segunda-feira, 5 de março de 2012

NOTA FALSA


Ao fim do dia, estava o Manel das Cabras na taberna do Leonildo na Arregaça, como sempre fazia depois de recolher o rebanho no redil, após mais uma jornada de pastoreio pelo cavalo selvagem e pelo pinhal de Marrocos. Tresandando a bedum, apoiava os cotovelos em cima do balcão de pedra , e entre dois dedos de conversa com o Leonildo, ia bebendo o seu copo de tinto enquanto mascava uma tira de torresmos, que ajudava a empurrar pela goela com uma côdea de broa. Viu entrar um sujeito todo bem enfarpelado, que ele por ali nunca tinha visto nem mais gordo nem mais magro, com o cabelo de risco ao meio a luzir da grossa camada de brilhantina que o engordurava.
O tal fulano pediu um café, aproximou-se dele e chamou-o de parte. Mostrou-lhe, sorrateiramente, um molho de notas de conto de réis novinhas em folha e perguntou-lhe em voz baixa para mais ninguém ouvir, se ele queria ficar-lhe com as notas ao preço de 100 escudos cada uma.Era fácil perceber que se tratava de um passador de notas falsas. O Manel das Cabras, primeiro disse que não, mas perante a insistência do outro, acedeu a pegar numa delas. Mirou-a de um lado, remirou-a do outro, apalpou-a, deslizou-a demoradamente entre os dedos grossos. A falsificação estava tão mal feita que, mesmo em noite de breu, até à légua se via.
Desdenhosamente, escarrou com asco para o chão pegajoso da tasca e devolveu-lhe a nota:
- Pegue lá isso! Você é maluco! Essas notas nem a um cego se conseguem passar!
Que não, que ele estava a exagerar, que as notas eram iguaizinhas às verdadeiras, retrucava o outro. Além disso, ele estava a oferecer-lhas por dez vezes menos do que o seu valor facial.O Manel das Cabras, foi desfazendo na mercadoria, encheu-a de defeitos, insultou o outro, regateou. Mas ao fim de algum tempo fecharam negócio e acabou por lhe ficar com o molho de notas ao preço de 50 escudos cada uma.
Dias depois, apareceu na taberna, junto com o irmão, o Felisberto Sousa, negociante de gado que lhe costumava vender ovelhas e cabras. Vinha-lhe cobrar uma divida de 15 contos, do último fornecimento. O Manel das Cabras cumprimentou-os, sentou-se com eles a uma mesa e pediu um jarro de tinto. À medida que ia bebendo, a sua voz entaramelava-se, as palavras enrolavam-se e ia repetindo que sim senhor, que estivessem descansados, que já lhes ia pagar os 15 contos. Mandou vir mais um jarro e encheu o copo pela décima vez. 
- Oh amigo Felisberto, você importa-se que lhe pague com notas de 500? É que não tenho aqui notas de conto…
- Ora essa, claro que não, Sr. Manel! Pode pagar como quiser!
O Manel abriu a carteira ensebada e os outros viram sair lá de dentro um grosso molho de notas.  Não de 500 mas sim de conto! O Felisberto piscou o olho ao irmão e sussurrou-lhe para que ficasse calado. O Manel estava tão bêbado que já confundia as notas de conto com notas de 500, explicava em surdina ao ouvido do irmão. Ficaram a observá-lo, cambaleante, perdido de bêbado, a contar, pausadamente, cuspindo de vez em quando no dedo, trinta notas para lhes dar. O negociante de gado recebeu-as e apressadamente enfiou as trinta notas no bolso sem para elas sequer olhar, receoso que o Manel desse pelo engano e se arrependesse.
Ao contrário do que era prática, mal articulando as palavras, tal era já a bebedeira, o Manel exigiu um recibo, que ele próprio lhes ditaria. Porque há viver e há morrer, explicava ele numa voz arrastada. Manias de bêbado, pensou o Felisberto, encolhendo os ombros e arqueando as sobrancelhas. Concordaram e o Manel começou a ditar e o outro a escrever num papel que o taberneiro lhes fornecera:
-Aos tantos dias de tal mês do ano tal, em tal lugar, recebi do Sr. Fulano de Tal, a quantia de 15 contos de reis, que ele me pagou com 30 notas de 500 escudos cada uma, pela venda de tantas ovelhas e de tantas cabras, feita em tal data, pelo que declaro que fica por este documento quitada a totalidade da divida, nada mais tendo a receber nesta data. Assinado, Felisberto Sousa
No dia seguinte o Felisberto foi à Feira dos Vinte e Três para negociar gado. Entregou ao vendedor com quem acabava de fechar negócio, algumas notas de conto, parte daquelas trinta que no dia anterior tinha recebido do Manel das Cabras, mas o vendedor, ao olhar para elas, disse-lhe para ele ir arranjar dinheiro como deve ser, porque aquelas notas nem um cego as aceitaria, tamanhas e tão obvias eram as suas imperfeições. O Felisberto, furioso, só então se dando conta do logro em que a sua ganância o tinha feito cair, foi-se queixar ao tribunal, acusando o Manel das Cabras de lhe ter pago uma divida com trinta notas falsas de 1.000 escudos, juntando-as ao processo.
O Manel quando  foi chamado ao tribunal, negou que tivesse entregue notas de conto de reis ao Felisberto. Que sim, que era verdade ter-lhe pago 15 contos no tal dia, mas foi com 30 notas de 500 e não com notas de conto, como agora estava a insinuar o Felisberto. Aliás, embora já estivesse com um copo a mais, sendo a sua divida apenas de 15 contos, não lhe entregaria nunca trinta notas de conto. E, mesmo assim, se por engano o tivesse feito, sendo o Sr. Felisberto Sousa uma pessoa séria e honesta, como realmente era, certamente que lhe teria devolvido o dinheiro em excesso.
De resto, podia provar o que dizia, com a exibição do recibo que o Sr. Felisberto tinha assinado, que entregou e ficou entranhado no processo.
O Felisberto é que acabou por ser condenado por tentar passar dinheiro falso na Feira dos Vinte e Três.
 Rui Felicio

15 comentários:

  1. À ganância a inteligência dá-lhe a volta!
    O Manel, não era só inteligente, era também um bom actor e, convenhamos, um grande aldrabão, mas o Felisberto até mereceu...

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  2. Sempre houve, os chamados Chicos espertos!
    Boa estória, como sempre, do Rui Felício.

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  3. Desconfio que me andam a pagar a reforma com "dinheiro falso"...

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  4. O Manel demonstrou ao Felisberto que em negócios todos os cuidados são poucos.
    A história está muito boa e bem urdida. Deve fazer parte dos muitos casos insólitos que povoam os arquivos dos tribunais.
    O Rui Felício fez duma história de dois desonestos aldrabões num belo conto que nos pretendeu até ao fim. Gostei.
    Abílio

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    1. Não é "pretendeu" mas sim "prendeu"...este computador nunca mais aprende

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    2. Já tinha reparado, mas o engano era tão óbvio que toda a gente o percebeu, Abilio. Nem seria precisa a tua rectificação.

      De qualquer forma, tens que ralhar ao computador para que não te comprometa com os seus erros.
      É que a lingua portuguesa é muito traiçoeira e se, neste caso, o lapso não origina qualquer confusão, outras situações haverá, como sabes, em que se pode gerar controvérsia...

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    3. Cá para mim, o que o Abílio pretendeu dizer foi que o Rui Felício pretendeu e conseguiu o que pretendia porque nos prendeu até ao fim.
      A nós prendeu-nos mas dos três vigaristas só conseguiu prender um. Deixou dois à solta e eles por aí andam, mais refinados do que nunca...

      Boa noite, meus amigos.

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  5. A Avidez é como a Gula...
    E foi por ser guloso que o Felisberto morreu, enquanto o Manel das Cabras se salvou graças à argucia de perceber que, perdendo parte do espólio, salvaria o seu desonesto negócio.
    Mas quase que esquecemos o sujeito todo bem enfarpelado, com o cabelo de risco ao meio a luzir da grossa camada de brilhantina que o engordurava...
    Uma autêntica troika de aldrabões, qualquer um deles a merecer dura pena de prisão efectiva.
    O Felisberto, por ser o mais estúpido dos três, lá se deixou apanhar. Os outros dois por aí continuarão, alegres e bem dispostos, como tantos outros que por aí andam e que cometeram crimes bem mais graves...

    Mais um conto à Rui Felício que "de um caroço de azeitona, faz uma história".

    Aquele abraço.

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    1. É bem verdade o que diz o Carlos Viana.
      Os protagonistas da história são dois, mas o móbil, a origem, a razão de ser da necessidade do recurso de ambos às suas respectivas espertezas, só veio à tona por causa daquele que, não sendo protagonista, é o causador dessa necessidade: o tal fulano de penteado de risco ao meio que entrou pelos fundos e desapareceu na sombra, depois de vender bocados de papel impresso a 50 escudos cada um.

      Convenhamos que é papel bem vendido!

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  6. Mais uma "estória" bem contada e como sempre muito bem escrita com final passado no tribunal em que o que se julgava mais esperto a ver a sua esperteza ser premiada!
    Quando comecei a ler pensei que o Manel das Cabras podia ser o Manel Padeiro do nosso tempo do Cavalo Selvagem!
    Mas o Manel Padeiro não era "seboso" e não caía na "estória" das notas falsas!

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  7. Um bairro de memórias...
    Uma história bem contada, que se lê com prazer, com a caraterização deliciosa do Manuel das Cabras e dos lugares.
    Um hino aos "espertalhões" de tempos de antanho. Afinal, ontem como hoje, são histórias que se repetem...
    Semanas atrás, em Castelo Branco, um rolo de folhas jornais, levou a dois idosos as poupanças de uma vida ...
    Manuel da Cabras, o Cavalo Selvagem e o recordado Manuel Padeiro pelo Rafael, um trio que adoça as nossas recordações ...
    Abraço Felício

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  8. História estupenda, Felício. E se a li até ao fim foi quando ia deixar de ler apareceu a personagem de risco ao meio e brilhantina no cabelo.., julgava que era o teu tio benfiquista e quis ler outra história dele!!!
    Um abraço
    Azenha

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