. O vestidinho não lhe tapava a ligadura e aquela acusação ao meu
comportamento, apoquentava-me. Retirei, de um dos meus cabides, as calças de
malha. Vesti-lhas, cuidadosamente, abotoando-lhe o casaco e depondo-a, de novo,
na cadeira. Beijei-lhe a testa.
— Minha pobre
Catarina!…
Mas ela precisava de
descansar.
Peguei no livro que
estava ao lado da cadeira-de-baloiço. Mas não consegui ler. Sentia, postos em
mim, os olhos da Catarina, submissos, como os do perdigueiro que o tio Pedro
trouxera no sábado, para a caça.
Continuei com o livro
na frente, a tapar-me a cara e a ver, mentalmente, o cão a correr, lá em cima,
no souto, atrás das lebres, das perdizes e dos coelhos invisíveis, depois de
ter soado o tiro. O cão corria, corria, corria. E o tio Pedro, atrás, andava
devagar, seguro de que o animal lhe traria o que pretendia. Com os binócolos do
avô vi, depois, o perdigueiro voltar de encontro ao dono com a sua presa. Da
boca escorria-lhe um fio vermelho e a cabeça do animal caçado, pendente, sem
vida, balouçava, à medida que o cão-caçador pusava as patas no chão,
compassadamente. O tio Pedro é mau. O tio Pedro é mau!
— Vamos ter perdises
para o jantar.
— Não quero!
— Mas é bom, querida.
— Não quero!
— Bom, bom. Vamos lá
ver…
— Já disse que não
quero!
Quem pagou foi a
Catarina.
A mãe correu a
socorrê-la. E tratou-a. minha querida Catarina! A perna partiu--se.
— Joana!
Ele aí vem. Abriu a
porta do quarto e mostrou-me dois animais mortos. As penas da cabeça estavam
agarradas umas às outras e manchadas de vermelho.
— Trouxe-te duas
perdizes. Só para ti.
A cara dele ria, ria.
Mostrava os dentes muito brancos. Deixei cair o livro que tinha na mão. A
Catarina na sua cadeira, com a perna ligada, continuava a olhar para mim muito
calma. E o tio Pedro esperava que eu corresse para ele e lhe agradecesse o
presente. Dentro de mim, começava a correr um calor que me afogueou as faces.
Depois, as pernas começaram-me a tremer e as mãos não estavam quietas. Eu não
via a perna ligada da Catarina. Não via os seus olhos azuis submissos. Agarrei
nela, elevei-a no ar e deixei-a cair, pesadamente na pedra do fogão-de-sala,
onde o lume, por desnecessário, não crepitava. Os pedaços da boneca
espalharam-se pelo chão. A cabeça de louça, oca, dividiu-se em três pedaços. Só
a perna ligada ficou inteira. Minha Catarina!… Desfeita. Os olhos azuis, duas
pequenas bolas que brilhavam, foram parar aos pés do tio Pedro, que me olhava,
abismado. E a Catarina já não tinha cura. E não havia cirurgião que lhe valesse!…
que tens, Joana Maria?
Não gostas de perdizes?
9 de Setembro de 1971
Os que não têm voz, os que são obrigados a acomodar-se, os que se encontram no fim da escala, são sempre os que sofrem a rebelião daqueles que, no degrau antecedente da hierarquia, neles descarregam a prepotência de que se acham vitimas.
ResponderEliminarE normalmente, fazem-no de uma forma mais brutal do que o motivo que lhe está na origem remota.
Aprendi isso quando saí da tropa e vi, anos mais tarde, um soldado amanuense, agora agente da polícia política, à qual se candidatara e fora aceite, vingar de forma desumana, em pessoas inocentes, as suas frustrações, a revolta e as injustiças de que tinha sido vitima às mãos de um carrancudo sargento que durante a comissão na Guiné lhe tinha feito a vida negra.
A mensagem que recolho deste conto está, portanto, e para mim, muito para além do episódio que a Daisy tão imaginativamente idealizou e enquadrou num cenário descritivo perfeito que nos coloca num quadro rural em que quase nos sentimos espectadores e personagens.
Porque a Catarina estava no fim da linha hierárquica e a Joana, mau grado gostar dela e saber que nenhuma culpa lhe cabia, só na Catarina e em mais ninguém podia descarregar a sua cólera.
Ao ponto de a desfazer em mil bocados..
Parabéns Daisy por este conto que foi, quando o li pela primeira vez, um dos que mais gostei, de toda a colectânea.
Uma referência igualmente para a bela ilustração de Zé Penicheiro.
Há um mundo interior que nos habita. E, se muitos conseguem extravasar as suas emoções e sentimentos, outros há, que blindam as chagas da alma a cadeado, muitas vezes abafando a revolta que os oprime.
ResponderEliminarEste conto, com a pena bem identificada da Daisy, tem para mim uma curiosidade : é que a estrutura do texto, tem muito a ver com aquilo que é recorrente na prosa nosso amigo e escritor que me antecede neste comentário, apesar de se perceber, à vista desarmada, que cada um tem a sua própria matriz de escrita.
Catarina, foi alguém a quem a autora deu vida própria, para, no fim, nos apercebermos que se tratava de uma simples boneca.
Como o Rui Felício disse - e bem - Catarina estava no fim da linha hierárquica e foi a vitima de uma revolta surda que explodiu ...
Quantos ... mas quantos ... tiranetes andam por aí, poluindo o Universo, a fazer dos seus iguais, vitimas das suas frustrações?
Conheci um. Começou como simples moço de recados e guindou-se a posição relativamente importante, no quadro de uma empresa. Era um terror. Um pedante, que passeava a sua petulância, imbecilidade e uma competência que não tinha. Mas diz a milenar sabedoria popular, algo que continua a ser transversal aos tempos: nunca sirvas a quem serviu ...
Apropriadamente, o Quito condensou o seu raciocínio com um excerto do adágio popular "nunca sirvas a quem serviu,nem peças a quem pediu".
EliminarO excerto escolhido diz tudo...
ASSUNTO.
ResponderEliminarAssim Gosto.
Um Abraço.
Tonito.
Mais um excelente conto da Daisy e que com todo o prazer aqui vos deixo!
ResponderEliminarQuase me revejo dentro deste lindo conto...visto "as roupagens" da Catarina quando acusava o Rafaelito ao meu pai e, hoje, reconheço tê-lo feito por ciúmes...achava que a minha mãe gostava mais dele do que de mim!Então os castigos do meu pai embora gostasse muito do mano Rafaelito...
ResponderEliminarFiz mal ou bem a transposição,pouca importa, mas foi o que senti ao ler a Daisy, contadora de maravilhosos contos.
ResponderEliminarO conteúdo da mensagem que neste conto nos é deixado pela Daisy, quando ela era ainda menina e moça, deixa-nos o sabor do amargo-doce que ela tão bem sabe cultivar.
Obrigado, Daisy.