O extinto Teatro Avenida ...
Hoje, lembrei-me da minha mãe. Morreu num maldito dia de
Fevereiro, já as rugas que me abraçam os olhos, eram o testemunho vivo da minha
primavera parda. Recordo a minha meninice, quando ela, de manhã, me lavava a
cara e me penteava o cabelo. E eu, de bibe azul e mochila às costas, lá seguia
para o Colégio de São Luís Gonzaga. Ela, a minha mãe, ficava no portão a ver-me
partir, sempre vigilante. E eu dizia-lhe adeus, até ao dobrar da esquina, que
me remetia para a minha solidão de menino. Mas esses momentos de recolhimento,
depressa me passavam. No Colégio, a Dona Mariana saudava-me com aquele sorriso franco
que lhe iluminava a face. Depois, na sala amplamente iluminada e desenhos
coloridos espalhados pelas paredes, ensinava-me a arrumar as letras, as
palavras e os números.
Aos fins – de - semana, comigo pela mão, minha mãe rumava à
baixa da cidade. Era tempo de visitar os meus tios, residentes na Avenida Sá da
Bandeira, defronte do velho Teatro Avenida.
O ritual era o de sempre. O trolley amarelo, que fazia paragem junto à singela
e minúscula igreja de São José. Depois, a rampa da Rua dos Combatentes. Sereno
e silencioso, o trolley galgava a subida, parando aqui e ali, por entre o
estalar seco do alicate do “trinca-bilhetes” e o “tlim-tlim” apressado do
passageiro que ficava nos Arcos do Jardim. E era ali, junto ao Teatro Avenida,
o nosso cais de desembarque. Também um cais de sentimentos e emoções, quando a
minha tia, saudosa da semana que passara sem me ver, acenava do outro lado da
rua, daquela janela virada para a cidade. Era sempre um ritual de mordomias. A
Lucília - a minha tia Lucília - a bondade em pessoa, fazia-me apetitosos
lanches. Depois, debruçava-me à janela a ver o trânsito da Avenida, de joelhos
num banco da cozinha. Agora que vou folheando este livro de memórias, recordo os
soldados em parada da militar, que vinham da Rua da Sofia para o “Doze”, nos
Arcos do Jardim. À frente, um tarata zurzia o enorme bombo, com que coordenava
a passada ritmada dos restantes. Depois, um estandarte e um corneteiro que, de
tez roxa de esforço, animava aquela procissão bélica de espingarda às costas.
Um dia, como todos os dias, anoiteceu. E eu, com a minha
prima São, uns anos mais velha, ficámos na janela, a contemplar o movimento da
avenida. Era já tarde. Muito tarde. De repente, um cacho humano desceu os
degraus do Teatro Avenida. Tinha acabado a sessão de cinema. Depois, tudo
parecia regressar ao normal. Mas não! Na rua, encostados a um muro, um bando de
capas negras. Era uma trupe. E, dentro do Teatro, um caloiro barricado. Então,
aconteceu o inesperado. A Conceição – a minha prima São – pôs um casaco pelas
costas e partiu. Atravessou a avenida e saiu com o caloiro de braço dado. Pelas
normas da época, se o estudante estivesse acompanhado por elemento feminino,
não seria praxado. E assim, protegido, o caloiro lá entrou numa residência lá
para os lados da Rua Antero de Quental, de braço dado com a minha familiar,
sempre acompanhados de perto pela trupe que depois dispersou. A Conceição, toda
ufana, regressou a casa, contando entusiasmada a experiência que acabara de viver,
perante a perplexidade dos meus tios.
Numa manhã triste, aquela janela dos meus verdes anos,
fechou-se para sempre. Para dor de todos nós, que vimos a família partir para
terras de Moçambique. Por lá viveram. E da lá vieram, tão modestos quanto
foram. Os pontos cardeais da vida, desta vez, rumaram ao sul de Portugal, terra
do marido da minha dileta prima. Dali, daquela varanda, a Conceição, de cabelo
branco e as rugas que lhe certificam os trilhos de uma vida difícil, vai
olhando o mar. Para trás, muito para trás, fica a pálida memória do Teatro
Avenida. E eu, que na roleta da vida me embrenhei por este Portugal profundo,
relembro aquela jarra de flores multicolores, iluminada por um sol de verão, ao
centro da mesa da sala – de – jantar, da velha casa coimbrã.
E de noite, de cabeça pousada no travesseiro, recordo a minha
infância e o meu constante jorrar de memórias. As memórias doces e sofridas, de
uma janela virada para a cidade.
Quito Pereira
Este teu texto ficava tão bem num dos jornais de Coimbra...
ResponderEliminarAbre aço!
Mano Paulo, tem dó !!! Não comeces já a pensar alto ...
EliminarTenho um metro e oitenta descalço... queres que pense baixo?
EliminarO nosso JF está a ser uma desilusão para mim.
Vou bater a outra porta... já venho...
Pronto, já fui. E digo-te aonde fui: apresentar este teu texto ao meu amigo Manuel de Sousa, chefe de redacção do «Diário de Coimbra».
EliminarAgora aguardo...
Paulo
EliminarNão digas mal do JF, que não merece e eu fico "estragado" contigo ! Já publicou um texto e chega !!! Continua a pagar a assinatura, tal como eu e deixa-te de fitas carais !!!
Toma lá um abraço, catrino !!!
Nem pareces de Coimbra, c'um catrino! Eu tenho a assinatura (como sei que só publicaram um texto?!) e faço fitas. Porquê? Porque em Coimbra "assinam-se as fitas".
Eliminarahahahahahahahahahahahahahah
Olha, lembraste-me bem. É altura de enviar uma fita assinada ao Fernando Paulouro.
ihihihihihihihihihihihih
Chiça Paulo, que tu és de ideias fixas, carais !!!
EliminarOlha que o texto precisa de umas pequenas alterações. Descobri há pouco e vou ter que retificar.
Depois, se não publicarem, não venhas "xorar" no meu ombro ...
Já foi :O)
EliminarRectifica que o Manel de Sousa vem ler!
EliminarConho ... como se aqui ao lado. Eram pequenas retificações de pormenor ... um asento mal posto e um emenda numa palavra ... chiça pá, até parece que estamos a falar de um texto do Ramalho Ortigão, canudo !!!
EliminarAcento ...eu bem digo que tu tiras -me do sério, quando te pões a magicar ...estou aqui estou o jornal da paróquia, por sorte ainda não te lembraste de mandar o texto ao padre de S. Martinho do Bispo ...
EliminarQueres que mande para «O cavaleiro da Imaculada»? A propósito, escrevi um texto há dias em que falei desse jornal:
EliminarNem a Playboy portuguesa nem a Rita Pereira me pediram a opinião...
Manda-me o texto por "e-mail", para eu ler. Deve ser coisa fresca ...
EliminarQuito, tens o link no meu comentário: clica onde diz "Nem a Playboy portuguesa..."
EliminarSenhor ...porque me fizeste tão básico nestas coisas da informática ??? ... pois, já tinha lido ...gostei do texto ...e da Ritinha, em traje de gala ...prontsss ...mas o melhor é eu recolher-me ao meu mutismo. Mutismo, que grande palavrão ...cada vez estou mais culto !!!
EliminarEu bem te avisei!!!
EliminarMas pelo que li, vais ter mais cuidado!
SIC
"mas o melhor é eu recolher-me ao meu mutismo"....
Mais uma vez em grande,Paulo Moura.
EliminarUm grande aplauso!
Qual Paulo Moura, qual carapuça !
EliminarCá para mim, atuapele está a derreter-se para a Sãozita.
Tem juízo, menino!
aminhapele já não tem nada que derreta.Só na cimenteira...
EliminarRealmente, Viana.Onde é que o Rui foi descortinar o Paulo Moura em grande?
Eliminar~Quer chamego!
O esticaminhapele devia querer dizer que a São Rosas está funda.
EliminarDesta vez o Quito trouxe-nos lembranças da sua meninice em Coimbra.
ResponderEliminarA perspicácia e o espirito de observação demonstrados nos seus escritos sobre os lugares e as gentes, na ruralidade e bucolismo da Beira Baixa, a que nos acostumou, estão igualmente patentes nestas memórias, não obstante o ambiente citadino.
O marchar dos soldados, que ele próprio haveria também de ser anos mais tarde, a viagem de trolley até à Sá da Bandeira, a melancolia da saída de casa em direcção à escola, a placidez do olhar da janela sobre o movimento da cidade, o pormenor delicioso de ali se ajoelhar sobre um banco e apoiando os braços no parapeito, levam-nos a ver tudo isto com tal realismo, como se nós próprios o tivéssemos acompanhado nestas andanças.
Coisa que só um verdadeiro escritor consegue transmitir ao leitor…
Quanto ao Teatro Avenida, sala de espectáculos por onde passaram inolvidáveis espectáculos de teatro e de cinema, tinha consigo a tradição de espalhar cultura pelas gentes de Coimbra.
Não esqueço que no meu ano de caloiro, depois de ter assistido ao filme de Ingmar Bergman, Morangos Silvestres, fui abordado à saída, nas escadas, por uma troupe, que me fez a sacramental pergunta sobre “o que era eu pela praxe”. Como não reconhecesse ninguém daqueles que me abordaram, menti dizendo que “não era nada, que era empregado comercial”.
Já me afastava convicto de que tinha escapado, quando uma voz do meio da avenida gritou:
- Esse gajo é caloiro!
A voz era do Zé Munhoz e Alvim que integrava a troupe.
Correram atrás de mim, agarraram-me e fui rapado “ad libitum” num banco do jardim central da Av. Sá da Bandeira.
Se eu na altura conhecesse a prima do Quito, a Conceição, ter-lhe-ia pedido protecção…
Rui
EliminarA tua ideia peregrina, de que vendias tecidos para fatos atrás de um balcão, não surtiu efeito ...
Mas hoje, certamente, não te importarias que uma qualquer trupe te sentasse num banco da Sá da Bandeira e te rapasse o cabelo. Quereria dizer que as engrenagens do Tempo rodavam em contra -ciclo e tinhas regressado à primavera da vida...
Excelente texto...como sempre.
ResponderEliminarObrigado Rui, por teres aparecido. Um abraço amigo ...
EliminarOs teus contos continuam a deliciar-me e a recordar-me coisas que me trazem muita saudade, entre elas a tua Mãe que era para mim uma excelente amiga e que eu achava sempre mais novas e mais compreensiva que todas as outras Mães.Continua Quito pois os teus contos encantam-me.
ResponderEliminarBeijinhos para ti e São
Obrigado, Nela, pelas comoventes palavras que dedicaste a minha mãe.
EliminarÀ uma Praça a que chamavam da "Índia Portuguesa". Hoje, é a praça da nossa saudade...
Um abraço
Em tempo: há uma praça ...
EliminarIdas ao cinema aos domingos matiné.
ResponderEliminarE o café de cafeteira Grande que era vendido no café ao lado que fazia parte do cinema.
Boas recordações com esta foto do Avenida.
Tonito.
(Os saraus da queima das fitas que davam sempre bronca com a pide).
Quem se recorda do Auto da Barca do inferno no ano em que saio uma lei que proibiu o trabalho "fácil" ás meninas.
Ano 60?.
Boas recordações, António ... das coisas que te lembras !!!
EliminarMagnifico texto!É sempre um grande prazer ler o que escreves...e como escreves!
ResponderEliminarRealmente está na altura certa para te virares aqui para a cidade.
E aqui por Coimbra muitas mais "estórias" terás para contar!
E estou a adorar também a troca de correspondência com a São Rosas!
Mas toma cuidado!O Paulo Moura é muito ciumento!
Não clikes nos link´s com que ela te seduz...sem te benzeres primeiro!
Muito já falei de Coimbra, do meu Choupal e das minhas memórias, Fernando !!!
EliminarTanto no Cavalinho como no Encontro. Faz-me saudade "aquele" Teatro Avenida. Dona Judite, que foi proprietária, por vezes arranjava bilhetes de cinema para os meus tios. Foi lá que vi um filme do Joselito, na época o rouxinol de Espanha ...
Mais um conto teu, este verídico, aliás como quase todos, cheio de magia e recordações!
ResponderEliminarTens o dom de ao escreveres nos fazer reviver, pelo menos a mim, um passado que já vai sendo longínquo cheio de apontamentos que nessa época também me tocaram!
Teatro Avenida década 60!!! Lembro-me tão bem de como era com o seu bar ao lado, onde quase todas as noites, eu e o Jean íamos tomar o café no intervalo do filme! O meu marido, cinéfilo a 100%, não dispensava o Avenida ou o Tivoli, este ainda com o quiosque no rés-do-chão, onde ele comprava os seus Gitanes e todas as revistas de automóveis!!!!
Mas antes, nos anos 50, eu como artista de alto gabarito, pisei o palco do Avenida, para numa festa do Colégio S. José, dançar e declamar uns versos que já nem me lembro de que poeta eram!!!! Tu vês o que tu fazes, Quito??? Já nem me recordava, mas agora ao relembrar a linda figura que devia ter feito...até me subiram os calores!!!! Estás-me a imaginar? Nem quero Quito.....
Mas isto foi só um pequeno aparte que no balanço das recordações, me veio à memória agitando estes neurónios que com o passar do tempo já vão ficando preguiçosos!!!!!
Fiquei nostálgica, com tudo isto...és tu o culpado...mas meu Amigo, gosto tanto de te ler!!!!!!
Teresita
EliminarAinda bem que recordaste, com saudade, o "teu" Teatro Avenida. Também me recordo dos intervalos e dos cinéfilos espalhados pelo passeio antes de, de novo, reocuparem os seus lugares. Recordo aqui um pormenor delicioso, mas que ao mesmo tempo me entristece de saudade: a minha tia, anafadinha, a passar roupa a ferro e a olhar pela janela para a Avenida Sá da Bandeira. E quando o público saía do Teatro dizia: "o quê, já são "X" horas ???". Ela "media" o tempo pelos horários do Teatro, pois sabia-os de cor. Achava delicioso. Hoje, porém,tenho alguma mágoa quando me lembro disto ...
É verdade o que o Quito diz.
ResponderEliminarHabituou-nos mais recentemente ao seu deambular por terras beirãs, mas lembro-me muito bem de textos seus sobre outras paragens.
Lagos, Moçambique, Cabo Verde, Guiné, Mira e mesmo Coimbra e o Bairro.
Em todas esses textos, contando episódios ou refletindo, o Quito estabelece sempre um paralelismo e uma ligação dos factos à sua terra natal.
Mesmo quando os locais que descreve e as histórias que conta, estão localizados a muitos e muitos kms de distância, como é o caso dos territórios africanos ou de Lagos...
Mais um texto do Quito.Bom,como sempre.
ResponderEliminarEste fez-me desenterrar as memórias de miudo.
Eu vivia na Oriental de Montarroio e frequentava o Colégio Português(um pouco acima do Avenida).Um dos meus colegas e amigo,desde os tempos infantis,era(e é) o Pedro Mendes de Abreu.Isto significa a frequência do Avenida desde miudo,muitas vezes no camarote dos proprietários.
O Tonito lembra,e bem, O Auto da Barca do Inferno.Foi a penúltima vez que pisei o palco do Avenida.Um espectáculo memorável do CITAC,encenado por Carlos Avilês e com os desenhos do grande F.Relógio.
Obrigado,Quito.
Parece fácil constatar, como o Teatro Avenida ainda faz parte das memórias de muitos de nós. Era um belo edificio, que merecia ter sido preservado ...
ResponderEliminarA pretexto de uma pretensa evolução, vamos matando as referências da cidade...
Abraço, Rui Lucas ...
Um prazer ler os teus textos!
ResponderEliminarAo Avenida, quando ainda era possível ir sem limites de idade, ia com os meus pais ao cinema, ao teatro, mais tarde aos saraus da Queima e outros espetáculos.
Nos anos 60, já casada, deixava os filhos com os avós e lá íamos ao sábado ao cinema.
Após o 25 de abril vi o filme "Último tango em Paris", que era arrojado para a época!
Ainda voltei, depois de remodelado...mas tão diferente!
Espero reler o que escreveste noutra publicação, tal como sugere a Sãozita.
Que bom que o teu "constante jorrar de memórias" nos leve a este "cais de sentimentos e emoções".
ResponderEliminarO realismo dos teus textos traz-nos saudosas recordaçoes.
Não pares.Aguardo a próxima crónica e...concordo plenamente com o 1º comentário,o do Paulo Moura.
Continua, Quito, para nós é enorme o prazer de te ler
Um abraço da
Ló
E o Quito, puto escorreito de bibe azul vestido, faz renascer o extinto Teatro Avenida para, em volta dele, tecer uma teia de recordações e de ternas emoções.
ResponderEliminarPormenores, sobre pormenores, mostra-nos um cantinho da Coimbra de antanho...
Mais um texto digno da colectânea que um dia, estou certo, verá a luz do dia.
Grande abraço.
Ontem, muitos de nós, estivemos sentados na plateia do Teatro Avenida, recordando a nossa Coimbra de antanho. Obrigado a todos vós, amigos, por me terem acompanhado nesta memória ...
ResponderEliminarDe facto as memórias vêm com a tua leitura e fez-me lembrar que, foi no Teatro Avenida que tive a minha primeira tentativa de ir ao cinema, depois de uns dias de clausura com escarlatina, fiz os meus 12 anos e a prenda era ir ao cinema, lembro-me que no grupo que me iria acompanhar, entre outros, se encontrava o Dino, mas como me esqueci do BI não me deixaram entrar, pois era
ResponderEliminarbem minorca, ninguem acreditou que eu já tinha 12 anos, fiquei bem triste ia ver o filme "El Cid o Campeador"
Lembro-me de ter visto no Avenida o "Spartacus", com o Kirk Douglas. Um filme "pesado", que me fez passar a noite sem dormir ...
EliminarE as lágrimas das saudades da minha mãe, saltaram-me ao ler o teu texto.
ResponderEliminarEscreves tão bem, Quito, que ao ler, vive-se totalmente o que tu escreves.
Um abraço, Nanda
Um abraço solidário, Nanda ...
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