sábado, 31 de março de 2012

ENCONTRO COM A ARTE! CONTOS DA DAISY

CONTOS
da
DAISY

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A NOITE

Rui, deixa a tua filha dormir sossegada, o sono que ela e os inocentes como ela são capazes de dormir. Deixa-a sonhar e vem comigo descobrir as maravilhas desta noite de luar, sem pensar no que a Lua significa, agora, para a Humanidade: não mais o ponto inatingível com que todos sonham, não mais a poesia de a oferecer como a coisa mais cara aos nossos corações.
        Anda, vem daí, calça os teus sapatos azuis, de pano, e vem comigo correr através destes lameiros, sentir a erva húmida da água que escorre pelos pequenos regos, bater no peito do pé e respingar pela perna acima.
        Deixa, deixa bem longe essa tristeza da perda de alguém, e vem comigo.
        A brisa que sopra parece querer levar, para longe de nós, todas as preocupações dos nossos espíritos. A água que começa a encharcar-nos os pés, vem refrescar-nos e compensar-nos do calor abrasador que sofremos esta tarde.
        Sinto a tua mão, frouxa, a segurar a minha. Dei que estás longe. Tão longe como aqueles pontos esbranquiçados que brilham, lá em cima, no céu escuro sem fim.
        Os grilos e as cigarras cantam alegremente. À nossa esquerda, o rio da Telhada passa num doce marulhar por entre os calhaus.
        Não ouves, Rui? Não sentes todos estes ruídos nocturnos impossíveis de entender quando o sol brilha? Ao sabor da brisa, os amieiros parecem cantar, em surdina. Das montanhas, lá ao fundo, vem um som grave e prolongado.
        Percebo que choras. A tua mão separa-se da minha. Não pares. Dá-me a mão. Corre comigo pela erva macia e deixa que o vento seque as tuas lágrimas. A brisa mansa transforma-se, a pouco e pouco, em vento forte que nos fustiga as faces. Corremos. Corremos… As tuas lágrimas secaram. A tua mão aperta fortemente a minha. Sinto os teus dedos de encontro aos meus, tão juntos que semelham formar um todo.
        Apetece-me gritar. Sei que queres gritar, meu amigo. Grita! Deixa que o ar da noite te penetre. Respira profundamente. Descontrai-te.
        Estou cansada. Estás cansado. Mas vejo-te os olhos a brilhar. Sinto, ainda, a tua mão forte a segurar a minha. Vamos para casa. Já       podes  dormir.
        - Nem imaginas o bem que me fizeste, minha amiga.
        Parece outro homem. É outro homem.
        Lá em cima, nas Almas, a mãe espera-nos.
         - Para onde foram? Senti-te sair…
        O seu olhar mira-nos a ambos. Ela percebe. Os outros não perceberão. Foi uma noite como não virá outra. Dentro de mim sinto este vazio de quem se deu todo e não tem mais para dar. Mas o meu esforço não foi em vão. A noite está no fim, vai-se. Hoje não dormirei. Amanhã também não. Não sei se deva dormir à noite. A noite não é para dormir!
2 de Julho de 1970



Desenho: Zé Penicheiro

7 comentários:

  1. É com todo o prazer que publico mais este bonito conto da Daisy!

    Mas há mais!

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  2. A escrita da Daisy, tem uma marca própria. É sua impressão digital.
    Bela poesia - prosa, porque é assim que eu leio este texto, a respirar de emoções e sentimentos, que a autora faz fluir pela sua pena.
    "Anda ,vem daí, calça os teus sapatos azuis de pano,e vem comigo correr através desses lameiros" ...
    São os lameiros de Trás-os-Montes, o apelo às origens,de uma terra que encanta quem por lá passa. Recordo o gado a percorrer solitário as estradas e os lameiros. E o os telhados cor - de - prata, a brilhar com o gelo que caiu no silêncio da noite. As chaminés a fumegar, naquele vazio espacial. Mas também as noites de Verão e "o doce marulhar do rio da Telhada por entre os calhaus" ...
    Um belo conto, com mais de quatro décadas. Mas que se lê e se volta a ler, hoje ...e sempre.
    Um abraço Daisy.

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  3. Não é um paradoxo! Convencionou-se que a noite é para dormir, mas de facto não é.
    A noite é para sonhar...

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    1. Os mais radicais dizem que de noite vive-se e de dia vegeta-se...

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  4. A Daisy escreveu este conto em Julho de 1970, um ano após a primeira alunagem.

    "Deixa-a sonhar e vem comigo descobrir as maravilhas desta noite de luar, sem pensar no que a Lua significa, agora, para a Humanidade: não mais o ponto inatingível com que todos sonham, não mais a poesia de a oferecer como a coisa mais cara aos nossos corações."

    Só a Daisy me poderá dizer se estou na Lua...

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