Ia entrar para a primeira classe em Outubro seguinte. Mas desde há uns meses que o meu pai se servia da cartilha maternal de João de Deus, para me ir ensinando as primeiras letras. Como muitos estarão recordados, este método consistia em ensinar às crianças as sonoridades dos fonemas, a importância e a intensidade tónica das vogais na formação das palavras.Começava por inserir na mente do aprendiz a correspondência dos sons com a palavra escrita.Decompunha os vocábulos em sílabas e o professor atraía a atenção da criança pronunciando a sonoridade do fonema ao mesmo tempo que apontava para as letras desenhadas na cartilha e que formavam a sílaba.Desta forma, o aluno aprendia a relacionar o som que o professor executava, com o desenho das letras que lhe correspondiam e que ele apontava.
Mesmo sem ter ido ainda à escola, já conseguia “ler” quase todas as palavras mais simples, embora em muitas delas lhes desconhecesse o verdadeiro significado.
Naquele início de Setembro íamos, a minha mãe, o meu pai e eu, acompanhados por uma grande quantidade de trouxas, malas e maletas, a caminho da Figueira da Foz passar a habitual primeira quinzena de férias numa casa alugada a uma família de pescadores na Ponte do Galante. Era uma aventura inesquecível aquela viagem de combóio que apanhávamos na Estação Velha, depois de o Adelino, nosso vizinho, nos ter até lá transportado no seu táxi, um Citroen arrastadeira que eu considerava um luxo.
Encantavam-me as portas todas a abrirem-se em cada apeadeiro, o silvo da locomotiva, o fumo da fornalha misturado com o vapor da caldeira, os bancos de ripas envernizadas, a fuligem a entrar pelas janelas abertas tisnando-nos a pele mesmo antes de a tostarmos ao sol da praia. Deliciava-me com a azáfama dos passageiros a entrar e a sair nas sucessivas estações onde a cada passo parávamos: Bencanta, Espadaneira, Formoselha e o fim da primeira grande etapa em Alfarelos. O combóio, ali, quedava-se uma boa meia hora para aguardar pelo transbordo de quem vinha de Lisboa com igual destino da cosmopolita praia da Figueira. De rodilha à cabeça, carregadas com um grande alguidar de zinco, várias mulheres cirandavam numa roda viva pela gare da estação, apregoando água fresquinha em pequenas bilhas de barro. Com um prolongado apito o Chefe da Estação dava o sinal da partida. Ouvia-se o ranger de ferros, os corpos dançavam com os solavancos das carruagens a esticarem as engrenagens que as ligavam entre si, as rodas da locomotiva patinavam nos carris luzidios e finalmente o comboio começava a ganhar lentamente velocidade.
Com a entrada de passageiros vindos do sul, a carruagem ficou à pinha. Observava em silêncio a paisagem do Vale do Mondego que ia deslizando lentamente do lado de fora, com as longas várzeas polvilhadas aqui e ali por pequenas casas que pareciam boiar na água. Passámos Verride e depois a bifurcação de Lares e o meu pai procurou explicar-me que os comboios que iam para Lisboa se desviavam ali, apontando-me a linha que ficava à nossa esquerda.
Mais à frente, na Fontela, observei o edifício da estação enquanto o comboio ali esteve parado. Lembrei-me dos ensinamentos da cartilha de João de Deus e soletrei, compenetrado, alto e bom som, as três sílabas que alguém tinha escrito a carvão em letras gordas na parede branca, por cima dos azulejos. Desconhecia-lhe o significado, mas o importante era mostrar que já sabia ler.
Antes que alguém reagisse, repeti orgulhoso a sonora palavra, mais uma ou duas vezes, martelando as silabas e apontando o dedo para a parede da estação. Depois de uns instantes de silêncio e perplexidade, os passageiros que seguiam na carruagem voltaram-se para mim. Uns, circunspectos, abanavam a cabeça, a maioria ria-se às gargalhadas.
A minha mãe chamou-me malcriado. O meu pai disse-me ao ouvido para me calar porque essa palavra era uma asneira.
Mas ninguém me explicou mais nada…
Rui Felicio
Nós, nenhum de nós,foi romeiro da vida sem caminhar pelos carris de um comboio. Todos temos recordações. Boas e menos boas, consoante o destino. Alguns,que fizeram da pena a sua forma de comunicar, começaram os seus romances ao sabor dos solavancos de uma locomotiva. "Pelas nove da manhã desse dia de Setembro, cheguei enfim à estação de Évora. Nos membros espessos, no crânio embrutecido, trago ainda o peso de uma noite de viagem". Assim nos confidencia Vergilio Ferreira, em "Aparição".
ResponderEliminarMas o comboio é também feito de memórias de viagens triunfais. E o Rui Felício, começando pela doce lembrança da cartilha maternal, lá palmilhou as planícies dos arrozais e campos sem fim, numa lembrança milimétrica de todos os locais por onde a composição passava, rumo à praia da claridade.
No bornal, trouxe-nos uma encapotada saudade pelos pais. Também a saudade do apito do comboio (ai o meu Choupal dos fins de tarde e o silvo agudo que trespassava a Mata, que ferida fui eu agora abrir !). E foi a soletrar a cartilha maternal, que nos ofereceu uma viagem feita em tons de prosa - poesia, que vamos lendo embevecidos, sentados nos bancos de ripas envernizadas, enquanto a fuligem entra pelas janelas.
Também não se esqueceu do fumo da fornalha misturado com o vapor da caldeira.
Mas, percebe-se ao correr da narrativa, que a fornalha é mais de emoções, a que o toque inocente do soletrar de uma palavra proscrita na boca de uma criança, não é mais que um livro colorido de infância que se reabre, na Estação das nossa memórias ...
Oportuníssima a tua citação de Vergílio Ferreira!
EliminarBeirão dos quatro costados, que nos diz como só ele sabia dizer, uma verdade que todos acolhemos no nosso imaginário.
A de que o transporte ferroviário era e ainda é mais do que um meio de locomoção.
É um ambiente, um mundo diferente que marca para sempre todos quantos tiveram a sorte de nele se transportarem...
Obrigado Quito pelo teu excelente comentário!
Aqui...não páro...não escuto, nem olho! Leio e releio! Excelente! Só podia ser! Oh pá!!! Estamos numa idade "perigosa"...e "à"(?) emoções e emoções!!!Mas quando gosto...sou de lágrima fácil! Abraço Rui Felício.
ResponderEliminarE eis que, da Cartilha Maternal de João de Deus, nos sentimos transportados para uma doce aventura, para mais uma viagem que a memória e a imaginação do Rui Felício nos oferece.
ResponderEliminarFica-me a curiosidade de saber quais seriam " as três sílabas que alguém tinha escrito a carvão em letras gordas na parede branca " ...
Logo tu, Carlos Viana, nascido de cepa nortenha, é que vens alegar com falsa ingenuidade, que não sabes quais as silabas que formavam a palavra soletrada. É obra, carago!
EliminarLogo tu, vilão...
EliminarAquele abraço.
Mais um excelente "boneco",Rui.
ResponderEliminarAnualmente,e também em Setembro,lá rumávamos à Figueira a partir da Estação Nova.Para mim,a viagem começava a partir da Estação Velha.Primeiro era o atravessar da ponte e a chamada de atenção para a beleza da nossa cidade;por alturas de Taveiro surgiam as gamelas do barro,suspensas nuns cabos de vai-vem;e a grande indústria:a fábrica de tomate;antes de Montemor tínhamos os toiros e os cavalos;a estação de Verride,com o seu jardim cheio de miniaturas,era uma beleza;quando chegávamos à Figueira já tinha o lençol preto!(minha mãe costumava pôr-me uma espécie de lençol a embrulhar-me,para não estragar a roupa...);da estação da Figueira lá íamos na camioneta até Buarcos para uma casa que utilizávamos todos os anos.
A minha memória já é do tempo em que sabia ler e escrever e,fora dos combóios,já tinha aprendido um bom lote de palavrões...
Continuo a preferir a ferrovia e acho uma imbecilidade ter sido abandonada.
Utilizei esse meio de transporte desde miúdo;fiz nele o meu primeiro grande percurso pela Europa;aos meus filhos,pelos 16 anos,ofereci a todos um Eurorail.
Obrigado pelas memórias que me trouxeste.
Claro que como de costume é um texto muito bem escrito e que a propósito da Cartilha de João de Deus nos deliciámos com a viagem de combóio para a Figueira da Foz- VIA ALFARELOS!
ResponderEliminarPois se a cartilha ensinou a juntar as palavras...então não escapou nada que estivesse escrito nas paredes pelo caminho!Sim nesses tempos o palavrão que imaginamos que foi bem lido...era mesmo palavrão...agora é água bórica!
Por Cantanhede também passava o combóio para a Figueira via Pampilhosa.
Nos dias de Feira em Cantanhede era o máximo com tudo que era bicharada e hortaliças para vender na feira!
Por graça costumava-se dizer que passava pelas estações ou apeadeiros de Murtede, Cantanhede,Lemede, Arazede e...Montemorede!
Obrigado Felício.
ResponderEliminarTonito.
Formidável.Foi muito bom recordar a viagem de comboio de Coimbra à Figueira.
ResponderEliminarTambém a fazia todas as férias de verão com os meus pais e avó.
Gostei muito.Obrigada Rui Felício. Um abraço.Nanda
Formidável.Foi muito bom recordar a viagem de comboio de Coimbra à Figueira.
ResponderEliminarTambém a fazia todas as férias de verão com os meus pais e avó.
Gostei muito.Obrigada Rui Felício. Um abraço.Nanda
Agradeço os comentários.
ResponderEliminarPouca terra, pouca terra, uuuuh!!!
ResponderEliminarÁaaaagua e biiiiilha...
Lá vamos até à Figueira da foz, mas hoje embalados pelas palavras do Rui Felício.
A paragem que eu mais ansiava era em Verride, pois tinha um jardim com esculturas de crianças a brincar e, porque já faltava pouco para chegar!
Também aprendi a ler pela Cartilha Maternal, com 5 anos e a frequentar o Jardim Escola João de Deus, do qual guardo ótimas recordações de infância!
O método silábico ajudava a memorizar os sons.
Ainda conservo a Cartilha e O Livro da Capa Verde!
A Celeste veio recordar uma coisa que não referi no texto.
EliminarÁgua e Bilha era o pregão porque o passageiro, de facto, ao comprar a água estava a comprar também a vasilha.
Amigo Rui, mas que recordação me trazes à memória...a ida de comboio para as férias na Figueira da Foz era sempre um momento ansiosamente aguardado.
ResponderEliminarA viagem naquele tempo justificava uma merenda a meio do caminho que a minha mãe sempre arranjava. Como recordo... aquele sabor único duma sandes com um omelete de ovo de sabor inigualável.
Os campos de arroz.
A chegada à estação da Figueira e o transporte numa charrete puxada a cavalos até ao Viso para a casa que habitualmente alugávamos.
A ida imediata à mercearia do Sr. Paulo comprar um garrafão de água do Luso e à farmácia pesar-nos era um ritual que se cumpria todos os anos.
Como sempre o teu texto está excelente, e as descrições que fazes fizeram-me lembrar Mark Twain e os relatos das suas viagens que em tempos me empolgaram. Foi também no Jardim Escola João de Deus que aprendi as primeiras letras e parece ainda ter na boca o sabor da sopa de fajão frade...
Obrigado Rui por nos teres transportado nesta viagem pelo tempo das nossas memórias.
O Abilio aporta-nos uma recordação de que já não me lembrava. A da pesagem à chegada e depois no fim das férias, para aquilatar dos efeitos do periodo em que iamos a banhos. Supostamente para regressarmos mais gordos e saudaveis...
ResponderEliminar