segunda-feira, 5 de novembro de 2012

CÓDIGO DE HONRA





 Dependendo do ângulo em que o observássemos, o seu rosto, como num caleidoscópio, causava-nos uma impressão diferente. Bastava-lhe um leve trejeito da boca para transformar o seu ar habitualmente simpático e sedutor, num rosto ameaçador, ou pensativo, ou mesmo descarado.

Visto de perfil, se fechava os lábios num linha dura quase imóvel, apontando o nariz aquilino em direcção a um insondável ponto do horizonte, fazia-nos lembrar uma estátua grega.

Mas se rodava a cabeça um quarto de circulo na nossa direcção e se distendia a boca bem desenhada num sorriso afável, a crueza estática transformava-se numa dócil e amável ternura, com a melena lisa de azeviche a descair-lhe sobre a tez morena da testa.
Só o olhar perfurante e cru dos seus olhos pretos denunciava a aparente bonomia.

Cursou Direito em Coimbra e era conhecido pela alcunha do Cigano. Curiosamente, que me lembre, o Cigano nunca se ofendeu por ser tratado pela alcunha depreciativa. Talvez porque tivesse orgulho nela...
Na verdade, ele era de raça cigana, nascido em Idanha-a-Nova, no seio de uma tribo abastada, com ramificações familiares em Cáceres, em Almeria e em Toledo.
Fez o liceu em Castelo Branco e veio para Coimbra estudar Direito, hospedando-se num quartito da Alta que pagava com a mesada que pontualmente lhe chegava da Beira Baixa.

Só o voltei a ver mais de vinte anos depois. Vivia em Torres Novas onde exercia advocacia. Não havia ninguém com quem tenha falado que não me dissesse que era um excelente advogado, embora se refugiasse em demasia no álcool e no jogo nas noites longas do Clube dos Empresários. Nada, contudo, que impedisse o seu reconhecido sucesso na barra do tribunal, segundo me afiançavam.

Especializara-se no foro criminal onde ganhara experiência e se sentia à vontade.

Era voz corrente que os acusados pelos mais variados crimes violentos, desde furtos, roubos, ofensas corporais até assaltos à mão armada, era ao Cigano e a nenhum outro advogado da praça, que recorriam para a sua defesa em tribunal.

Certa noite, no Clube, onde às vezes eu também ia jogar uma partida de bridge, alguém o questionou sobre o facto de os seus Clientes, sendo sobretudo gente de fracos principios, inseridos numa sociedade que, por norma, não respeitava as regras de convivência civilizada das pessoas de bem; como é que ele conseguia cobrar os seus legítimos honorários.
Por certo que, passada a borrasca, essa gentalha roeria a corda e nunca mais lhe pagava, diziam-lhe. Como é que o doutor sobrevive? Como é que faz para que lhe paguem?, insistia o interlocutor.

Meu caro amigo, eu explico-lhe, acedeu o Cigano:

Quando me procuram, ouço a versão do cliente, reúno os factos, ouço testemunhos, analiso a questão, e avalio qual a pena que o tribunal provavelmente lhe aplicará segundo os limites máximo e mínimo da lei.
Volto a falar com o cliente e negoceio com ele a prestação dos meus serviços. Normalmente informo-o que não lhe cobrarei quaisquer honorários se a pena que o tribunal lhe vier a aplicar for a da máxima graduação legal.
Todavia, a cada ano de prisão a menos do que o máximo penal legal para o tipo de crime em apreço, que o tribunal decidir, cobrar-lhe-ei um determinado montante de honorários que em negociação fica estabelecido entre nós.
Nada fica escrito. Apenas a mútua palavra de honra!

Garanto-lhe que até hoje, em vários anos de profissão, nunca nenhum cliente me ficou a dever nada.
Chegam a vir ao meu escritório no dia seguinte ao da sentença, familiares do cliente já em reclusão efectiva, para cumprirem o acordado.

Porque, entre os criminosos comuns, existem códigos de honra que as pessoas ditas civilizadas não têm, ou se têm, arranjam estratagemas diversos para os não cumprir.

Rui Felicio

17 comentários:

  1. Rui Felício, é nome de um amigo. Mas um dia, um qualquer dia no futuro, Rui Felício será conhecido no universo literário, como o nome de um escritor consagrado.
    A obra de Rui Felício, fala da vida. Com tintas mais carregadas ou menos carregadas, ou, por vezes, até em situações burlescas. Que também fazem parte do nosso quotidiano.
    O perfil do "cigano",o aspecto sombrio do seu semblante, a roçar a austeridade de uma estátua grega vinda de Tempos remotos, em contraponto com a cordialidade que por vezes apresentava, a somar ao mérito de um advogado que tinha uma prática para com com os seus clientes pouco convencional, realça bem a qualidade literárias de quem tem o dom da escrita, a par de quem sabe das Leis que regem os Homens.
    Subjacente à prosa, um pensamento e uma conclusão. Sábia conclusão.
    Porque o Rui Felício,advogado e escritor, percebe de Leis. E percebe da vida...
    Parabéns ...

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    1. Quito de todos os comentários e apreciações que li, a com que mais me identifiquei, foi com a tua!
      Por isso e felicitando mais uma vez o Rui pela sua límpida e inteligente maneira de escrever só me resta dizer que; faço minhas as tuas palavras!!!
      Beijinho para os dois.

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    2. Obrigado aos dois. Mesmo sabendo que só a amizade ditou as palavras do Quito, é sempre bom ouvi-las, mesmo que não integralmente merecidas.

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    3. A amizade existe. Mas não coube neste comentário. Li o texto três vezes e sobre ele refleti. Não retiro uma virgula, ao que disse. E o que disse, é o somatório do muito que já li da tua lavra. E aqui reafirmo, para memória futura ...

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  2. Extremamente elucidativo e, na sua prosa bem fluente, o Rui salienta os códigos de honra dos ditos civilizados e dos não civilizados, estes aqui personificados no cigano mas sem qualquer estigma descriminatória. A nossa cultura (porque nos educaram assim) rejeita-os, actualmente muito menos, embora tendo os seus valores têm comportamentos maus e bons como nós.
    Congratulo-me por retomares aqui as tuas belas prosas!

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    1. Tens toda a razão Olinda. O maniqueismo separador entre bons e maus não deve existir! Há de tudo em todo lado...

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  3. Rui,um Abraço para ti e ao teu Amigo.
    Obrigado.

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  4. Gostei! Como de costume gostei porque os teus textos despertam em mim acuriosidade de saber como vão terminar.
    Desta vez e porque me apercebi que não era um conto ficionado, enquanto lia, mentalmente fui inteririozando e dado ser um cigano a personagem principal, comecei a perceber que o final iria dar num final que valorizasse a postura séria e honrada do seu colega de profissão!
    E pensava assim porque teria que ver,em contraposição com o que a sociedade de uma forma geral pensa dos ciganos, que "este cigano", não renegando a sua condição étnica, honrou a profissão que escolheu, honrando-se a si próprio!
    Agora Rui Felício, não me deixes ficar mal....foi mesmo assim! Tudo real!

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    1. Como se compreenderá, não vou dizer o seu nome.
      Por várias razões, a principal das quais é a da actuação menos convencional e de discutivel conformidade deontológica no que respeita à negociação de honorários, fazendo-os condicionar ao resultado do julgamento.
      Tal não significa que não admire, como admiro, a forma sui generis do exercício da profissão por parte do Cigano.
      Asseguro, porém, a veracidade do descrito.
      De resto, seja quem for que passe por Torres Novas e pergunte por este advogado, de imediato lhe será revelado o seu nome, dado tratar-se de uma conhecida figura da cidade.
      Conheci-o, ainda estudante,no meu ano de caloiro, era ele já finalista de Direito.
      Deverá ser mais velho do que eu uns cinco ou mais anos.
      Fui propositadamente assistir a um julgamento em Torres Novas em que ele intervinha.
      É um verdadeiro tribuno, juntando à sua invulgar eloquência o gesto teatral, convincente. Fiquei a admirá-lo por isso...

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    2. Perante isto, não tem lugar a dúvida que persistiu após a minha leitura de mais este estupendo texto.
      Perguntava a mim próprio: " A nudez forte da verdade - O manto diáfamo da fantasia " ?...

      Toma lá mais um abraço ( à moda e em homenagem ao Quito que por aqui deixa, para memória futura, um comentário que subscrevo por inteiro)

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  5. O estigma que sempre tivemos contra a raça cigana não era só culpa nossa, era também e principalmente culpa deles, que nunca se quiseram misturar. Este excelente texto do Rui, demonstra-o.
    O último parágrafo é uma curiosa e bem conhecida verdade!
    Obrigado Rui pelo interessante texto. Volta sempre!

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    1. Como em todas as estirpes rácicas ou chauvinistas, a culpa ou o mérito existem em ambos os lados.
      Obrigado Alfredo pela tua atenção a este tipo de temas pouco atractivos e algo sensaborões, o que demonstra que tu, sob a capa da boa disposição e desprendimento que é a tua imagem de marca, se esconde uma mente reflexiva e preocupada com as questões menos apelativas, mas importantes.
      Como é bem visível nalgumas das tuas intervenções no FB..

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  6. Rui!Prosa extraordinària que me captivou o interesse até à leitura da ultima linha!Porém, por ter um familar nessa digna profissao, também deves concordar que essa historia que descreves, um pouco idilica, infelizmente nao corresponde ao que se passa, na sua maioria, em Portugal.E a crise que se vive, veio amplificar o fenomeno.
    Claro que os assuntos continuam a negociar-se entre as duas partes. Mas os pagamentos, as contas em dia com os advogados nao sao hoje, moeda corrente!!Pior.Ai daqueles que recusam entrar no sistema. A oferta é tanta que o cliente tem por onde escolher.Alguns amigos acrescentaram "Zé, se me pagassem o que me devem, iria viver para a California!!!"

    Nao é minha pretensao afirmar que é um assunto generalizado mas que é um fenomeno recurrente, tenho quase a certeza! Conto com o Rui Felicio para nos elucidar um pouco mais.

    E em França, me perguntarao vocês? Como funciona o recurso a um advogado?
    Refiro-me à ALSACIA, pois as mentalidades sao muito diferentes de regiao para regiao.
    Aqui, posso garantir-vos que ninguém procura um advogado se nao tiver dinheiro para o fazer!!!Faz parte dos hàbitos e costumes!Nao hà fiados nessa profissao!!!Evidentemente, para os mais necessitados (e eles sao cada vez mais) hà estruturas de conselhos juridicos gratuitos nas municipalidades.

    Faço parte duma comissao institucional de ajuda social aos empregados do Instituto onde trabalho.Todos os meses em PARIS hà casos para estudo.Hà familias onde um simples divorcio (e despesas consequentes com advogados)contribui para arruinar durante um longo periodo de tempo o seu estatuto financeiro.

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    1. Amigo BobbyZé,

      Desde sempre houve, há e haverá gente de más contas.
      Não é de agora, embora reconheça que a crise amplifica o problema, como dizes.

      No entanto, o quadro não é assim tão negro como o pintas.

      Senão vejamos:

      Só podem existir dívidas se o cliente devedor as contraiu depois de mandatar e atribuir patrocinio ao advogado credor;

      E, de duas uma,

      a) - ou a divida subsiste ainda no decurso do processo
      b) – ou ela persiste já depois de encerrado judicialmente o processo

      Consideremos o caso da alinea a):
      O advogado tem sempre ao seu dispor a possibilidade de alertar o cliente, de que poderá renunciar fundadamente ao mandato por falta de pagamento atempado.
      O Cliente, nesta eventualidade ou lhe paga o devido ou lhe revoga o mandato como é seu direito procurando o patrocinio junto de outro advogado.
      Porém, o Código Deontológico estabelece que “O advogado a quem se pretenda cometer assunto anteriormente confiado a outro advogado fará tudo quanto de si dependa para que este seja pago dos honorários e mais quantias em dívida”.
      Portanto, o cliente devedor, em regra, não conseguirá seguir este caminho, sob pena de não encontrar patrocínio para a prossecução do processo.
      Não lhe restando alternativa senão pagar as despesas e provisões devidas ao advogado que conduz o seu processo.

      Consideremos agora o caso da alinea b)
      Nesta situação, isto é, se a divida persiste após o encerramento judicial do processo, tal significa que o advogado não se soube antecipadamente precaver-se e, sem querer desvendar os variados mecanismos legais ao seu dispor que a experiência lhe foi desenhando, não soube utilizá-los antes da conclusão do processo. Culpas que só a ele, advogado, podem ser atribuidas.
      A menos que tenha confiança absoluta no Cliente, sendo que, se assim for, a questão nem se levanta.


      A outra questão que levantaste, que consiste no por ti alegado excesso de oferta, é um facto que os advogados em inicio de carreira sentem grande dificuldade em obter patrocinios de clientes.
      Para mais, quando o Código Deontologico também proibe aos advogados a publicidade com esse fito.
      Mas, também neste caso, sempre assim foi.
      Os clientes procuram por norma advogados mais experientes para o patrocinio das suas acções.
      O que não significa que os mais novos não tenham competência ou capacidade para os representar, mas só com tempo e muito trabalho conseguirão o estatuto que o cliente, mal ou bem, procura.

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  7. Rui.Fico-te imensamente agradecido por todo este esclarecimento profissional à volta desta matéria.Fiquei e espero, ficàmos todos, a perceber melhor o funcionamento da advocacia em Portugal.
    Como sabes, muitas vezes a divida persiste apos o encerramento do processo. Muitas vezes, esse factor que focas, do excesso de confiança nos clientes é o ponto de partida para grandes desilusoes. Porque hà parametros que intervêm (cada vez mais)e que podem alterar a falta do cumprimento financeiro restante.Basta um despedimento para tudo alterar!O que é normal!

    Grande abraço!E obrigado!

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  8. Porque ontem não tive oportunidade de o fazer, deixem-me concentrar o meu comentário no texto que o Rui Felício aqui nos traz.

    Porque é um excelente comunicador, sabe da importância do poder da expressividade facial e começa por nos descrever, de forma quase exaustiva, a singularidade do personagem que nos dá a conhecer. Consegue, logo à partida, preparar o leitor para o encontro com um homem que, pela sua força e originalidade, tem comportamento diverso dos seus pares.
    Cursou direito e tinha por alcunha o Cigano, pelas suas raízes familiares das quais se orgulhava. Especializou-se no foro criminal e aprendeu a bem lidar com criminosos. Cobrava-lhes honorários em conformidade com o êxito do seu trabalho, pautando a sua tabela pelo numero de anos de prisão que conseguisse reduzir ao máximo previsível por lei...
    Desta forma, conseguia que a gentalha com ele estabelecesse um código de honra, não lhe faltando com os pagamentos prometidos.
    E não é que isto até faz sentido?!
    Mas Rui Felício não acaba sem deixar um "recado" moralizador, lembrando que são códigos de honra que as pessoas ditas civilizadas não têm, ou se têm, arranjam estratagemas diversos para os não cumprir.

    Genial, meu querido amigo.
    Aquele abraço!

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