São seis da tarde deste dia de inverno e o sol acomodou-se
atrás da montanha. Uma temperatura fria, varre o vale que avisto daqui. Estou
em Juncal do Campo e os meus olhos espreitam por cima do casario, que se
derrama pela colina. Lá no fundo, no fundo do povo, uma coluna de fumo negro,
sobe densa e perde-se por entre os olivais. É o fim do ritual do milagre do
azeite. Estão a queimar a rama das oliveiras.
Entro, então, na Junta de Freguesia. A funcionária, envolta
num grosso casaco de malha, saúda-me. Peço-lhe se me deixa consultar uns
livros, num compartimento da casa. Na porta, na porta do compartimento, para
que não haja dúvidas, está escrita a singela palavra “biblioteca”.
Generosamente, faculta-me o acesso ao quarto húmido. Numa
estante e em cima de uma mesa, muitos documentos. Digo-lhe que procuro livros
de antanho, de filhos da terra. De dedo indicador esticado, aponta-me uma
prateleira, junto ao teto. Estão ali uma meia - dúzia de obras e, à frente, uma
pequena cartolina com os dizeres: “Escritores da nossa terra”.
Sei o que quero encontrar. Procuro o livro “O pão que o diabo
amassou”, do Valentim Prata. Lá estava. Fiz menção de o trazer comigo. E
trouxe. Mas tive que assinar um pequeno papel, responsabilizando-me pela
relíquia. É que o Zé Valentim já partiu e não volta cá, para nos recontar as
suas memórias. E hoje, das suas lembranças de criança, dos longínquos anos
quarenta, partilho convosco este seu prosar:
“Meu avô, não sabendo ler nem escrever, dialogava, com quem
quer que fosse, com muita naturalidade e facilidade. Exteriorizava, com graça e
objectividade, a sabedoria e a cultura de raiz que albergava na sua mente. Era
um homem de cujo interior brotava, em todos os momentos, alegria e boa
disposição. A jovialidade corria-lhe nas veias. Era um humanista (…) . O que eu
queria era sempre estar com ele. O seu rebanho ostentava os maiores chocalhos
dos arredores. A qualquer hora do dia ou da noite, ordenhava uma cabra para um
“coucho”, para a “corna” ou mesmo, para uma poça de qualquer “piçarra”, quando
me punha a tetar e, ali, sem qualquer preocupação com fervuras, à temperatura
com que esguichava o amojo, ingeria o substancial e generoso alimento que dá
pelo nome de leite.
E à noite ?! Depois do gado metido no bardo, dormir com ele
no “chorço” ?! … Era admirável !Ensinava-me a orientação e a determinação das horas através
da lua e das estrelas.
Contava-me historietas de lobos e de raposas, com os seus
valentes cães de permeio e falava-me de múltiplas outras coisas ligadas à
pastorícia e à Natureza. Nisso ele era um barra …”
O Zé Valentim já partiu, para o outro lado da Vida. Já não
ouve os chocalhos da sua infância, nem dorme com o gado no “chorço”. Mas lá, em
Rio de Mouro, no cemitério onde uma cruz marca o ponto final da sua caminhada
pelo mundo, acredito que ele, esteja onde estiver, pelo seu estatuto de Homem
Bom, estará a contemplar as cintilantes estrelas da sua infância.
Quito Pereira
Legenda:
ResponderEliminarCoucho - Cesta em cortiça, com asa, onde o pastor levava a merenda e os liquidos;
Corna - Corno serrado pela base, que usavam a tiracolo para levar liquidos;
Chorço - Cabana feita de ramos, onde o pastor dormia junto ao gado;
Piçarra - Pedra com concavidade, onde se depositavam liquidos ...
A foto é da Daisy ...
Prosa com dicionário.
ResponderEliminarAssunto.
Tonito.
Gostei desta prosa do Valentim Prata que nos traz a evidência dum tempo duma labuta árdua e de sacrifício e que está de acordo com o título que lhe foi dado- "O pão que o diabo amassou".
ResponderEliminarObrigado Quito, por mais este testemunho que estava "esquecido" numa sala da Junta a que se designou como "biblioteca", e que só pela tua mão seria possivel termos dele conhecimento.
Um abraço
Abílio
Muito interessante este texto do Quito que através da prosa do Valentim Prata nos dá a conhecer algumas expressões usadas e que o o Quito fez questão de "traduzir"" Realmente algumas não conhecia mesmo!
ResponderEliminarMas volta lá à biblioteca que mais "escritos" interessantes encontrarás.
Claro que a foto é de artista!
ResponderEliminarEntão mas os artistas nipónicos já chegaram? Já estarão nos seu Castelo de férias, em Azurba?
EliminarO Quito procurou livros de antanho para nos trazer um escritor de uma das suas terras...
ResponderEliminarÉ na Sede da pequena Junta de Juncal do Campo que encontra o que pretende para connosco o partilhar. Partilha que agradeço.
Podes continuar, Quito, mas despacha-te! "Cheira-me" a que a Junta vai encerrar por ordem e mandado de quem não sabe, nem quer saber, o que é um coucho ou um chorço.
Toma lá um abraço.
Amigo Jubilado
EliminarAs tuas previsões devem corresponder à verdade, meu caro Viana. Mas a população Juncal, apesar de envelhecida, tem sabido preservar o seu património. Para além de grupo de teatro que tiveram, ainda pontifica o racho folclórico e casa - museu, com todo o seu vasto espólio e troféus do Rancho. Por sinal, esta casa foi a humilde habitação onde nasceu o Zé Valentim, e que, com a ajuda de muitos, foi possível recuperar.
Tenho a certeza, que no que diz respeito à biblioteca, saberão preservá-la, de uma qualquer orientação da ignorância engravatada de Lisboa. A identidade daquele povo, não será nunca, politica de "terra queimada".
Por estas bandas, apesar da tez fechada e morena dos seus habitantes, onde parece não habitarem sentimentos e emoções, ainda não se perdeu a capacidade de amar ...
Toma lá um abraço
Não desvalorizo a crónica de Zé Valentim que nos transporta para a vivência rural de um povo sacrificado, melhor percebida com a ajuda de tradução de algumas palavras, para mim, citadino, até agora completamente desconhecidas.
ResponderEliminarNada disso. Louvo-a até!
Contudo, talvez porque prefiro o estilo literário do Quito, valorizo mais a sua clara e pormenorizada descrição, da modesta Junta de Freguesia, da solícita funcionária agasalhada com grossas roupas para fazer frente ao gélido frio da serra, da divisão húmida pouco adequada para a guarda de livros.
Dou por mim a meditar que, mau grado a exiguidade de recursos, persistente passadas tantas décadas, não impede a defesa da cultura e da história que as gentes daquela freguesia orgulhosamente preservam menos com parcas condições.
Corrijo o erro:
ResponderEliminar- Onde escrevi "menos" queria ter escrito "mesmo"
Belo texto Quito! Mas continuamos a ser um povo de brandos costumes!!!? Este desabafo não é nenhuma "senha"!!???...mas podia ser! Parabéns caro amigo pelo belo estilo literário, como o Rui escreve...e bem!!!
ResponderEliminarE de novo nos encantas com a tua escrita. Mas a prosa do Valentim também me deliciou.
ResponderEliminarUm abraço da Ló
Está tudo dito.
ResponderEliminarObrigado,Quito.
O avô , o neto e o Quito são humanistas!
ResponderEliminarGostei muito do teu texto e do encaixe, destes vocábulos que desconhecia e da imagem.
Estas rosas neste local, parece-me improvável, mas que a imagem está bonita, lá isso está!
A oliveira e a rosa.
ResponderEliminarA aldeia e a cidade!
Quito, ainda bem que gostas de procurar estes tesouros que connosco partilhas!
O termo "coucho" era meu conhecido, pois o Fernando usava-o quando comíamos, por exemplo a salada, do mesmo prato.
Eu desconhecia, mas ele dizia que era o recipiente onde comiam os porcos( com o perdão de vossas senhorias)!
Logo, em Penela não tinha o mesmo significado.