domingo, 4 de março de 2012

COCKTAIL


Quadro de Toulouse-Lautrec


Passadas dezenas de anos, voltou naquele fim de tarde ao Bar Procópio às Amoreiras.
No ano anterior ao 25 de Abril tinha sido frequentador habitual. Desde então, a vida tinha-o levado para outros locais da cidade.
Em noites de amena cavaqueira e utópicos planos conspirativos, em frente a um cocktail de advocaat e peppermint, numa colorida miscelânea de dourado e verde, sob a tépida luz esmaecida do candeeiro da mesa, coada pelo abat-jour com desenhos de Lautrec, tinha ali travado conhecimento com figuras que viriam, umas, como ele, a permanecerem anónimas, outras a destacarem-se, anos mais tarde, na politica, nas artes, na literatura.
Ali estava agora, no cocktail de lançamento do livro “Colectânea de retalhos beirões”, da autoria de um seu amigo de Coimbra, há anos a viver na Beira Baixa, escritor de traço neo-realista, temperado por uma profunda sensibilidade humana.
Com um copo de whisky na mão, petiscando um bolo de bacalhau, depois uma chamuça, ia cumprimentando com um sorriso ou uma frase de circunstância, quem se lhe dirigia ou o abordava, perguntando-lhe se estava tudo bem, por onde tinha andado, que nunca mais fora visto.
Na obscuridade do Bar, um olhar fugaz, inesperado, semelhante a um raio laser trespassando a nebulosidade do ambiente, fixou-se nos seus olhos por breves instantes.
A dona do olhar era uma bela mulher madura, elegante, bonita, que a sua memória lhe garantia ser ela, a Zélia. Seria mesmo? Tinham namorado há muitos anos, numa época em que fazer amor só devia acontecer depois do casamento, ou, quando muito, se o noivado já estivesse comprometido. Fora disso, tudo se resumia a uns abraços, uns beijos, mais ou menos profundos, levados aos limites do convencionalismo, sem os ultrapassar.
O namoro tinha-se desfeito já não sabia porquê.
Aproximaram-se. Sentiu a mão dela agarrar a sua, abraçando-o, e assim ficar longos minutos.
Olhou em redor, receoso que algum dos jornalistas presentes o fotografasse numa situação de intimidade comprometedora. Ele sabia que se tal viesse a público, a sua mulher não iria tolerar que continuassem a viver juntos. Era certo que a perderia a ela e, ainda pior, perderia o seu cão Buba por quem nutria uma grande amizade. Seria impensável viver sem aquele afável cachorro!
Interrompeu estes pensamentos quando a Zélia o arrastou para fora do Procópio, o fez entrar no carro e o levou para o seu apartamento do Principe Real, dizendo-lhe que, desta vez não iria perder de novo a oportunidade, como aconteceu há tantos anos atrás, de fazer amor com ele. Desta vez ela ia entregar-se-lhe, dar-lhe todo o seu calor, até à completa saciedade de ambos.
Quando acordou ao amanhecer, transpirado, ofegante, cansado, achou-se o homem mais feliz do mundo, no momento em que sentiu a mão a ser lambida pelo seu cão Buba que abanava o rabo ao lado da cama.
Não iria perdê-lo! Tudo não passara de um sonho…

Rui Felicio

26 comentários:

  1. O sonho, transmissor do subconsciente, lembrou-lhe o namoro perdido no tempo e que sempre lhe deixara o sabor amargo do inacabado.
    Mas lembrou-lhe, também, o risco de perder a companheira que escolhera para a vida e tudo o mais que a escolha envolvia.
    Um cocktail de uma colorida miscelânea de dourado e verde...
    Optou por acordar do sonho, antes que se tornasse pesadelo, e é o seu fiel Buba que, abanando o rabo, lhe dá a boa nova: "continuas cá!"
    Sentiu-se feliz mas não deixou de pensar que, um dia, havia de fazer uma visita ao Bar Procópio.

    Um cocktail de sentimentos...

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    1. O Bar Procópio foi poiso de gente do "reviralho" de todas as nunces politicas,numa união caldeada pelo objectivo comum de derrube da ditadura. Mais teórica e intelectual do que eficaz, a verdade seja dita.

      O Procópio ainda existe, no mesmo sitio, com idêntico recato decorativo, com igual qualidade nos seus cocktails.

      Duvido que com o mesmo ambiente conspirativo...

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    2. Quando vi esta tua história, sabia que algo de real estaria na tua memória.
      Não sabia o quê. Poderia ser um olhar fugaz, inesperado, semelhante a um raio laser que te remetesse às recordações da juventude.
      Desta vez, o ponto de partida foi o cenário que aproveitaste para revisitar e nos dar a conhecer.
      Também não tive qualquer dúvida, a meio do texto, que o cão iria ser a "chave" do conto. Quando dizes que receava perder a mulher mas, ainda pior, perderia o seu cão Buba...

      Enfim, mais um "linguado" à Rui Felício que me deleita ler.
      Aquele abraço.

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  2. Ah... já tinha saudades dos contos felícios...

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  3. Com contos deste género e outros que se vêm neste blogue, até um analfabeto aprenderia a ler.

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  4. É o que dá whisky com pasteis de bacalhau.
    Com vinho tinto isto nunca seria assim.
    MODERNIDADES.
    Tonito.

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    1. Tens razão, Tonito.
      O Felício escreve muito bem mas não percebe nada de pasteis de bacalhau.
      Nem de tinto, o que é bem pior!

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  5. mais um excelente texto à Rui Felício!
    Sempre li mais alguma coisa...para além do jornal!
    E com prazer!

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  6. Estou de acordo com a interpretação do Tonito.
    Um abraço.

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  7. Ora gaita! A sonhar não vale, até porque lá no fundo, acabou mesmo por enganar a mulher, só que ela não soube...

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  8. No final do texto do Rui, fiquei triste, muito triste mesmo!!!... Então há o lançamento de um livro do grande escritor beirão, de quem também sou um grande amigo e não fui convidado para o evento!?!?!...

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    1. O Alfredo, atento como sempre, referiu o "leitmotiv" deste meu conto, deste meu sonho. Que foi, afinal, o sonho que alimento do lançamento do livro desse nosso comum amigo, agora beirão, mas eternamente coimbrão, para mais, feito num espaço de tertúlia lisboeta.

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  9. Mais um texto, com o cunho do Rui Felício. Uma linguagem envolvente, todo um cenário préviamente preparado e uma amabilidade.
    Um conto bem delineado, que se lê até ao fim com crescente interesse. Uma miscelânea de emoções, bem temperadas ao ritmo citadino, bem longe das realidades campesinas. Um encadeado que poderia surpreender, se não se soubesse que o seu autor é um arquiteto das palavras e dos sonhos que são o condimento da vida.
    Parabéns, Felício ...
    Quito

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    1. Obrigado Quito pelos parabéns.
      Quando este sonho se tornar realidade, não te esqueças de convidar o Alfredo Moreirinhas para ele não ficar agastado, como ficou, e com razão...

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  10. Já tinha saudades de ler os teus escritos que nos deixam na espectativa de um final diferente.
    Continua a sonhar e... depois conta-nos

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  11. Sonhar "ao som" deste texto tão belo é o que vou fazer...
    Também fiz algumas permanências neste bar mas no PREC...bons tempos!
    Olinda

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    1. Com que então, a linda Olinda também conhece o Procópio!...
      E, ainda por cima, no PREC. E eu a ver passar os comboios...

      Ainda bem que o Rui Felício te fez sair do casulo.

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  12. A Olinda sabe mais do que se pensa. Foi e é uma mulher emotiva, de causas sociais, de preocupações sobre os destinos da sociedade em que vivemos.
    Estranhamente, a sua força, verdadeiro terramoto de emoções, a que nos habituou, parece estar a passar-nos ao lado nos últimos tempos, por razões que só ela conhece.
    É por isso que faço esta referência especial ao seu reaparecimento, agradecendo-o.

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    1. pois...é verdade Rui Felício "isto"é mais down que up!
      A velhice é tramada podes crer!!!

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    2. Nem parece teu, Olinda!
      Se alguém de nós não envelhece, és tu!

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  13. Ó Carlos Viana aquilo é que foi... uma revolucionária assumida e consciente! E com intervalos para bons momentos
    de divertimento e etc, etc...
    Agora sou mais de calçar as pantufas e casa!!!

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  14. Nem sempre os sonhos acabam bem mas o Buba (ou Buda de "d" invertido) trouxe-te à realidade sem te deixar mergulhar nesse tropel de prazer e angústia.
    Gostei. Um abraço.
    Abílio

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  15. Nem sempre os sonhos acabam bem mas o Buba (ou Buda de "d" invertido) trouxe-te à realidade sem te deixar mergulhar nesse tropel de prazer e angústia.
    Gostei. Um abraço.
    Abílio

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    1. Espero que essa tua repetição não seja gaguez, amigo Abilio.
      Obrigado. Um abraço para ti também.

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    2. Não sou eu que estou gago mas sim o meu computador que está a ficar cansado de mim...

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