quarta-feira, 9 de maio de 2012

OS ESCRITORES DA NOSSA TERRA ...


São seis da tarde deste dia de inverno e o sol acomodou-se atrás da montanha. Uma temperatura fria, varre o vale que avisto daqui. Estou em Juncal do Campo e os meus olhos espreitam por cima do casario, que se derrama pela colina. Lá no fundo, no fundo do povo, uma coluna de fumo negro, sobe densa e perde-se por entre os olivais. É o fim do ritual do milagre do azeite. Estão a queimar a rama das oliveiras.
Entro, então, na Junta de Freguesia. A funcionária, envolta num grosso casaco de malha, saúda-me. Peço-lhe se me deixa consultar uns livros, num compartimento da casa. Na porta, na porta do compartimento, para que não haja dúvidas, está escrita a singela palavra “biblioteca”.
Generosamente, faculta-me o acesso ao quarto húmido. Numa estante e em cima de uma mesa, muitos documentos. Digo-lhe que procuro livros de antanho, de filhos da terra. De dedo indicador esticado, aponta-me uma prateleira, junto ao teto. Estão ali uma meia - dúzia de obras e, à frente, uma pequena cartolina com os dizeres: “Escritores da nossa terra”.
Sei o que quero encontrar. Procuro o livro “O pão que o diabo amassou”, do Valentim Prata. Lá estava. Fiz menção de o trazer comigo. E trouxe. Mas tive que assinar um pequeno papel, responsabilizando-me pela relíquia. É que o Zé Valentim já partiu e não volta cá, para nos recontar as suas memórias. E hoje, das suas lembranças de criança, dos longínquos anos quarenta, partilho convosco este seu prosar:
“Meu avô, não sabendo ler nem escrever, dialogava, com quem quer que fosse, com muita naturalidade e facilidade. Exteriorizava, com graça e objectividade, a sabedoria e a cultura de raiz que albergava na sua mente. Era um homem de cujo interior brotava, em todos os momentos, alegria e boa disposição. A jovialidade corria-lhe nas veias. Era um humanista (…) . O que eu queria era sempre estar com ele. O seu rebanho ostentava os maiores chocalhos dos arredores. A qualquer hora do dia ou da noite, ordenhava uma cabra para um “coucho”, para a “corna” ou mesmo, para uma poça de qualquer “piçarra”, quando me punha a tetar e, ali, sem qualquer preocupação com fervuras, à temperatura com que esguichava o amojo, ingeria o substancial e generoso alimento que dá pelo nome de leite.
E à noite ?! Depois do gado metido no bardo, dormir com ele no “chorço” ?! … Era admirável !Ensinava-me a orientação e a determinação das horas através da lua e das estrelas.
Contava-me historietas de lobos e de raposas, com os seus valentes cães de permeio e falava-me de múltiplas outras coisas ligadas à pastorícia e à Natureza. Nisso ele era um barra …”
O Zé Valentim já partiu, para o outro lado da Vida. Já não ouve os chocalhos da sua infância, nem dorme com o gado no “chorço”. Mas lá, em Rio de Mouro, no cemitério onde uma cruz marca o ponto final da sua caminhada pelo mundo, acredito que ele, esteja onde estiver, pelo seu estatuto de Homem Bom, estará a contemplar as cintilantes estrelas da sua infância.
Quito Pereira

15 comentários:

  1. Legenda:
    Coucho - Cesta em cortiça, com asa, onde o pastor levava a merenda e os liquidos;
    Corna - Corno serrado pela base, que usavam a tiracolo para levar liquidos;
    Chorço - Cabana feita de ramos, onde o pastor dormia junto ao gado;
    Piçarra - Pedra com concavidade, onde se depositavam liquidos ...

    A foto é da Daisy ...

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  2. Prosa com dicionário.
    Assunto.
    Tonito.

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  3. Gostei desta prosa do Valentim Prata que nos traz a evidência dum tempo duma labuta árdua e de sacrifício e que está de acordo com o título que lhe foi dado- "O pão que o diabo amassou".
    Obrigado Quito, por mais este testemunho que estava "esquecido" numa sala da Junta a que se designou como "biblioteca", e que só pela tua mão seria possivel termos dele conhecimento.
    Um abraço
    Abílio

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  4. Muito interessante este texto do Quito que através da prosa do Valentim Prata nos dá a conhecer algumas expressões usadas e que o o Quito fez questão de "traduzir"" Realmente algumas não conhecia mesmo!
    Mas volta lá à biblioteca que mais "escritos" interessantes encontrarás.

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    1. Então mas os artistas nipónicos já chegaram? Já estarão nos seu Castelo de férias, em Azurba?

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  6. O Quito procurou livros de antanho para nos trazer um escritor de uma das suas terras...
    É na Sede da pequena Junta de Juncal do Campo que encontra o que pretende para connosco o partilhar. Partilha que agradeço.
    Podes continuar, Quito, mas despacha-te! "Cheira-me" a que a Junta vai encerrar por ordem e mandado de quem não sabe, nem quer saber, o que é um coucho ou um chorço.

    Toma lá um abraço.

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    1. Amigo Jubilado
      As tuas previsões devem corresponder à verdade, meu caro Viana. Mas a população Juncal, apesar de envelhecida, tem sabido preservar o seu património. Para além de grupo de teatro que tiveram, ainda pontifica o racho folclórico e casa - museu, com todo o seu vasto espólio e troféus do Rancho. Por sinal, esta casa foi a humilde habitação onde nasceu o Zé Valentim, e que, com a ajuda de muitos, foi possível recuperar.
      Tenho a certeza, que no que diz respeito à biblioteca, saberão preservá-la, de uma qualquer orientação da ignorância engravatada de Lisboa. A identidade daquele povo, não será nunca, politica de "terra queimada".
      Por estas bandas, apesar da tez fechada e morena dos seus habitantes, onde parece não habitarem sentimentos e emoções, ainda não se perdeu a capacidade de amar ...
      Toma lá um abraço

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  7. Não desvalorizo a crónica de Zé Valentim que nos transporta para a vivência rural de um povo sacrificado, melhor percebida com a ajuda de tradução de algumas palavras, para mim, citadino, até agora completamente desconhecidas.
    Nada disso. Louvo-a até!
    Contudo, talvez porque prefiro o estilo literário do Quito, valorizo mais a sua clara e pormenorizada descrição, da modesta Junta de Freguesia, da solícita funcionária agasalhada com grossas roupas para fazer frente ao gélido frio da serra, da divisão húmida pouco adequada para a guarda de livros.
    Dou por mim a meditar que, mau grado a exiguidade de recursos, persistente passadas tantas décadas, não impede a defesa da cultura e da história que as gentes daquela freguesia orgulhosamente preservam menos com parcas condições.

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  8. Corrijo o erro:

    - Onde escrevi "menos" queria ter escrito "mesmo"

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  9. Belo texto Quito! Mas continuamos a ser um povo de brandos costumes!!!? Este desabafo não é nenhuma "senha"!!???...mas podia ser! Parabéns caro amigo pelo belo estilo literário, como o Rui escreve...e bem!!!

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  10. E de novo nos encantas com a tua escrita. Mas a prosa do Valentim também me deliciou.
    Um abraço da Ló

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  11. maria helena morgadomaio 10, 2012 9:23 da tarde

    O avô , o neto e o Quito são humanistas!
    Gostei muito do teu texto e do encaixe, destes vocábulos que desconhecia e da imagem.
    Estas rosas neste local, parece-me improvável, mas que a imagem está bonita, lá isso está!

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  12. A oliveira e a rosa.
    A aldeia e a cidade!

    Quito, ainda bem que gostas de procurar estes tesouros que connosco partilhas!
    O termo "coucho" era meu conhecido, pois o Fernando usava-o quando comíamos, por exemplo a salada, do mesmo prato.
    Eu desconhecia, mas ele dizia que era o recipiente onde comiam os porcos( com o perdão de vossas senhorias)!
    Logo, em Penela não tinha o mesmo significado.

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