sexta-feira, 30 de novembro de 2012

NAS MARGENS DE UM LUGAR AUSENTE ...


Freixial do Campo. A agonia de um moínho ...
 Há mais de seis décadas, que navego no caudal do Tempo. Seis décadas a remar, num rio de tormentas e de bonança. E hoje, aqui, neste rincão, sinto que atraquei nas margens de um Lugar ausente. Freixial do Campo se chama, este meu cais de solidão.
No coração do povo, sento-me junto do fontanário. Um ténue fio de água, vai caindo no regaço lodacento de uma concha, feita de pedra tosca. Apenas o barulho da água cristalina, trespassa o silêncio da tarde clamorosa de luminosidade, a contrastar com o granito escuro das casas humildes, alinhadas nas margens de cada viela. Por ali, todos os dias, passam destinos cruzados. O Destino das gentes que regressam da labuta da terra e lhe revolvem as entranhas na luta pela sobrevivência. Mas há os outros. Os que, em grupo, sobem a rua estreita. Acolá, no início da aldeia, a camioneta da carreira parou, para que se pudessem apear. Vêm da cidade e, na mão, pendente entre os dedos, os sacos de plástico transparente, onde repousa a marmita do almoço comido na fábrica, nos subúrbios da cidade. Por momentos, é assim, quando o sol já se esconde para lá do Moradal. A aldeia ganha vida, para, como por magia e segundos depois, se esvaziar e de novo mergulhar na sua letargia de séculos.
De novo fico só. Apenas a Ana, curvada sobre a  bengala, me olha com as suas faces rosadas e uns olhos grandes e expressivos. Dou comigo a pensar, como deveria ser bonita aquela mulher. Mas também dou comigo a refletir que segredos, que tormentos, que sabedoria, encerrará o Sacrário da sua cabeça cansada, de cabelo liso derramado sobre os ombros. Ao lado, ali ao lado, é o café do Calmeiro. De estatura avantajada, arrasta penosamente os pés, onde moram umas enormes sandálias. Por detrás das fitas coloridas, pendentes na porta, como obstáculo à entrada de moscas, chama-me para dois dedos de conversa. Entro então no estabelecimento e o Calmeiro vira-me as costas. Lentamente, dirige-se para o balcão, de onde traz as duas bebidas que nunca me deixa pagar. Regressa, em silêncio, no seu passo lento, revelando dificuldades na locomoção, as calças presas por um par de suspensórios, que vai afagando com um trejeito que há muito lhe conheço. E é por detrás dos óculos grossos e gastos, sentado comigo à mesa, que me fala da Vida. Das doenças e do desencanto. Dos filhos que partiram para a capital. Da mulher, companheira amiga de tantos anos, o seu porto de abrigo que, com ele, partilha muitas horas de balcão, na esperança dos clientes que cada vez aparecem menos. No fim, sempre no fim, com a sua mão enorme e avassaladora, cumprimenta-me num gesto de despedida. É um homem emotivo, o Calmeiro. Fica sempre com uma lágrima no olho, na hora da partida. E eu, de regresso às planícies sem fim, que se esgotam no horizonte da minha pálida existência, vou meditando nos percursos esconsos da Vida. E se o Calmeiro partir, pelos caminhos da Eternidade antes de mim, religioso que é, rezar-lhe- ei uma breve prece. Porque vou sentir a sua falta.
Quito Pereira      

24 comentários:

  1. “Eram dez anos de vida num corpo franzino mas sonhador. E quando digo sonhador, é porque nos momentos que não olhava o rebanho que guardava, olhava os céus e os horizontes distantes, procurando neles descobrir uma profissão que me ajudasse na vida.”

    Quem assim escreveu foi Francisco Magueijo, poeta popular nascido em Freixial do Campo.
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    Quem mo deu a conhecer foi o Quito num texto que publicou talvez há uns dois anos, e, à custa do qual, desde então para cá, associo sempre este nome a esta aldeia, como se de um reflexo condicionado se tratasse.
    Na linha daquele memorável texto que tanto me impressionou, e com a mesma e habitual matriz literária, vem hoje o Quito apresentar-nos uma figura, o Calmeiro, que do ponto de vista humano não ficará atrás de Francisco Magueijo.

    Freixial do Campo, como outras aldeias das vizinhanças, muito ficam a dever a Quito Pereira, pela divulgação daquilo que caracteriza os aglomerados populacionais, mais do que o casario: as suas gentes e figuras marcantes.

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    1. Não esqueceste, Rui, o Francisco Magueijo, poeta - popular. De facto, muito estimado pelas gentes de Freixial, mas também de Juncal do Campo, onde, em sua homenagem, existe uma placa com um poema seu ...
      Obrigado pelo comentário, sempre estimulante ...
      Um abraço

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  2. Este é o Quito que conhecemos, ou melhor dizendo: O nosso Quito!
    Observador, sensível, bom ouvinte, humano, conselheiro e amigo!
    O primeiro parágrafo é o início de um belíssimo poema, poema que vem logo de seguida com um texto cheio de humanismo e sensibilidade. A prosa mistura-se com a poesia de tal forma que no final, só nos resta dizer: Muito bom! Gostei!

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    1. Na altura não te lembravas, meu caro Alfredo, mas a nossa amizade já vem de longe. Foi em casa da Dona Isabel e da Lena Garcia, ambas amigas de minha mãe.
      Que dizer-te, Alfredo? "Matas-me" com mimos !!! É a tal amizade que nos une, a falar por ti ...
      Abraço para ti e para a Daisy ...

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    1. Obrigado, Tonito. Esta semana foi difícil, pelo motivo que todos sabemos. Sei da amizade que te ligava ao Rui Lucas. Se para nós foi triste, percebo que para ti foi um desaparecimento que muito te doeu. Por isso, me lembrei, cá de longe, muito de ti. E também por isso, te envio um abraço amigo ...

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  4. E, na despedida, o Calmeiro fica de lágrima no olho e o Quito, o nosso sentimentalão... imita-o!
    E nós, imaginamos a cena, tão real quanto a descreves, deixamos também transparecer a emoção.
    Um abraço, grande.

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    1. O Calmeiro, Celeste Maria, é um homem bom. Trigo sem joio.
      Obrigado, pela colaboração ..

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    2. E, claro, um abraço, Celeste Maria ...

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  5. As histórias das belas pessoas das aldeias as quais são puras,sensíveis,delicadas e sempre a agirem de uma forma genuina e simples...a tu,Quito, és um deles nestas atitudes e comportamentos!
    Leio o que escreves e penso na tua autenticidade,gémea da das personagens que nos dás a conhecer... Beijo merecido te dou.
    Parabéns!

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    1. Obrigado, Olinda, por também apareceres. Muito satisfeito fico, por me acompanharem nos meus monólogos ...
      Desejo que estejas melhor e que recuperes rapidamente.
      Um abraço

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  6. Rai's parta o Jornal do Fundão, que perde estas pérolas do nosso Interior!

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  7. Não digas mal do melhor semanário regional nacional, que a conversa fica azeda ...
    Toma lá um abraço, carais !!!

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  8. Agora aqui me encontro eu, depois de ler o texto duas vezes.
    A primeira logo de manhã e a outra meesmo agora, que peguei novamente "ao serviço"!
    Como já várias vezes referi estes textos do Quito e também do Rui Felício, são sempre bem vindos, pois permitem-me ler e apreciar boa escrita, já que normalmente só leio jornais!
    É o caso de mais este belíssimo texto do Quito!
    Mais uma vez para realçar o que sente pela tristeza que o invade pela desertificação do interior do país, neste caso - "Freixial do Campo se chama, este meu cais de solidão!"
    Desta vez ficámos a conhecer mais uma personagem que vive no Freixial do Campo, o seu amigo Calmeiro.É um relato que me impressiona e que não nos deixa indifrentes pela descrição que faz do amigo Calmeiro:"De estatura avantajada, arrasta penosamente os pés, onde moram umas enormes sandálias" Estou a vê-lo à minha frente - e nunca o vi!
    Duas bebidas afinaram as gargantas para o amogo Calmeiro desfiar o que lhe vai na alma, os seus lamentos, a ausência dos filhos, as doenças e o desencanto pela vida que carrega,agora na velhice e partilhada por sua mulher!
    Como os clientes são poucos e talvez pouco conversadores, estou convencido que sempre que o visitas será muita a sua satisfação!Nestas circunstâncias tu, Quito,és o amigo certo que o amigo Calmeiro gosta para conversar!
    Desta vez o Jornal do Fundão não vai perder este texto!


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  9. De novo, revisitando este espaço, um abraço ao Fernando Rafael, com quem estive há momentos, na nossa bela cidade ...
    Obrigado, pelas considerações com que brindaste o texto ...
    Das povoações da zona, Freixial do Campo será, talvez, a que mantém a traça mais antiga, mantendo o seu núcleo de outrora, no coração da aldeia, praticamente intacto, com casas graníticas e escuras...
    Um abraço, Fernando ...

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  10. E agora à meia noite dez aparece o BobbyZé, a dar os parabens ao nosso amigo Quito pela beleza literària de mais um fascinante texto!Vai-me acompanhar num sono repousante, bem necessàrio para limpar amanha a neve que vai cair esta noite!!
    Lidos cà longe, os teus textos sao autênticas pérolas!!!A leitura captiva-nos e a nosso imaginàrio transcende de ruralidade!!!!
    Amanha estaremos com 4°abaixo de zero!O Calmeiro, de sandàlias, nao aguentaria!!
    Grande abraço!

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    1. Chegaste depois da meia noite, mas chegaste a horas. Se te fica na cabeça o imaginário de uma aldeia da Beira, a mim fica-me o imaginário dos flocos de neve. Lá para Janeiro e Fevereiro, a Estrela vai vestir-se de noiva e vou ter a oportunidade de a ver do Salgueiro, a cerca de 6O Km de distância. Em dias de grande nitidez, conseguem distinguir-se as duas torres desactivadas da Força Aérea ...
      Um abraço para ti e Beth ...

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  11. "Freixial do Campo se chama, este meu cais de solidão", assim inicia o Quito este seu profundo olhar sobre uma aldeia que lhe serve de inspiração, que lhe dá o mote para mais um fantástico texto que li e reli com o prazer único que é o de saborear uma prosa fluída que transforma as palavras em imagens. Imagens que, pela riqueza da fluência da escrita, chegam à sonoridade, chegando a ser audível o barulho da água cristalina que trespassa o silêncio da tarde.
    Mas, e como sempre, é nas vidas duras do povo da aldeia que o Quito concentra a sua maior atenção. Pela sua escrita, para a posteridade regista figuras como as da Ana ou Calmeiro. São heróis descobertos pela argúcia, capacidade de observação e a enorme sensibilidade do Quito.
    Sem nunca ter visitado Freixial do Campo, começo a conhecer a aldeia como se por lá tivesse passado várias vezes.
    Sem nunca ter visto Ana, por ela fiquei com estima; sem nunca ter falado com Calmeiro, fiquei com vontade de entrar no seu pequeno café para com ele dar dois dedos de conversa.

    Quito, parabéns.

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    1. Eu sabia, meu caro Viana, que ias passar por aqui. Estes são temas que te são caros. Não és um Homem indiferente ao que se passa à tua volta. Ou, pelo menos, a tudo o que realmente merece um olhar atento na nossa vida colectiva. Seja ela no bulício das grandes cidades ou junto ao fio de água de uma fonte, no recato de uma aldeia. Por isso te agradeço a prosa, agradecimento extensivo a todos os outros amigos...
      Ontem e hoje, estivemos todos à lareira, com o Calmeiro e contar histórias de antanho e a Ti' Ana a alimentar a fogueira, com as achas da amizade solidária, que é a matriz destas gentes ...
      Um abraço para ti e Olguita ...

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    2. Obrigada pelo abracinho e por mais um texto maravilhoso !
      Continua, amigo Quito, porque nos vais alimentando a alma.
      Beijos para ti e para a São.

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  12. Maravilhoso "cais de solidão" que te deixa expressar, de forma tão bela, a tua sensibilidade e descrever-nos, com todo o realismo, os ambientes em que te (nos) inseres
    Abraço para ti e para a São

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  13. Obrigado Ló, por também te sentares à lareira da amizade. No nosso caso, de uma amizade que perdura desde a nossa infância ...
    Um abraço ...

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