quarta-feira, 21 de novembro de 2012

MARIA CORAGEM ...


Daqui partiram, numa noite fria de Novembro ...
Sentado no catre da camarata escura do Quartel de Penafiel, João Diogo cantava e dedilhava na sua velha viola, algumas canções de Zeca Afonso. Nada de estranhar, afinal, se não corresse o ano de mil novecentos e setenta. Admirado pelos seus camaradas de armas, João mantinha aquela postura de afronta aos poderes instituídos e há muito que sabia que estava referenciado e sob vigilância. A mobilização para Moçambique, foi a gota que fez transbordar o copo. Num fim – de - semana, na sua mota e tendo como companhia um amigo de Coimbra, também ele militar em Penafiel, partiram à desfilada em direção à Beira Baixa, de onde o João Diogo era originário. E foi no Hotel Turismo, já demolido, em Castelo Branco, que se juntaram a um terceiro elemento que decidira também passar a fronteira. Um açoreano, que igualmente prestava serviço na unidade militar do norte. Naquela noite fria de Novembro, João foi a uma aldeia próxima, onde, com naturalidade, mas a morrer por dentro, abraçou a mãe, omitindo, porém, que aquele era um abraço de despedida.
Maria Lourenço, amava aquele filho, mas o seu coração de mãe, manteve-se tranquilo, longe de suspeitar dos planos do João. De novo, com a alma desfeita, Diogo voltou ao hotel que, à época, era uma das referências da cidade. Tudo correu bem. O “passador” também compareceu e a coberto do manto da noite, rumaram em direção a Vilar Formoso. Por um caminho estreito, passaram para o lado de Espanha, onde apanharam um comboio até Irun. Seguiu-se a França, por onde deambularam por Paris. Mais tarde, antes de entrarem na Bélgica – o destino final – saíram na estação de Roubaix, fazendo o resto do percurso a pé. Depois, já em Bruxelas, tinham um grupo de dissidentes à sua espera. Estes homens, tinham como missão, tentar arranjar trabalho a todos os que ali chegavam, fugidos à guerra que Portugal mantinha em África. Um deles, Pedro Rocha, estudante de veterinária e membro da LUAR, antiga organização de esquerda, tinha como missão proteger o João Diogo. Tão bem o fez, que aquele beirão de média estatura e óculos redondos a escorregarem para a ponta do nariz, já estava no dia seguinte debruçado sobre um balcão de um laboratório de fotografia. Com a ajuda dos compatriotas, João Diogo partia assim para uma nova vida no coração da Europa.

Maria Lourenço, estranhou a ausência do filho. Uns tempos mais tarde, soube que o João se encontrava algures em Bruxelas, por intermédio de uma filha, a viver em Angola. Maria Lourenço, ficou inquieta. Queria saber como o filho vivia e as notícias que lhe chegavam não a satisfaziam. Socorreu-se então de familiares, que lhe arranjaram passaporte. Apesar de viver numa aldeia remota, Maria Lourenço não se intimidou. Com uma pequena mala na mão, onde acondicionou a parca roupa que tinha e enrolada num xaile, rumou de comboio para a Bélgica. A sua aparência de mulher simples do povo, sozinha numa carruagem, suscitava a atenção das pessoas. Apesar da barreira da língua, os viajantes percebiam que era uma mãe que percorria trilhos desconhecidos, à procura de um filho, que tanto desejava rever. Gerou-se então uma enorme onda de solidariedade à sua volta e aquela gente anónima, de Espanha à Bélgica, não descansou enquanto não a viu pisar o chão da estação dos caminhos – de - ferro de Bruxelas. Ali chegada, Maria Lourenço ia mostrando aos passantes, a fotografia do filho fardado e cabelo cortado à militar. Missão difícil, encontrar o João, na grande cidade. Exausta da viagem, dormitou nos bancos da estação, com o retrato pendente entre os dedos. Até que alguém, que passava na gare, percebeu que aquele seria mais um adolescente fugido de Portugal. Levou então Maria Lourenço para um café, onde havia uma tertúlia de portugueses. De imediato, João Diogo foi reconhecido e a meteram num táxi, para o laboratório de fotografia onde o beirão trabalhava. A chegada, não foi pacífica. Maria Lourenço, na sua simplicidade aldeã e fora do seu país, não sabia quanto tinha a pagar pela corrida do táxi. Valeu – lhe Eva. Eva Karol, era fotógrafa de eventos desportivos e ao aperceber-se da dificuldade, pagou o transporte do seu próprio bolso. Esta mulher, nascida num país do leste da Europa, vinha ali muitas vezes, comprar material para as suas reportagens e logo reconheceu o João Diogo, pela fotografia que Maria Lourenço ansiosamente lhe mostrava. Familiarizada com o laboratório e sabendo que o João vivia no sótão da empresa, onde pernoitava, pediu autorização para que a recém - chegada usufruísse do quarto do filho. Então, acomodou-a o melhor que pode. Maria Lourenço tiritava de frio, envolta no seu xaile, apenas trazendo no corpo, roupa precária para a época penosa de frio que se fazia sentir.
João Diogo, tinha ido fazer um trabalho e estava ausente. Quando chegou, Eva disse-lhe com simplicidade: “ João vai ao teu quarto, tens lá a tua mãe à espera…”. Com o coração num reboliço, João Diogo subiu os degraus, ofegante, e enlaçou a mãe no abraço mais delicioso da vida, tendo Eva como testemunha.
João Diogo casou com Eva Karol e têm quatro filhos. Vivem felizes em Bruxelas e todos os anos vêm visitar Maria Lourenço. O Destino, permitiu que o adeus não fosse definitivo e hoje, já de bengala e provecta idade, orgulha-se dos netos, que adora.

Maria Lourenço, é muito respeitada por toda a comunidade onde reside. Será sempre a mulher que desafiou fronteiras envolta num xaile, que a amparava dos rigores da invernia . Nada a demoveu dos seus intentos. Um amor sem barreiras, de uma mãe por um filho.
Maria Lourenço, chama-lhe o povo. Maria Coragem, chamo-lhe eu.

Quito Pereira      

12 comentários:

  1. Se a sua infância não tivesse sido no Choupal, o Quito não seria como é...
    Se a juventude que viveu não fosse no Bairro, o Quito não seria como é...
    Se não tivesse andado pela Guiné, o Quito não seria como é...
    Se as giestas da montanha lhe não afagassem o corpo, o Quito não seria como é...
    Se não visse o entardecer incendiado da Serra do Moradal, o Quito não seria como é...
    Se não sentisse a secura da estepe beirã, na canícula, o Quito não seria como é...
    Se não gelasse com o vento serrano cortante do inverno, o Quito não seria como é...
    Se não observasse e sentisse as dores dos pescadores de Lagos, o Quito não seria como é...
    Se não escutasse as histórias sofridas das gentes de Juncal do Campo, o Quito não seria como é...
    Se não se lhe humedecessem os olhos ao ouvir uma melodia romântica, o Quito não seria como é...
    Se não preferisse a amizade duradoura ao protagonismo efémero, o Quito não seria como é...
    Se não sobrestimasse o idealismo em vez do positivismo calculista, o Quito não seria como é...

    Mas ainda bem que o Quito é como é!

    Porque assim o leitor entra em profundidade, no âmago dos relatos que nos faz.

    Relatos que alguns outros nos fazem, mas estereotipados, como simples estatísticas, como actos de falso heroismo, como bandeiras de batalhas, frias, impessoais.

    Com o Quito, ficamos a conhecer o sofrimento, a coragem, o desespero e a luta duma mãe que ama um filho que receia perder, seja na guerra, seja num país em paz, mas distante.
    Duma mãe que ultrapassa os fechados horizontes que conhece, para o ver, para saber se está bem...

    O Quito sabe comover-nos, porque sabe escrever.
    É um dom inato.
    Escreveria bem, sempre! Mesmo que as circunstâncias da sua vida tivessem sido outras.

    Mas certamente, escreveria sobre outras temáticas, mais assépticas, menos comoventes, menos sensibilizantes.
    Porque lhe faltaria à agilidade da pena o comando do coração e a envolvente sentimental que a vida que viveu lhe foi moldando.

    Por isso eu repito:
    Ainda bem que o Quito é como é...

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  2. Passaram 42 anos, sobre estes acontecimentos...

    Um dia, prometi a Maria Lourenço, que contaria sua inacreditável história. A saga de uma mulher do povo, envolta num xaile, que desafiou a Europa na procura de um filho. Promessa cumprida...

    Dormiu, na Estação de Bruxelas, com a foto do filho na mão. Mas venceu...

    Há meses, João Diogo e Eva Karol, no silêncio do meu escritório, contaram-me pormenorizadamente toda esta aventura. Eva, mostrou-me aquela fotografia com que a sogra percorreu a Europa e que guarda como um tesouro.. A tal fotografia, do homem que ela reconheceu à saída do taxi, e que um dia viria a ser seu marido...

    Esta história é vasta. Dava um romance. Fica, em traços gerais, o essencial do que se passou e para isso tive que fazer uso do poder de síntese...

    João Diogo, emocionou-se muito ao recontar esta história. Chorou e pediu-me desculpa. E eu disse-lhe, e volto a repetir-lhe, que os homens também choram...

    Apenas uma contrariedade. Não quis que os nomes verdadeiros dos protagonistas fossem revelados. Tive que aceitar e respeitar...

    Este texto, é dedicado ao João Diogo, a Eva Karol e a seus filhos, que também conheço ...

    Mas, principalmente, a Maria Lourenço. Não é preciso ser-se uma mulher grande, para se ser uma grande mulher. Pequenina, de bengala e um sorriso de menina, Maria Lourenço, que há muito já passou as nove décadas de vida, repousa agora num lar de idosos da região, das batalhas da sua vida...

    Para ela o meu respeito. E um beijo.

    E um abraço para Bruxelas ...

    Ao Rui Felício, agradeço o extenso comentário. É apenas a amizade, que o faz falar assim ...

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  3. O João Diogo teve a coragem de , sob enormes riscos de captura, ter sido coerente com os seus ideais e a sua decisão é tanto mais louvável quanto sabia que não teria ajuda da família do ponto de vista financeiro.
    Valeu-lhe a solidariedade de uma organização politica para lhe arranjar trabalho numa cidade distante e desconhecida.
    Muitos outros tiveram essa coragem, alguns deles do nosso Bairro e por isso são também credores da nossa admiração.

    Não estendo porém esta minha admiração a alguns outros, que também se exilaram da ditadura, mas a quem não faltava a mesada gorda que as suas aristocráticas ou burguesas familias lhes faziam chegar, para lhes sustentarem o exilio dourado em caros colégios suiços ou franceses onde se formaram ou por onde passaram.

    Admito que os ideiais fossem formalmente semelhantes, mas não confundamos os sacrificios nem as coragens.

    Fazê-lo, seria retirar ao João Diogo a razão justa do seu orgulho...

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    1. A coragem não a relaciono com o estrato sócio-económico porque o pobre, o remediado ou o rico podem ser igualmente ou não corajosos. São pessoas com caracteríticas da personalidade que os molda para avançar ou recuar conforme a coragem que lhes é intrínsica... As condições económicas já fazem com que os sacríficios sejam de graus diferentes.
      Vejo assim mas não sei se estou correcta ou não.

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    2. Coragem é a firmeza de ânimo ante o perigo, os reveses, os sofrimentos.

      O perigo que espreitava os jovens de fracos ou nenhuns recursos era muito maior do que aquele que corriam os filhos de famílias influentes e poderosas que o poder instituído protegia e respeitava.

      Portanto é incomparável o grau de coragem entre uns e outros.

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  4. Eu chamo-lhe Mãe Coragem...
    Uma situação entre muitas que se denrolaram,na altura e contada com a tua emotiva escrita e quiçá vivência!

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  5. E lidos o texto do Quito e os comentários do Felicio...não sei dizer mais nada.
    Um beijo aos dois

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  6. Quito é uma estória real que me impressionou bastante.
    Factos bem bem narrados a partir do testemunho dos próprios intervenientes, conforme explicas no teu comentário e que complementam o texto.
    Apreciei também e muito o comentário do Rui Felício, que acho extraordinário!
    Assenta-te "como uma luva"!!
    Um abraço aos dois.

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  7. A Ló tem razão, depois do texto e dos comentários do Rui, nada, mais nos resta para dizer!
    Fiquei com uma lágrima malvada a querer escapar!
    Um extraordinário texto!
    Obrigado, Quito!

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  8. Uma Maria, portuguesa e bem corajosa, que hoje o Quito nos traz à conversa e um relato, real e intenso, com um final tão feliz!
    Abençoadas mães.
    Obrigada Quito por nos transmite, como tu tão bem sabes, estes episódios que retens na tua memória.

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  9. Quase que me ia escapando este texto do Quito, porque afogado na voragem do tempo do blogue.
    Este "amor sem barreiras, de uma mãe por um filho" tem a qualidade literária a que o Autor já nos habituou e que me dispenso de realçar.
    A Ló, com a sua capacidade de síntese, consegue dizer tudo quanto é necessário dizer.
    Só me resta agradecer este "bocadinho" delicioso que me proporcionaram.
    Tomem lá um grande abraço.

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